O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

NELSON RODRIGUES E TARANTINO

É até engraçado meter-me a fazer crítica. Tenho perfeita consciência da minha incompetência nisso. Mas essa consciência é que me faz escrever. Tomei coragem porque tenho visto nos últimos tempos tanta gente com o rótulo de crítico fazendo comentários vagos, pessoais e imprecisos. Pensei: no mundo democrático da internet podemos ser quem quisermos, por que não? No mundo de duas ou três estrelinhas, de dedinhos dizendo "curti", por que não um punho fechado?

No fundo todo mundo é crítico. E filósofo. Não falo de qualidade. Nem sempre é fácil ou possível medi-la. Sabemos fazer isso dentro de nossa especialidade. Eu, por exemplo, detecto um etimólogo fajuto a quilômetros de distância. Assim faz o médico, o físico e todos que têm os pés alicerçados em certezas para além das suas meras convicções.

Só que sou um crítico um pouco atípico. Hoje é legal dizer que odeia este livro, aquele filme, aquela peça. Parece profundo. Obviamente há coisas que me agradam e outras que me decepcionam. Mas sobre as que me decepcionam não é bom falar contra. Exporia minhas fragilidades. Ademais, a crítica honesta de uma obra, se não estou muito enganado, se faz a partir das premissas do autor e não do próprio crítico. Pelo menos, é o que se deve fazer, quando lemos filosofia.

Dentre os filósofos, há alguns que são dificílimos de ler. Confesso ter sido cuspido dos textos de Hegel, Kant e Husserl. Tenho uma sensação de que não valeria a pena esforçar-me para ler o primeiro e a sensação oposta para os dois últimos. Mas que isso interessa? Se não entendo, não há crítica a fazer. Minhas limitações não deixariam. Também por alguma razão, não acompanho bem alguns tipos de filmes. Recentemente fui assistir ao Lincoln, de Spielberg, mas... não entendi nada. Acho que terei de revê-lo, talvez o veja umas três vezes. Como havia muitos barbudos, foi a prova cabal de que tenho mesmo alguma tendência à prosopagnosia. Ou talvez tenha sido a insônia do dia anterior que não me deixou concentrar em quem era quem. Ou talvez a minha falta de interesse em saber como aqueles toscamente retratados Estados Unidos se tornaram a consabida glória que são hoje. Ou talvez minha burrice me impediu de ver a mensagem que tantos viram nele. Enfim, não sei o que, na complexa trama do filme, me fez perder interesse. Havia muita cumplicidade com a plateia. Não consegui rir ou chorar na hora certa. Fiquei irritado comigo mesmo e com vontade de dar meia estrela ao filme, mas vejo que o problema é comigo.

O que salva minha auto-estima nessas horas é perceber que talvez seja sensível em outras circunstâncias. Um dia antes havia visto o Django unchained de Tarantino. Não gosto da sangueira gratuita dos filmes americanos. Cansa a quantidade de serial-killers e outros esquisitões sádicos da lavra americana. Tarantino, sem dúvida, é um dos mais sangrentos. Nunca tive paciência para ver até o fim o tal Kill Bill. Além disso, Pulp Fiction me perturba negativamente. Enfim, Tarantino tem tudo para que eu deteste de antemão o que faz. Mas não: Tarantino é de fato diferente.
 

Se me incumbo da penosa tarefa de abstrair todo o sangue, pois aí não vejo muita novidade em relação ao que fez, por exemplo, Jim Jarmusch em seu Ghost dog, vejo alguém que de fato mexe com a tela como poucos faziam. Até mesmo o deus ex machina, recurso não-recomendado desde Aristóteles, nas mãos de Tarantino se torna uma ferramenta poderosa. O final romântico, recurso ruim na mão de outros, se torna quase necessário, afinal de contas não é, aparentemente, um filme que pretende divertir e não jogar a realidade na nossa cara? A ficção, por isso, se transforma em algo tão grotesco, que não discernimos o que é o improvável e o que é o perverso. Mas eu apostaria que Tarantino é mais inteligente do que pensam muitos críticos que se decepcionam com o que faz.
 
Nesse filme, há uma dialética entre bom e mau, entre branco e negro. O branco mau é rico, poderoso e burro. O negro mau é inteligente e goza da tradição do branco bom e de seu dinheiro. O branco bom, porém, faz o que deve ser feito, por dinheiro e age como Krishna convencendo Arjuna no Mahabharata. O negro bom só consegue ser amoral em nome do amor. É nessa dimensão heroica, em que as personagens têm volume real como numa epopeia, que Tarantino se sente confortável. Para tal, escolhe enigmaticamente figuras como Brad Pitt ou DiCaprio.
 
Mas também penso que não há tanta ficção quanto se imagina. É irônico que seja um alemão o branco bom (principalmente depois de Inglourious basterds). Mas não é inverossímil. Os alemães (ao menos os célebres) de 1850 eram mais cultos que os americanos, estavam mais para Goethe do que para Hitler. Aliás, é também sintomático que quem esteja apostando, na época proposta, nos tais mandingo fighters sejam um americano e um italiano (evocando-nos Lombroso e outros simpatizantes americanos da frenologia, como Samuel Morton). O desfecho dramático do pós-guerra, parece justificar a miopia anacrônica. O mesmo raciocínio talvez seja válido para o abuso tarantinesco do tal termo nigger, abundamente utilizado, que chocou tanta gente. Penso: tal palavra não será hoje pejorativa por ter sido usada demais no passado e adquirido a carga semântica atual? Ora, o filme está no passado. Em Lincoln, salvo engano, não aparece (usam negro, mesmo em falas altamente preconceituosas). Tarantino tampouco parece ter medo de anacronismos e inverossimilhanças descaradas, como as de Inglourious basterds, mas agora parece-me que o absurdo se contrapõe ao muito provável.

Não, não é possível criticar honestamente o que é feito com amor. E Tarantino faz cinema porque ama, como fazia Truffaut e Kubrick. Não vejo repetição desnecessária, falta de imaginação, nem nada que os críticos profissionais falam. Vejo um homem obsessivamente procurando a perfeição da explosão-catarse. E um bando de gente enjoada tuitando frases retumbantes e vazias. Ponham a claquete na mão deles para ver se fazem melhor.  

Dentro ainda do anacronismo do politicamente correto, recordo-me de Nelson Rodrigues e de sua obsessão tão incompreendida ainda hoje. A meu ver, será sempre. Parece que grita nas suas peças: temos consciência de nossa inconsciência? É fácil acompanhar tudo que escreve, assim como é fácil entender os filmes de Tarantino. Difícil é descrever o incômodo que causam em todos. As suas personagens parecem planas, ou pelo menos falam como se fossem. As relações são planas. E o que subjaz a tudo isso é o crime, a traição e tudo aquilo que é cometido com uma carga enorme de inconsciência. Parece gratuito. Ofende. Quem não entende sai batendo no peito: "eu não sou assim". É batata!
 
Quando vejo obras como a desses dois mestres, sempre à busca da perfeição da sua estranha mensagem cada vez mais burilada, pergunto-me: se todos nós fôssemos ou Caim ou Abel, haveria necessidade de existir o Direito? Enfim, a punição tem suas bases maniqueístas (quer pensemos na lei de Talião, quer na proibição da fruta no Éden) e o maniqueísmo nunca se fez mais conhecido - desde o tempo do enxugamento de centenas de deuses em Arimã e Ahuramazda - do que nos Dez Mandamentos. Nietzsche falou sobre isso o tempo todo. Com o maniqueísmo, cria-se assim não o certo e o errado, mas o legal e o ilegal, mas nossa tendência ao Barroco nos fez tergiversar imensamente sobre os casos omissos, quer no talmudismo, quer na prática processual.
Nélson Rodrigues flagra o impulso e o absurdo daquilo que chamamos vida. Para isso precisa de personagens planas, não só para fazer-se entendido (e mesmo assim não o é facilmente), mas também para alertar-nos de que é algo muito primitivo. O pós-impulso, dificílimo de ser julgado, quer por dez mandamentos, quer por mil leis, nos faz pensar que o impulso que gera a dúvida não é atávico, nem animal. A perversão está à ronda.

Mas aposto que Tarantino e Rodrigues não pregam a perversão. Alertam, porém, que ela é natural. A vida como ela é. Nenhuma revolução moral, seja religiosa, seja política poderá dar cabo dela. O id sempre existirá. Os interesses também. Em sociedade, o embate entre o id e os interesses só consegue alguma vitória mediante violência ou silêncio cúmplice. E essas duas soluções são faces de algo maior, chamado tirania. Poucos admitem que muito do que é considerado correto é também um tipo de tirania, tão necessário nos parece nos dias de hoje. Seremos hipócritas?