O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

sexta-feira, 10 de maio de 2013

BÍLIS NEGRA

Sou fascinado por raízes e étimos. Algumas perdas vocabulares do latim me surpreendem: ater significava "negro", portanto, devia ser uma palavra bastante usada pelos romanos. Por que sumiu? Das poucas heranças que sobreviveram, há a palavra atrabiliário, raramente usada e que tem sentidos bastante distintos como "melancólico" ou "irascível". Há uma ponte entre a tristeza e a ira que a Etimologia revela e a Psicologia explica. Atrabiliário é, na sua origem, quem tem a bílis negra e evidentemente esse termo médico era uma imitação do grego melancólico, ou seja, uma invenção latina pautada numa mera tradução do grego (ou decalque, falando tecnicamente), tanto quanto cachorro-quente é decalque de hot-dog.
Quando me apaixono por um autor costumo ler toda sua obra. Foi assim com Platão, com Maupassant, com Richard Dawkins e agora, com Oliver Sacks. Comecei a ler seu romance autobiográfico Uncle Tungsten, no qual revela sua infância e a sua casa, que teve de abandonar por volta dos seis anos devido à Segunda Guerra Mundial. Toda a narrativa é embebida de saudade e de certa melancolia.
Mas que é a melancolia? Estaria ela ligada a uma fraqueza de forças, que permite que mal levantemos da cama? Uma lentidão, uma tristeza, uma prostração, uma das fases da psicose maníaco-depressiva? Sabemos que nela estamos sensíveis em excesso, desencantados e deprimidos. Há quem goste dessa sensação, pois parece que é uma espécie de comunhão com as musas (ou com as moiras?), uma espécie de fonte que nos deixa zonzo, favorecendo o devaneio lírico e a meditação profunda. Esse encanto literário sempre está longe da terrível realidade dos que padecem clinicamente, uma confortável idealização de tristezinhas que nos acometem aqui e ali, resultado evidentemente de uma falta de regulação glandular. Resumidamente, essa visão bonita da melancolia nada mais é que uma das muitas bobagens dos escritores românticos. A depressão pra valer, sobretudo na nossa pele, é algo evidentemente ruim: impede-nos de raciocinar, interrompe-nos a vontade de viver e abre-nos abismos intransponíveis nas coisas mais simples, bloqueando nossa criatividade e fazendo-nos ver a verdade nua e crua, sem as nossas generalizações fantasiosas redentoras.


Gosto de entender a melancolia mais como uma tristezinha saudável, em vez da tristezona abominável da depressão, que freamos dentro de nós, mesmo inconscientemente. Todos sabemos que uma melancolia, quando curtida e treinada diariamente, corre o risco de evoluir para depressão. Mas se isso é feito em terreno seguro não-pantanoso das  nossas ideias, pode tornar-se uma forma inigualável de chegarmos à própria compreensão de sua existência.
Se não somos responsáveis pela nossa tristeza, uma vez que podemos culpar nossa pituitária, afinal, o que é que nos move à tristeza? Que pensamentos são invariavelmente tristes? Para uma pessoa que tem alexitimia não é fácil responder isso, tanto quanto não é fácil responder o que é a alegria. Mas nem todos nós somos alexitímicos, embora os que nos circundam nos obrigue a calar na maioria das vezes. A tristeza a meu ver vem invariavelmente da mesma coisa: do passado.



O passado em si não deveria ser triste. Se perdemos um amor, um cargo, nossas riquezas, nossos amigos, nossa família, a paz, a alegria ou a saúde, isso é um fato impossível de ser recuperado. Essa perturbação pode ter terminado no momento do extinção da ação ou pode estender-se até hoje. Pensar nisso causa tristeza obviamente, mas uma vez acontecido algo ruim, acontecerão outras coisas, boas ou neutras também. Se não acontecem, é porque perderam o sabor pela coisa ruim, mas se não foi tão ruim assim, os que sofrem podem aguardar: ainda sofrerão mais no futuro com coisas piores.
De qualquer forma, toda tristeza implica uma mudança. E, nesse caso, uma mudança para pior. Mas sejamos agora sinceros: teria sido, de fato, o momento anterior à mudança o melhor de nossa vida ou exageramos de propósito? Alguém personificou a oportunidade como uma corredora careca com um rabo-de-cavalo, o qual teríamos de segurar, impedindo-a de correr, para não a perdermos de vista. Se essa moça - a Oportunidade - é tão exótica assim, por que não a reconhecemos prontamente quando passou diante de nós? Ou a reconhecemos mas deixamo-la fugir, apatetados por sua rapidez? Teríamos evitado a mudança maligna que nos deixa hoje tristes? Não seríamos melancólicos hoje? Veja, essa fábula toda, muitas vezes, reside na idealização de que antes era o melhor dos mundos: um Éden perdido, um delírio de Rousseau.



 
Mas o antes sempre foi igual ao depois. Apenas há algo incômodo no meio, que poderíamos esforçar para esquecer. Mas, em vez disso, cultuamo-lo, como marco de nossa vida e se torna uma cicatriz sempre aberta. Se ontem era saudável e hoje sou doente, isso não deveria importar: era eu antes, continua sendo eu depois. Só deixarei de ser eu quando morrer. Aí não serei nada. Que diferença faz? Tanta quanto a minha existência antes de nascer.
Para aplacar a melancolia, o pensamento político, ecológico e religioso inventam mundos melhores, que existirão, segundo eles, mas num futuro quase sempre inatingível. Contudo, perdas são coisas que não impedem o mundo de existir. Decerto há retrocessos, há desencanto, há extinções e isso gera tristeza e revolta, deixando-nos atrabiliários (com os dois sentidos que falamos no início). Isso é natural e legítimo. Mas por que a ilusão? Somos mais felizes iludidos? Somos todos crianças, querendo ser enganadas? Precisamos histericamente de mundos além-túmulo, de sociedades totalmente harmônicas, de esperança?
A esperança estava na caixa de Pandora. Portanto, era um mal, assim como os que de lá escaparam. Mas, como ficou trancada lá, não sabemos sua cara, portanto a idealizamos. Durante a minha infância, esperando dia após dia que minha mãe melhorasse da terrível doença renal que a acometeu, nutria a vã esperança. Quando morreu, após terrível sofrimento, concluindo o ciclo da doença, o que era totalmente previsível, vi que por décadas a esperança me escarnecera diariamente. Passei a odiá-la. Nos meus escritos pessoais, chamei-a pelo nome que os antigos gregos sabiamente lhe deram: Elpís. Entre ter esperança e fazer algo, sempre optei pela segunda alternativa.
Depois de muito refletir, hoje ainda me é claro que o lado maligno da mudança é a esperança: é ela que gera a tristeza, a melancolia, a depressão. Por outro lado, viver sem esperança parece algo horrível, quase um convite ao suicídio. Mas não é. Milênios de discurso pró-esperança fazem que não vejamos o óbvio e ajamos como crianças.
 



Se soubermos que ela, com seu rosto bonito e falso, nos engana mais do que qualquer vilão, não seremos necessariamente deprimidos, fatalistas ou resignados por estarmos desamparados do ideal ou do irreal. Veremos quem somos: um saco de carne com prazo de validade, que anda, pensa, se reproduz, mas sobretudo sonha, pois devemos buscar o prazer junto a tudo (e a todos) que nos circunda. Entendido isso perfeitamente, saberemos deixar, sem revolta alguma, nosso legado positivo ao mundo real que nos acolheu, quando não existirmos mais. Isso sim é a alegria da vida, tão óbvia, mas tão apagada por idealizações absurdas, traumas e coisas que não existem mais, nem existirão. Não se trata de um otimismo ingênuo, mas a aceitação do real, do material, do concreto.
Para mim, pensar desse modo sempre foi melhor do que pensar em quimeras e construtos coletivos, afinal, isso já nos é ensinado pela própria Humanidade. O egoísmo de deixar nosso bom legado àqueles que amamos na forma de felicidade, tolerância e paciência poderia ser nosso projeto pessoal de eternidade. Parece paradoxal aliar esse egoísmo ao altruísmo da proposta. Mas não é.