O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

domingo, 31 de janeiro de 2016

EXPRESSÃO E CONTEÚDO

Quando era estudante de Linguística, ouvi que Saussure havia descoberto que a língua se compunha de signos e que esses eram uma junção de significantes e significados. Alguns estudantes mais velhos que eu falavam de Peirce, como alguém que teria pensado além, com seu signo de três faces. Do jeito que aprendi, parecia-me (e talvez a muitos que me falaram tais coisas) que Saussure era um sábio no princípio de uma nova era e que Peirce era um questionador revolucionário. Muitos anos depois, apaixonei-me pela Historiografia da Linguística e pela questão de como ideias são transmitidas de forma enviesada e simplificada, para não dizer errônea, às vezes fruto de má leitura, às vezes de algum entusiasmo político ou simplesmente da infalível obtusidade de quem se arroga superior por ser a única espécie racional do planeta. Mas a racionalidade sempre tem dois lados: um deles, a inteligência, que não se confunde com a razão, o outro é a burrice, que nada mais é que uma de suas facetas mais fascinantes. 



De fato, Peirce, quase duas décadas mais velho que Saussure, ressuscitara uma ideia antiga, que se encontra em Locke, nos medievais e começa, ao menos historicamente, nos estoicos. Foi nessas águas remexidas por Peirce e por outros que Saussure pautou suas famosas aulas, transcritas por alunos que o veneravam. No entanto, transmitidas por bocas alheias, não eram suas as palavras, nem poderiam ser. O resultado atual é curioso: aquilo que é mais conhecido de Saussure não é 100% dele. Isso só foi piorando com a boataria intelectual: Saussure obviamente não inventou o signo linguístico. Por que então tanta gente inteligente ou dedicou sua vida toda a defender algo que lhe foi mal contado ou, motivada pelo espírito que nos faz gostar de ser liderados, defendeu o indefensável mesmo sabendo que tudo repousava apenas em artifícios imaginários que nos dão segurança, algo típico do inseguro e do fanático? 

Hjelmslev, por exemplo, diz que Saussure era "pioneiro indiscutível" e "o único teórico que deve ser citado", ignorando todo o século XIX, mesmo os seus antigos colegas dinamarqueses, cuja tradição em linguística remonta ao século XVIII, entre os quais vem à mente uma larga tradição de personalidades, como Rask, Nyrop e Jespersen. 

Saussure não fundou a Linguística, termo que circulava desde o século XVI. Já havia até mesmo livros sobre Historiografia da Linguística, como o de Benfey, publicado quando Saussure tinha 12 anos. Tampouco inventou a Linguística Geral, termo que já era usado décadas antes de ele lecionar essa disciplina em Genebra. Quando era uma criança de sete anos, já havia uma Société de Linguistique de Paris, à qual o jovem estudante Saussure se afiliou e onde se destacou. Ainda apreciando anacronismos, não poderia ter sido Saussure quem ensinou semântica ao seu mestre Bréal, vinte e cinco anos mais velho, nem é do genebrino o entendimento de que a língua é uma instituição social, pois isso já estava nos escritos de Whitney, trinta anos mais velho que ele. 

Por ser um feroz leitor de temas para além da linguística da época, como a sociologia e a psicologia, pode-se afirmar que quase nada do que está no Cours de linguistique générale é original, apesar de ser inquestionável a genialidade de Saussure, um indoeuropeísta, cujos insights não foram compreendidos senão anos depois de sua morte, após a descoberta da língua hitita. Genialidade, contudo, que foi parcamente registrada pelo seu próprio punho e, mirabile visu, não foi reconhecida, senão por poucos, pelo que realmente escreveu, como seu Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européennes

Didático e exigente, Saussure alimentou a admiração dos seus alunos, que publicaram (e distorceram involuntariamente) suas aulas. A excelente e já antiga edição crítica de Tullio de Mauro do Cours já punha os pingos no is anos antes mesmo de eu estudar Linguística. Por que aprendi errado, então, e só às custas do meu esforço consegui desaprender? O ensino serve às vezes para desinformar e confundir? Enfim, por que ser genial é quase sempre considerado sinônimo de ser original? Isso não seria demasiadamente hegeliano e romântico? O próprio De Mauro não esconde a sua paixão pelo mestre de Genebra respondendo a essas perguntas ambíguas. 

Quando, na pós-graduação, fiz uma disciplina sobre História de Roma, algo aconteceu, que muito me impressionou. Num dos seminários, uma aluna mostrou com enorme riqueza de detalhes que, no Império Romano, durante a transição do principado à monarquia absoluta, o Cristianismo sofreu um verdadeiro sincretismo com ritos e lendas pagãs. Jamais tinha ouvido falar do mitraísmo e não havia associado com tanta clareza a ideia de que os valores cristãos eram tão parecidos com os do Neoplatonismo, seu rival pagão. A moça, não fosse eu na época já ateu, me teria facilmente convencido de que havia falta de originalidade e sentido na inspiração divina da mensagem cristã, dada a quantidade de informações irrefutáveis que apresentou. Mas, crucifixo pendurado ao pescoço, fez questão de concluir sua brilhante apresentação afirmando sua fé particular em um Deus todo-poderoso, criador dos céus e da Terra e em Jesus, seu filho. A mesma sensação de perplexidade eu tenho lendo o estupendo The case of God, da eruditíssima Karen Armstrong. Por que existem pessoas que conseguem levantar dados históricos de forma tão genial mas não combiná-los com sua fé e vida pessoal? Isso sempre me causará extrema perplexidade.



A isso não chamo burrice. Fazer um esforço hercúleo para testar seus valores, questioná-los e superá-los é o que o símio humano tem de mais louvável e incrível. Conseguir combinar harmoniosamente seus próprios valores com a diferença é talvez o elemento admirável de nossa espécie. É o que justifica os nossos neurônios a mais. A burrice é outra coisa. É atitude dos que se recusam a olhar pelo telescópio na peça Leben des Galilei, de Brecht: os avessos à inteligência aliam a fragilidade existencial à pura falta de esforço para ter a informação adequada. E se eu achasse que existe de fato pecado, essa combinação, para mim, seria o maior de todos os pecados. É isso que alavanca o ódio e os gestos assassinos mais frequentes do mundo. É isso que impede a comunicação mais do que a barreira natural das línguas. Há limitações naturais, sabe-se, mas elas, creio eu, podem ser superadas por estratégias que minimizam sua exposição e pelo esforço do autoconhecimento, que evita o auto-engano.

O mundo moderno está empapuçado de tanta informação. Dá uma preguiça danada informar-se e acreditamos numa osmose emanada das redes sociais. A informação está aí, escolhemo-la como num menu. O conhecimento hoje em dia é self service. Assim sendo, não acredito que a burrice seja mais um traço nacional de que nos devemos orgulhar. No Brasil estamos numa cilada terrível: por um lado, a opinião emanada de políticos que falam coisas sem pensar, sem pesquisar, sem considerar a inteligência do ouvinte. Por outro, a informação mal feita de uma oposição que acusa a situação. 

Mais do que a desarticulação da expressão da presidente, acusada por Celso Arnaldo Araujo, impressiona-me a sua falta de conteúdo. Lapsos de expressão cometemos todos nós, a mim mais do que eu desejaria. E nesse quesito, os chamados erros de expressão são algo que só se justificam por meio de uma leitura vaugelasiana da gramática. Quem não diz "comê"? "Falá"? "Cantá"? Basta que sejamos gravados desatentos e que nos ouçamos depois. A falta do -r do infinitivo é a regra do português brasileiro, somente rompida na solenidade de discursos, onde pode parecer inadequada, mesmo assim apenas ao ouvido mais sensível e obcecado com o fato. Além disso, aparentementente, pela expressão falha não se atinge um conteúdo falho. O conteúdo falho se manifesta sim em atos questionáveis: mesmo que a expressão seja a mais capenga, arrevesada, contraditória e pleonástica, ela pode conter algo inteligente. O que nos faz perceber a falta de inteligência é a ausência do ato inteligente. Mas a atitude normativa das gramáticas desde o século XVII parece ter ódio à diversidade de expressão e para cada uma tem um carimbo. 



O conteúdo é manifestado, como dissemos, parte na expressão, parte na ação e é na ação que podemos flagrar a inteligência do conteúdo e não na expressão. Tomadas de decisão é que, de fato, parecem ser a janela de nossa alma. Assim, cansados da embromação de ministérios e de outras autoridades, surgem a histeria e o desejo de extermínio, perante um inimigo de alguns centímetros que transmite febre amarela, dengue, chikungunya e zika, a qual tem gerado fortes suspeitas de vínculo com o pavoroso aumento de microcefalia nas Américas e no Brasil em particular. Nossa espécie pouco afeita a perder seus privilégios, diante de algo que não está bem, evoca com facilidade uma Endlösung.

O medo do desconhecido é o mais conhecido medo que temos. É ele que nos faz declarar como ameaça à nossa existência o bichinho que Lineu chamara de Culex aegypti e que mudou, de forma tortuosa para Aedes aegypti (e que deveria se chamar, desde 2004, de fato, Stegomyia aegypti, se critérios atuais de nomenclatura fossem, de fato, respeitados). Jornalistas, querendo enfatizar as já conhecidas contradições e inconsistências das declarações institucionais, partem da nossa mais nobre capacidade intelectiva, a generalização, para afirmações que se espalham mais rápido que as doenças acima referidas. Uma vez que a pressa da imprensa quase nunca permite que afirmações sejam pautadas em pesquisa e muito menos em análise, amiúde faz isso de forma desinteligente, lançando um facho de escuridão juntamente com a informação, que deveria iluminar.

Anteontem, o Jornal Nacional anunciou que havia sujeira no Palácio da Alvorada (http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/01/focos-de-mosquito-sao-vistos-metros-do-palacio-da-alvorada.html). Grande novidade. Há sujeira no país todo. Nunca fomos uma Áustria ou uma Suíça. Outro dia vi em minha rua um ecocaminhão de coleta seletiva, verde, com dizeres lindos sobre lixo reciclável e sustentabilidade, cujo motorista, na minha frente, jogou um copinho de plástico com resto de café bem na calçada. Brasília mesmo, cidade da reportagem acima mencionada, construída para ser sonho e não decair como a antiga capital Rio de Janeiro, mesmo que rodeada de periferias que nada se assemelham ao platônico Plano Piloto, não poderia ser exceção à nossa falta de educação. A reportagem seria apenas inócua, mas, feita para chocar, como se já não tivéssemos motivos suficientes com o cenário político, teria de fato chocado se não fosse uma tremenda e imperdoável falha jornalística que me tirou totalmente a atenção do seu conteúdo:  aos 1:10, a voz do repórter diz "E na casa da presidente Dilma Rousseff? No Palácio da Alvorada encontramos mosquitos no Espelho D'água. Não é o da dengue, mas serve de alerta".

Não, nessa cena rápida, esses bichinhos olhudos que estão nadando de costas não são mosquitos. E se não são mosquitos, não são os da dengue, obviamente. Se ele tivesse visto araras, não seriam araras da dengue, com certeza. Os bichos que o incauto repórter viu especificamente nesse espelho d´água nem de longe se parecem com mosquitos. São vorazes hemípteros notonectídeos. Provavelmente jogaram larvicida para matar o coitado do bichinho que nada tem a ver com doença nenhuma. Ou seja,  pensei naquele instante, qualquer inseto é sinônimo de sujeira? O ideal seria estarmos livres de todos eles, mesmo dos que se alimentam dos nossos inimigos, como deve ser o caso desses que foram confundidos com mosquitos? Postei um comentário no site. Outro rapaz afirmou que eram larvas de libélula. Não são. Nunca vi larva com asa, muito menos nadando de costas. O desgosto da burrice me fez pensar: o repórter, o rapaz e eu estamos dizendo coisas distintas, ora, é óbvio que, nesse assunto, sou eu quem está com a razão (basta pesquisar a palavra "Notonecta" no Google, leitor incrédulo). Como fazer para que uma opinião com conteúdo se distinga de trilhões de outras sem conteúdo que só servem para confundir? Parece que vivemos, com o excesso de informação, apenas numa coleção de expressões sem conteúdo julgável: todos parecem ter razão embora muito poucos a tenham.

No dia seguinte, esperei em vão pelo "erramos" do William Bonner. Era a vez de Chico Pinheiro continuar a reportagem e verificar a promessa do Ministro da Saúde, Marcelo Castro. Houve outras reportagens sobre o mesmo tema, nesse mesmo dia, mas o que apareceu numa delas me chocou ainda mais. Não é que aos 0:59 mostrou-se um girino como se fosse uma larva do Aedes aegypti?! Veja como seus próprios olhos: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/01/mutirao-de-combate-ao-aedes-aegypti-e-realizado-em-250-cidades-de-sp.html


E pior ainda - rir para não chorar! - a mocinha agente de Saúde que quer conscientizar a população de São Bernardo do Campo sobre o perigo da água parada está vestida de mosquito ou de libélula? Afinal de contas, a fantasia dela tem quatro asas e o tal vilão alado, como qualquer díptero, tem apenas duas. Nas aulas de biologia aprendemos que mosquitos e moscas têm duas asas e dois balancins pequenos e não quatro asas desenvolvidas, mas, pelo jeito, os agentes de segurança não reconhecem o facínora que procuram e estão caçando outros insetos. 

Pode parecer detalhe besta mas não é. Isso nos dá a medida exata de nossa ignorância atual e o quanto não sabemos sobre aquilo de que temos mais certeza, a ponto de não pormos em dúvida o que vagamente sabemos, nem checar nada, antes de dar nossa opinião. Ou seja, nunca pensamos que pode estar errado aquilo que nossa mais profunda convicção nos faz imaginar certo.

Ora, são essas profundas convicções as causas de nossos atos mais impensados. Toda consequência irracional vem de uma profunda racionalidade equivocada. Radicalizando, toda violência (verbal ou com sangue pingando tanto nas mãos quanto nos machados) vem da mais abjeta ignorância. Deveríamos cuidar para que nosso lado pouco inteligente não aflore subitamente. Deveríamos cuidar ainda mais para que não aflore o tempo todo. O único remédio é o estudo das fontes certas. Ora, quem sabe falar sobre inseto? Bons entomólogos. Por que satisfazer-se com o palpite de um ilustre que não tem especialidade naquilo sobre o que discorre? Não é à toa que o niilismo, o relativismo, a indiferença e a boçalidade tem sido a regra deste século de maravilhosa democratização da informação. 

Se racionais todos somos, é preciso aprender a ser inteligente. Isso não vem no nosso DNA. Requer um pouco de esforço diário.