O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

sexta-feira, 8 de abril de 2016

O MELHOR DO NADA

O século XIX foi incensado por muitos como um século no qual a ciência vicejou, a filosofia triunfou, as grandes ideias surgiram. Sob a ótica dos que assim pensam, talvez esse período só fique atrás do século XX em grandeza e na exuberância do conhecimento. Talvez eu não seja o único que pense que as maiores contribuições do Ocidente foram interrompidas no século XVIII, Na verdade, após a Revolução Francesa, tudo o que vemos é uma decadência da razão, manifestada pela supervalorização do individual. Isso já tinha sido anunciado por Berkeley e Hume. A razão, gravemente enferma, tentou ser recuperada por Kant. Mas o golpe de misericórdia e a pazada de cal foram dados por Fichte, Schelling e Hegel.



Morto o lógos, nasce uma nova razão de ser para a filosofia. No meio da cantilena hegeliana, que ecoou por todo o século XIX, havia a voz dissonante de Schopenhauer, o último pensador. Dezoito anos mais novo que Hegel e tendo vivido quase 30 anos depois da morte dele, Schopenhauer era seu maior adversário. Como uma escavadeira, seu discurso arrancava as raízes das árvores materialistas, realistas e idealistas. Com uma competência até então inédita, lia e compreendia Kant, a ponto de mostrar-lhe os erros de raciocínio. Reduziu suas doze categorias a uma só: a causalidade, enaltecendo-a. Estávamos diante de um verdadeiro continuador de Hume e Kant, pois, em suas obras, eram impiedosamente desmascaradas as palavras do "sicário da verdade", do "mercenário acadêmico", do autor das "palhaçadas filosóficas", isto é, do seu maior rival, Hegel, colega de trabalho, de quem tinha indisfarçada inveja e por quem alimentava indescritível desprezo.

A voz de Schopenhauer é forte; a sua verve, prodigiosa; a sua verdade, azeda; a sua capacidade de nos arrebatar, quase infinita. O materialismo, segundo ele, erra ao negar o sujeito, reduzindo-o à matéria; o idealismo - quando investe contra o que chama de absurdos acadêmicos - erra porque porque nega o objeto, reduzindo-o ao sujeito. Na verdade, diz Schopenhauer, o mundo é representação minha. Tout court.

Nesse afunilar-se (tão romântico) do mundo à dimensão do eu, Schopenhauer, convertido a uma visão hindu de um brahman europeizado, trazido pelos Schlegel, insere no sistema secular da Teoria do Conhecimento, nascido na Inglaterra com Ockham e Bacon e adubado por Locke, um elemento alienígena de raízes budistas: uma coisa chamada "vontade", diz ele, está em tudo. Nem mesmo Spinoza seria tão ousado ao apontar para algo tão individualmente difuso: o schopenhauerismo, tão preciso e convincente, traz à baila kantista um ser digno de qualquer amalucado panteísta. A vontade, força que faz crescer as plantas e dá forma aos cristais, que dirige agulhas imantadas e nos faz sonhar, evitando o tédio e o suicídio, essa vontade sobrenatural passa para o panteão da epistemologia, um tanto clandestinamente, acompanhada da maravilhosa prosa poética de Schopenhauer. Se não somos lúcidos, caímos como um patinho na sua conversa.


É a morte do raciocínio, iniciado por Aristóteles, óbito causado pela reintromissão de um elemento odiosamente irrefutável, que deve ter vindo do mundo das ideias platônicas. É a volta da retórica, do filósofo que chama atenção para si, como faziam os sofistas. Nesse ponto, Schopenhauer não era muito distinto de seu arquiinimigo. Buscando a verdade, Schopenhauer. tenta ser preciso e universal, mas involuntariamente nega o científico e introduz a poesia na filosofia, como mais tarde Nietzsche confirmará e como o provará um batalhão futuro de outros mercenários acadêmicos, muito piores que Hegel, cuja argumentação se funda em trocadilhos e tatibitates. Schopenhauer jamais imaginaria o mal que acabou fazendo, com a melhor das intenções, ao rasgar o véu de Maia. Ora, mais tarde nos ensinaria Popper que o irrefutável não pode participar de ciência alguma. O que fez Schopenhauer não foi Teoria do Conhecimento. Apenas trouxe à baila uma palavra poderosa.

Quem pode com um ser tão estranho quanto essa vontade, comum a pessoas, animais, plantas e pedras? Tal coisa é, no fundo, nada mais que outra versão do minúsculo bule celestial de Russell, que rodopia em órbita elíptica em torno do Sol. Aceitando o seu conceito novo de vontade, tudo o mais é aceito no discurso de Schopenhauer: o papel da arte, a ascese, a necessidade de meditar, a noluntas. Um edifício inteiro pode ser construído em um segundo após apresentação de elementos irrefutáveis. Uma teologia da vontade, se alguém quisesse, teria nascido aí. Por sorte, Schopenhauer tinha poucos fãs enquanto viveu.

Pouca gente percebe que o século XIX é tomado por obsessões. Uma delas é o sequencialismo, presente nas etapas hegelianas, na cadeia ascensional schopenhaueriana de seres na força da natureza (do vegetal ao humano) e no ridículo conceito de progresso de Comte (da teologia à ciência positiva, passando pela metafísica). Segundo esses três autores, tão diferentes, há, entre os pressupostos assumidos, uma necessidade na sequência de etapas e, tendenciosamente, julgam-se as mais antigas não só como as menos preparadas para o mundo, mas também, cronocentricamente, a última etapa (diga-se de passagem, aquela na qual o filósofo está) será invariavelmente a melhor e a mais bela. Talvez só Marx, que passava tantas necessidades materiais no presente, tenha adiado, naquela época, a melhor das etapas para o futuro, como faz o cristianismo.



Comte era dez anos mais novo que Schopenhauer e morreu três anos antes dele. Por mais que sejam indialogáveis, há semelhanças que saltam aos olhos, das quais Hegel não dista tanto. O primeiro disparate é a questão da causalidade: síntese das categorias kantianas para Schopenhauer, mas peça inútil no sistema positivista, a causalidade parece ser um ponto nevrálgico nas duas concepções, assim como era a phýsis para os pré-socráticos. Comte, papa de sua própria religião, citando trechos inexistentes de Aristóteles, endeusando a sua amada e sua mãe numa curiosa antítese religiosa,  é a prova de que a máquina racional pode parar a qualquer momento por inação. À busca de epifanias, Comte, que era culto demais, resolveu um dia parar de ler, numa espécie de arremedo de revolta socrática com a escrita. Ora, todos sabemos que Alzheimer existe e melhor besuntar a memória sempre, pois, mesmo que funcione mal, nossa insistência é melhor do que deixá-la ao léu enferrujando. Por mais benevolente que queira ser, pergunto-me, muitas vezes: por que levar a sério uma figura como Comte, por que o citar entre os filósofos, se não se diferencia do mais boçal comentarista de boteco? Comte é estranhíssimo, superficial, esquisito, chega a dar pena do seu raciocínio, que beira a insanidade. Por que está em toda antologia de filosofia e não, por exemplo, outro esquisitão, como Antoine Court de Gébelin?

Será que por trás dessa loucura haverá um gênio que não enxergo?  Normalmente por trás da loucura só há loucura. Nesse caso, uma loucura tristemente canhestra que sistematiza o senso comum. Sua aversão às causas só pode ser explicada biograficamente, pelo seu triste relacionamento amoroso e familiar. Comte quer esquecer e nada melhor para conseguir seu intento do que abandonar o conceito de causa. É assim que se faz quando um ser deprimido por seus pensamentos quer tomar uma atitude enérgica e é subjugado por um espírito de heroísmo, de canalhice ou de crueldade. É assim talvez que também tenha agido Schopenhauer ao dizer que o fenômeno é uma ilusão, embora, diferentemente de Comte, não tenha perdido a sanidade mental.

A razão que pifa torna-se teimosa, já nos alertam, de várias formas, filósofos fleumáticos como Russell e Popper. A entrega ébria ao irrefutável, presente em Hegel, Schopenhauer e em Wittgenstein, é uma saída à detecção dessa teimosia. O dogmatismo está sempre nas sombras do nosso lado insano do raciocinar hominídeo, como Nietzsche nos parece sempre estar mostrando nas suas profecias. Comte foi incapaz de enxergar isso tudo. Nesse ponto, o meu desprezo de leitor mistura-se com alguma pena remanescente do meu cristianismo da infância. Lê-lo me deixa impressionado e cheio de comiseração: ele não poderia ter feito melhor. O que não impede de ser um mau menino, quando, como Platão e Hume, resolve queimar todos os livros que não sejam do seu gosto. Por conte, só existiriam 13 poetas. Pouco se aproveita do palavrório de Comte. É verdade que nos impressiona seu lado feminista, insight que atingiu por certos caminhos tortuosos, nos quais Clotilde de Vaux (ou a sua idealização beatriciforme) lhe levou uma luminária à frente. Sinceramente, a sociologia poderia ter tido um fundador mais digno.




Fato é que Schopenhauer, trazendo um elemento espúrio à razão, proveniente de um mundo das ideias qualquer, um elemento ad hoc cujas raízes apenas se alicerçam na poeticidade de algumas tragédias pessoais, Hegel, trazendo um método confuso, delirante e contraditório cheio de impáfia e profecia, e Comte, trazendo um arremedo simplista de fatos e de metas, conseguiram - os três juntos - moldar a modernidade da filosofia sobre três facetas demasiadamente antiiluministas, a saber, o mistério, a obscuridade e a futilidade, raízes do futuro pseudocientificismo e do vago psicologismo. Dando assim uma nova aura medieval àquilo que é pós-setecentista, são precursores de tudo que é hoje mecânico, galopante e ultrassônico, em suma, da mais profunda ignorância atual. O Ocidente parece que está no seu fim, de fato, como dizem os orientais. Essa morte começou faz tempo, em meados do século XVIII, bem antes da Revolução, no meio da tagarelice francesa e da maluquice alemã.

Pois bem, cadê a razão de que o homem branco ocidental moderno se vangloria? Que alternativa tem de fato, a não ser os acordos de paz, após as guerras que se arrastam após a mais absoluta irracionalidade? A paz não se funda na lógica nem na ciência, muito menos na religião. A paz é gerada a partir da tolerância, que não é prerrogativa nem descoberta de nenhuma linha filosófica, de nenhuma conclusão científica, de nenhum mensagem divina. Pax, shalom, salam, palavra tantas vezes entoada, que não significa nada quando não se quer dialogar. Comte achava que essa paz se encontrava no ritualismo de sua seita positivista, espécie de irmã gêmea do catolicismo. Schopenhauer achava que essa paz vinha de uma noluntas  quase budista. 

Mas, espere um pouco: o que isso tem a ver com filosofia que se vinha fazendo até então? Nada. Não fora por Stuart Mill e alguns neokantianos menores, Hume teria de esperar dois séculos para que fosse novamente acompanhado. É assim que acontece quando explodem revoluções, com grandes intenções e pouco controle. Em vez da receita positivista da Ordem e Progresso, temos o infernal ciclo de retrocessos humanos, que não acompanha qualquer trajeto divino ideal, tal como Vico já percebera tantos séculos antes. Homo sapiens... que piada de mau gosto a de Lineu quando te nomeou! Atitude típica de quem crê que o melhor momento é agora. O nunccentrismo nunca esteve tão forte. Todavia, o momento já atingido só será avaliado no futuro, se nele houver mentes sãs. Espere a decadência e verá como ela lhe parecerá infinita, ó ser que se julga imortal!