O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

sábado, 6 de abril de 2013

ESSÊNCIA: QUE É ISSO?

Há tempos cheguei à conclusão que  eu não sei o que eu sou, mas, paradoxalmente, muitos parecem saber. A reação inevitável nesses momentos de lucidez é a de gritar: se você sabe quem eu sou, por gentileza, diga-me então quem você é. Para não parecer exagerado, confesso que consigo ponderar às vezes que há coisas, sim, que me dão alguma certeza do que eu sou. Por exemplo, eu sou um vertebrado, mais especificamente um mamífero. Eu sou um terráqueo; sou brasileiro e professor.
 
Com certa falsa modéstia, lamentamos a pobreza de vários idiomas que não distinguem, como nós lusófonos, os verbos ser e estar. Mas será que essa distinção é de fato significativa e justifica nosso orgulho infantil? Parece-nos evidente que estar é algo provisório, completamente distinto do apelo ao essencial de ser algo. Por um momento, diria que não há nada mais lógico. Na mitologia das opiniões, dizem até que houve algum filósofo alemão que louvou esse brilhante insight ibérico - quase natural e revelador de uma verdade acessível a outras culturas apenas por meio da reflexão. Parece simples: o estar revela algo fluido, heraclitiano, o ser é platônico. Ponto.
 
 
 
Mas o erro está em pensar que as duas coisas se opõem. Entre o mundo das ideias e o pánta rheî há uma coisa muito confusa e misteriosa gerada pela mente humana. Vem dela parte da pasteurização que divide coisas que sãocoisas que estão. Uma maçã específica está podre porque ela não é podre por natureza: já foi boa de se comer e agora não é mais. O estar nesse caso não seria mero recurso descritivo de nossa visão utilitarista e pragmática? Afinal, é mais importante vermos as maçãs como coisas para ser comidas do que como fruto de uma rosácea. Penso: qual seria a palavra que designaria o contrário de sua podridão? Qual é o caráter eterno de sua essência, estranhamente abalado pela podridão passageira? Não há palavra que sintetize a não-podridão, o ideal de toda maçã comestível: recorremos a uma negação para afirmarmos que a maçã é não-podre.
 
Em russo não há nem verbo ser nem verbo estar, ao menos no presente. As línguas eslavas costumam fazer o tempo passado com o verbo ser e um particípio, variável em gênero e número. Em tcheco é assim que se faz, exceto na terceira pessoa, quando o verbo ser é omitido e fica igualzinho ao russo (nessa língua, a omissão se dá em todas as pessoas). Uma pessoa conhecida, da República Tcheca, ao saber como o passado é feito em russo, ficou surpresa e exclamou: o russo é mais lógico! Pra que o verbo ser? Ele não significa nada. Talvez esse insight só fosse possível em uma língua cuja omissão parcial é possível. Não sei se um falante de português concordaria.

Quando descobri que em iorubá há vários verbos que traduzem o nosso ser e estar (pelo menos nove), fiquei bastante surpreso, talvez tanto quanto um alemão ao se deparar com a abundância de nossos verbos auxiliares. Essa multiplicidade não é enganosa. Há, de fato, muito mais coisas por baixo desse iceberg.



Comecei a pensar nisso quando li uma passagem no livro Musicophilia, onde Oliver Sachs, a certa altura de suas deliciosas narrativas médicas, se considera (como muitos) um judeu ateu. Mas que é um judeu ateu?, pensei eu. Sou eu um católico ateu? Obviamente não há contradição a não ser se fizermos uma leitura ingênua. Dizer isso tem algo de metafórico e pelo contexto se depreende claramente: Sacks vivenciara, na sua infância, um ambiente de músicas, comidas e tradição judaica, embora seja hoje um ateu. Pela mesma lógica que mescla passado e presente, poderíamos dizer que Michael Jackson era um negro branco. Não ouço com frequência definirem os velhos como jovens velhos nem os adultos como crianças adultas, mas a graça das expressões acima é de uma grande profundeza filosófica.

Sim, somos crianças adultas. Disso estou convencido e Freud também. A memória de nosso passado nos acompanha e não nos abandona nem mesmo quando surge algum tumor cerebral que nos impede de adquirir novas informações.  Ainda somos alguém, mesmo presos no passado, mesmo que essa essência seja gritantemente distinta do que dizem que somos. É o caso de Jimmie G., the lost mariner, que pensava ainda ser jovem e que seu irmão já casado ainda era noivo de sua atual esposa, pois não retinha memórias recentes, como Leonard Shelby, do perturbador filme Memento (2000).

A frase de Sacks lembrou muito a de uma ex-professora de alemão que se definia por meio de todo seu percurso religioso, dizendo-se judia testemunha de Jeová adventista do sétimo dia. E de fato penso que era isso tudo, a ponto de, ao envelhecer, coerentemente vender tudo para ir a Israel e lá passar seus últimos dias. Na sua lógica, corroborada por versículos bíblicos escolhidos com esse fim, só os que estivessem lá seriam arrebatados na vinda de Jesus. Mesclando tudo na sua religião pessoal, praticava aquilo que achava correto nas três religiões, mas era uma eterna dissidente. Como a mescla é inerente do ser humano, cheguei à conclusão que esse comportamento singular não é exceção.
 
Não há paradoxos óbvios quando os adjetivos revelam campos semânticos distintos. Obviamente ser um brasileiro ateu não causa qualquer surpresa, pois se trata de dois conjuntos que não se ancoram na mesma realidade. Mas que significa ser brasileiro? Meu bisavô, pai de minha avó materna, era africano. Sou africano também? Ou sou espanhol, porque meu outro bisavô, pai de meu avô materno, era andaluz? Ou italiano porque, da parte do pai, todos vieram de Rovigo? Seria mais sensato dizer que sou brasileiro, porque nasci no Brasil e me sinto brasileiro, mas já vi mais de um brasileiro que se sente italiano por causa da sua ascendência e, por isso, se diz italiano (com cidadania italiana e tudo). Portanto, ser envolve razões reais e psicológicas. Não é tão simples assim to be or not to be...
 
Por exemplo: eu sou professor. Mas não o tempo todo. Sou porque a minha vocação, a minha carteira de trabalho, a sociedade e tudo o mais me transformaram performativamente num professor. Mas não era professor antes de ser um professor. Sou então um não-professor professor? Devo ser professor agora sempre e em qualquer lugar? Era o que pensava  Immanuel Rath do filme Der blaue Engel (1930), puxando as orelhas dos alunos, fora de sala de aula: mesmo que fosse preciso entrar num cabaré para discipliná-los. Ironicamente é num cabaré que encontrará Lola-Lola.

 
Digo com frequência que sou um primata (e o faço com convicção), mas já ouvi de uma amiga católica fervorosa algo como: só se você for, pois eu não sou coisa nenhuma. Pela definição biológica, eu tenho razão: ela é primata tanto quanto eu. Mas não se sente assim. É seu direito, pois o verbo ser tem essa ambiguidade: sou o que sou, mas também sou o que sinto ser. Em alguns casos, a definição dá tão pouca margem a metáforas que não há contradição possível. É o caso quando digo que sou terráqueo e que sou vertebrado. Quando a definição inexiste, reina a metáfora. E o ser, como tantas palavras, sofre de metaforite.

Aplicar a si frases como sou bom, sou honesto ou sou inteligente revela falta de modéstia ou prepotência. Os outros que devem dizer, não eu. Mas os outros têm rótulos demais. Por exemplo, o que significava ser subversivo na época da Ditadura militar? Era quem se opunha à situação política de então. O que significa ser reacionário nos dias de hoje? A mesma coisa.  Uma mesma pessoa, que sempre questionasse o governo, independentemente das suas qualidades, poderia ser definida hoje como subversiva reacionária? Sim, mas há de se convir que é um rótulo estranho. Quem mudou nesse caso? Ela ou a sociedade?

Sempre achei deliciosa a fala das personagens de Nélson Rodrigues. Vez ou outra, a personagem faz um discurso em que apresenta à plateia suas fortes convicções e conclui com a frase "Eu sou assim". Como se firmasse um contrato com os ouvintes, essa frase evidencia invariavelmente a sandice da personagem e sua total inconsciência de si mesma. Só alguém muito certo de seus valores (e, portanto, tão inconsciente quanto a personagem) não se identificaria nesse momento.
 
Alguém poderá tentar refutar-me: peraí, eu sei que não sou muitas coisas. Mas o não-ser não é definitório, já sabia Aristóteles. Pois bem. Digamos que eu diga, pense ou me convença de que eu não sou cruel. Parece ponto pacífico: não faço mal a ninguém, não maltrato nem uma mosca. Portanto, faço jus ao título de não-cruel. Certeza passageira. Virá certamente alguém e me interrogará: você come carne? Se disser sim, uma longa cadeia de raciocínios e fatos me mostrará que pactuo com a matança de animais para satisfazer a minha necessidade carnívora. Muitas vacas são abatidas cruelmente. Se não sou cruel, pactuo com a crueldade e isso não me isenta. Indiretamente seria uma prova de que sou sim cruel.
 
Entramos num campo ainda mais sutil:  alguém é algo não só por uma definição ou por um julgamento, mas por estar numa cadeia de acontecimentos, concordando ou não com eles. Por mim, todas as vacas viveriam, porque hoje sou incapaz de matar um animal. Capturado pela contradição de estarmos nessa rede, somos muitas coisas que não sabemos. Somos mais responsáveis do que pensamos por tudo que criticamos. A culpa não é só deles, mas principalmente nossa. Muitas guerras aniquilaram muitas vidas por causa desse raciocínio: não importa se você é a favor ou não das atitudes de um dirigente doido: sofrerá apenas por estar na cadeia dos acontecimentos, pois está ligado indiretamente a eles. Situação e oposição não andam de mãos dadas, com certeza, mas, entre elas está uma terceira amiga, a injustiça. Se prevalece momentaneamente a opinião de qualquer uma das duas, é a injustiça que sempre se fará ouvir.
 
As línguas são deficientes. Suas regras são contraditórias e seu vocabulário é ambíguo. Servem para expressar pensamentos, que, por sua vez, são invariavelmente confusos. Pobre bicho humano, pretensioso ao máximo. Mesmo assim, arrogamo-nos em uníssono: eu tenho sempre razão e você é isso ou aquilo.