O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

O PREPÓS

Afinal, o agora, o presente, o que é?

Para além da obviedade de ser o que vem antes do que virá depois, há no presente muito de inusitado.

Faz sentido falar de uma preposteridade do momento atual. Por alguma daquelas injustiças, que só os rótulos conseguem trazer consigo, o prepóstero é entendido como alguma coisa invertida ou algo às avessas. No entanto, eu diria que, se nos é permitido atribuir algum grau de importância às coisas, o absurdamente invertido é, na verdade, querer falar sobre a parcela óbvia que existe no bojo do presente, avessa a toda profecia, pois já passou, e à qual poderíamos chamar de pospretérito, isto é, o que vem imediatamente depois do quem antes. Que cuidem os exegetas e os historiadores da pospreteridade!

Já o prepóstero, o que terminologica- e etimologicamente significaria o que vem imediatamente antes do que vem depois, é algo que reluz o desejo de incógnitas futuras, as quais, ao fim e ao cabo, também fazem parte do mesmíssimo presente. Curiosamente, nesse prepóstero estaria até mesmo o tal futuro do pretérito: se o futuro, por definição, não se concluiu, como falarmos sem profetizar do que virá depois de uma parcela dele, como se isso que viria, de tão certo, já estivesse acabado? Para mim, nesse raciocínio institucionalizado pela língua sim reside o absurdo, pois tanto futuro do presente quanto futuro do pretérito nada mais é que a parcela prepóstera do ambíguo presente.

E já que estamos no presente - sempre - no final de ano sabidamente se antevê o que deverá ser o futuro em nosso votos. Nada mais justo de acessarmos neste mês a divina parcela prepóstera do ressequida brasa do pospretérito presente a infinitamente apagar-se. Só há um problema: como fazê-lo?

Uma dica que nos dá os non sequitur de nosso raciocínio tão caro quanto simiesco é esta: uma vez que algo ocorreu, sempre ocorrerá: cai o bebê nos primeiros passos, magoa-se e faz a sua primeira promessa (que se confunde com a causa de Hume): "doravante não cairei jamais". E seguirá, assim, nesse juramento cambaleante, de modo que a promessa se converte em fé, em convicção e em autolouvor. "Eu sou assim", diria uma personagem de Nelson Rodrigues, isto é, nós mesmos. Desculpa se já te desagradei no meio de meus votos, caríssimo.

Nesse tombo do bebê, que é o germe da convicção de nossa espécie, que disseram ser especial, amarra-se a memória, amarra-se a sociedade, amarra-se toda nossa fantasia. Eis-nos, enfim, humanos, com toda a pretensão do mundo, típica de seres que andamos eretos. Pois bem, estou aqui, meu caro, pelo meu décimo dezembro, para falar-te do que virá, isto é, do meu desejo travestido de augúrio. Espero que me leias desta vez: o número dez tem algo de místico, porque na sua falta de imaginação sintética, foi preciso segmentá-lo entre um e zero, muito embora a palavra "dez" não lembre nem a palavra "um", nem a palavra "zero": sendo o último dedo da segunda mão numa contagem, é bizarro que a lógica decimal não lhe tenha requerido um algarismo, postergando assim o milagre da recursividade (bem como a sua enfadonha repetição analítica) para o onze. Eis o X da questão, para além do misticismo tosco, obviamente.


Pois bem, em 2012 eu pedia que os zumbis fossem salvos, porque intemeratos e incapazes de devorar a si mesmos, pagavam pela sua feiúra, contudo, cada vez mais, temos medo de perder algo e de deixar de ser algo. O que perderíamos sendo zumbis e o que deixaríamos de ser, não sei até hoje, no entanto, o medo está aí e, em vez de desejarmos ser devorados, naufragamos na insatisfação, cada vez mais intensa, amando cada vez mais, odiando cada vez mais. Deduzo que, numa onda crescente, passamos a gostar da concorrência, da angústia e da morte. Deveria desejar isso a todos, já que parece ser o que procuramos cada vez mais?

E foi justamente isso que se buscou no ano seguinte, de modo que em 2013, ano do incêndio da Boate Kiss, da renúncia de Bento XVI, do atentado de Boston com seus 282 feridos e do Movimento Passe Livre, eu percebi a evolução desses desejos, corporificando-se, adquirindo a forma de um inimigo self-service, seja no julgamento do Mensalão, seja com os médicos cubanos vindo ao Brasil: acusando-nos mutuamente, concordávamos na nossa inimizade mútua e na nossa autoinimizade, a qual, somando-se à concorrência e à angústia, a discórdia, a ironia e a acusação, dava certo charme ao nosso desejo de morte, na bastante conhecida dança infinita e apaixonada do autoengano.

Mas entre o pós-2013 foi o pré-2015, no dezembro de um novo e terrível ano intermédio, que, naquela época, se chamava "presente", passada a anexação da Crimeia pela Rússia, o estresse hídrico após o menor índice de chuvas há décadas com direito à poluição fluvial de Salto e a seca do Rio São Francisco, a Copa do Mundo no Brasil num fragoroso 7x1 para os alemães, o record de calor, os absurdos do ISIS e do Boku Haram, bem como o surto de ebola com mais de 7000 mortos, sentimos a polarização tucanopetista cada vez mais com a reeleição de Alckmin para o governo paulista e o escândalo da Lava-Jato no nível nacional: não foram esses ânimos à flor da pele que fizeram o rei Juan Carlos abdicar naquele ano, nem a Escócia ter-se mantido no Reino Unido, nem o beijo gay da novela Amor à Flor da Pele, mas fato é que o opiniúdo smartphone decolou, com redes sociais e tudo, antes confinadas a computadores, e, com ele, a ideia de que podíamos fazer a diferença, com nosso ponto de vista, dormindo no bolso de nossos amigos e amigas. Pousamos num cometa naquele ano e anunciou-se (para a lembrança desgostosa dos futuros antivac, criaturas ainda caladas e pouco perigosas até então) que nenhuma pessoa havia morrido de sarampo no planeta. Nesse contexto tumultuado, eu queria apenas que essa agitação toda fizesse que todos deixassem de privilegiar os laranjais aos besouros e as buzinas às pererecas.

Passou aquele ano (então terrível) e 2015 parecia, para nossa decepção, xerocópia do pospré: o atentado contra o Charlie Hebdo, do teatro Bataclan, do Le Petit Camboge, das destruições de museus iraquianos, de Nimrod e de Palmira. Bento Rodrigues arrasada, o suicídio-homicídio de Andreas Lubitz, o terremoto do Nepal, o incêndio do Museu da Língua Portuguesa simultâneo à inauguração do Museu do Amanhã, tudo isso enchia nossas sensíveis mentes de lamentos. Havia quem quisesse beber a água de Marte em seu delírio e cada vez mais delações pipocavam, cada vez mais microcefalias misteriosas surgiam... de que adiantava a foto de Plutão e o viagra feminino, de que adiantava que mulheres fossem eleitoras na Arábia Saudita, de que adiantava o fim da política do filho único da China, do desbloqueio político do Irã, da participação de Cuba na Cúpula das Américas, se a profecia do retrocesso começava a se cumprir, não só no erro do primeiro lugar da Miss Universo de 2015, mas no feminicídio e no aumento da intolerância racial, religiosa, sexual e política? Prova de meu desgosto foi eu não ter escrito nem junho, nem setembro, nem novembro e esse abominável ano pareceu-se muito com 2021, mutatis mutandis. E antevendo os cancelamentos, leitor, começamos a lançar-nos invectivas mútuas, na evolução estática em que nos encontramos até hoje.


De novo trocamo-nos beijos e votos, mas no reboliço do ano de 2016 houve quem tolerasse os excessos jurídicos e verbais de tantos indignados: a morte de Harambe antevia as florestas do futuro em chama, mas ninguém percebeu esse ato de prepotência humana, afastou-se Fabiano Silveira e, interessantemente, logo a transparência, a fiscalização e o controle se tornaram, de um só golpe, opacas, desfiscalizadas, descontroladas; num ato de sincronicidade, os portões do Inferno se abriam rangindo lentamente, falou-se de até 30 envolvidos no absurdo estupro coletivo do Rio de Janeiro, recomeçaram tensões raciais em Dallas, em Nice mais de oitenta morrem num atentado e em outro, cinquenta outros numa boate gay americana, para não esquecer dos 125 mortes do caminhão frigorífico em Bagdá. Os cientistas nos acalmavam com sua poesia: Einstein estava certo sobre a Teoria das Ondas Gravitacionais quando dois buracos negros se fundiram nesse ano, o papa Francisco também nos acalmava ao se encontrar, depois de séculos, com o patriarca russo... aliás, para nosso alívio, quase duas dezenas de medalhas de ouro foram exibidas no nosso pescoço olímpico e paralímpico brasileiro, enquanto isso, tonitruava o rumor do impeachment de Dilma e mais um avião caía, agora com a equipe da Chapecoense. Erige-se, quase simultaneamente, o primeiro mandatário alaranjado norte-americano e grasnava o tão comentado anatídeo curitibano. Bob Dylan ignorava o Nobel, em harmonia com o Brexit que ecoava no noticiário. Morria Fidel, mas seu espírito comunista assombra os que não acreditam no Capital mas cada vez mais no capital, de tão moldados que sempre foram para ser engrenagens, fazendo o sinal da cruz para a inflação de 700% da Venezuela. 

Tento respirar: desejando a concorrência e a angústia, parecia que nos entregávamos definitivamente ao desejo da morte, discordando infinitamente de tudo, acusando quem passasse na nossa frente, ironizando até mesmo aquilo que outrora nos fazia chorar copiosamente e nos traumatizava. Finda a esperança da síntese dos laranjais com os besouros e das buzinas com as pererecas, vimos ódio nos olhos de nosso irmão, antes com a Bíblia na mão, agora com o iPhone, excitado na masturbação de seu autoengano, parado, congelado, na profecia de que a segunda década terminaria como a primeira, afinal, o rótulo "anos 20" é genérico e serve tanto para o século XX, quanto para o XXI. Para a ebriedade de outrora ser vivida pelos que não viveram há cem anos, faltava apenas um líder e já se esboçavam os imperativos categóricos em que cegamente iríamos pautar nosso raciocínio errático. E de prosélitos o Inferno está cheio, todos sabemos, cada um com uma premissa mais absurda que a outra, cada um com as conclusões mais indefensáveis estampadas em suas bandeiras.

O ano novo de 2017 começou com mais de cinquenta mortes no presídio de Manaus e com outras tantas numa festa de réveillon em Istambul. Retira-se Janot, sobe Dodge, e eis que todo turbilhão dos anos anteriores começa a cheirar como se fosse passado distante: "não há impeachment para o vice-presidente"?, não, arrasta-se o amargo do fel em nossas bocas; "não há transpacíficos acordos?", não, pois ecologia virou assunto do passado. O império da governança idiossincrática e egoísta parece ter sido anunciado pelo franco-atirador de Las Vegas; o império da negação do mundo, cada vez mais desagradável, parece completar o círculo dos algarismos, com os 100 anos da Revolução de Outubro, os 300 de Nossa Senhora Aparecida e os 500 da Reforma Protestante. As denúncias pipocam e atingem até mesmo os acusadores: nenhum dos dois lados da polarização tem mais razão e os adeptos da Justiça a todo custo começam a migrar para o radicalismo (mas só uma das partes é punida, fique claro). Discute-se o transexualismo com ódio típico dos que não sabem o que é empatia e de quem sequer imagina do que se trata, todos são agora especialistas em arte na polêmica do MAM, os grafitti se tornam intoleráveis e, ao mesmo tempo, despacito, comemora-se o heptacampeonato do Corinthians, o tricampeonato da Tricolor, o pentacampeonato do Cruzeiro. Por trás das cortinas, a Inglaterra dá adeus à Comunidade Europeia e a Catalunha quer seguir os mesmos passos, a febre amarela urbana retorna, em meio à epidemia de prisões de figuras públicas e ao naufrágio das leis trabalhistas. Nessa tabula rasa, limpei a mesa de meu escritório, cheio daquele escárnio rollingstônico de que não teremos jamais satisfação, duvidei sobre a realidade da realidade naquele momento e apostei todas minhas fichas na piora de 2018.

E eis que, logo, o pospré nos diria tudo de fato: os demônios já à vontade deram suas caras, com o assassinato de Marielle Franco, a morte do repórter turco na embaixada da Arábia na Turquia, a intervenção militar e o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Em meio a uma greve dos caminhoneiros, desaba o edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu. Ídolos com pé de barro: só se falava de corrupção passiva, de lavagem de dinheiro e do escândalo de Abadiânia. Os vulcões todos resolveram entrar em erupção. Feliz foi o rinoceronte branco, que se extinguiu nesse ano, cuja alma perissodáctila foi para Icarus, a estrela mais distante do espaço, bem longe de Marte, onde pousou a sonda Insight. O fim da dinastia Castro dava uma nota de fundo à dodecafônica eleição de um presidente brasileiro que assumiria no ano seguinte com sua intérprete de Libras em joelhos. Pasmo de como seria o ano seguinte, beijei pela última vez os lábios da Esperança, nos seus estertores, tendo sucumbido já sua irmã gêmea, a Tolerância, e invoquei a convivência daquilo que me era tão estranho, praticamente impensável a despeito de meus dons de profeta.

Enfim, meu caro leitor, se relato tudo isso para avivar tua memória, é porque conheço a tua pouca afeição ao pré para agarrar-se com todas as forças no pós. Se me releres, verás que a cada momento, desejei de todo coração a melhora, embora as evidências me mostrassem em ato contínuo, o desabamento inevitável e a crescente degradação. Pois bem, caríssimo, podia dispensar-me agora de falar sobre o coronavírus, algo tão óbvio que nos aguardava, cuja previsível chegada diversas vezes anunciei veladamente antes de sabermos onde fica Wuhan. Disso tudo te lembras e desnecessário é repisar a estagnação do tempo cada vez mais óbvia, à medida que caminhamos para a década de 30, agora sem getúlios vargas. No ano de 2019 foi tudo igual: a barragem de Sobradinho matou mais de três centenas de brasileiros, Notre Dame pega fogo, a enchente de Veneza, atentados em Suzano, na Nova Zelândia e no Sri Lanka, a revolta da prisão de Altamira, tudo isso pintou a paisagem de fundo para as manchas de óleo do litoral do Nordeste que anteviam a exoneração de Ricardo Galvão e os desmatamentos históricos da Amazônia,. A volta do sarampo (lembras-te? estava erradicado linhas acima), a nefasta Reforma da Previdência que desafiou nosso tédio com o cinismo da imprensa e o desmascaramento de Moro instalou o niilismo necessário para um presidente sem partido. A falta de fé se converteu em sarcasmo e eu orei a São Augusto dos Anjos, de quatro, lambendo a frialdade da terra. Era o poder do invisível que se anunciava.

E o vírus chegava, enfim, em 2020, junto com a morte de George Floyd, o apagão de Macapá, os incêndios florestais, o desmatamento e o fim de tudo que é eterno. Nem a vitória do que destronou o Presidente Laranja nos tirou do assombro, da tristeza, da apatia, do apatetamento, da carrasca transfiguração, digna de uma pintura de Francis Bacon, do escorregador-moedor-de-carne existencial de Cioran: tudo que restava ainda de sólido se desmanchou completamente no ar, sem dar espaço nem mesmo ao absurdo. Vendo um tal Queiroz sentado no sofá, nossa cabeça caiu no chão, como a de Samuel Paty, não haveria mais Olimpíadas em Tóquio, vimos mais uma fraude de Lukashenko: ao lado da dor, o escárnio infinito e do sadismo, anuncia-se diariamente que não há mais saúde, nem justiça (porque nunca a houve e nunca isso ficou tão evidente quanto nesse ano) nem haverá mais cultura, lasciate ogni speranza e essas foram as provas cabais de que não há nada senão a sanha do tilintar das moedas nos bolsos, caminhando sobre cadáveres das celebridades, celebrando o novo com uma tocha na mão. Houve quem atribuiu tudo isso ao azar e eu fiquei babando de inveja da imbecilidade de quem crê nisso piamente.

Começou o ano de 2021 com sua avassaladora segunda onda pandêmica, em meio ao indecente pogrom indígena e prosseguiu com o incêndio do galpão da Cinemateca Brasileira, com as panes do currículo Lattes, do sistema do CNPq e do Ministério da Saúde, tudo temperado com o ainda mais indecente negacionismo. Tive de ouvir tanta idiotice, leitor, tive de brigar com tanta gente até então sensata, tive de ouvir questionamentos sobre a necessidade de manutenção da demarcação de terras indígenas e sobre o direito à caça esportiva, tive até mesmo de me defender por existir como homem, como caipira, como ateu, como branco, como paulista beneficiado pelo infame patriarcado; supliquei a meus amigos e às minhas amigas que vissem nos fatos do passado as poucas chances que a vida me ofereceu, sim, a mim indivíduo (esse ser não-sociológico) e a pobreza de meus antepassados que esfumaçara muitos tenebrosos anos que compuseram minha biografia, mas capitulei: cheguei a pensar, como eles todos e elas todas, que me circundam em sua matilha com seus argumentos simples e contundentes (cocaína cheirada no Facebook, crack fumado na boca do Twitter), que eu sempre tive razão a minha vida toda e que todos e todas à minha volta, incapazes de fazer sua autocrítica, relativizavam até mesmo o que existe per se. Pensei em completar meu "raciocínio" afirmando que falavam dessas coisas com vocábulos educados, mas, no fundo, não passavam de vis cúmplices idiotas desses desastres todos aqui narrados e ainda dos que estão por vir. Calei-me, contudo, ouvindo a sabedoria daqueles idiotas e daquelas idiotas em seu desprezo acusatório, destacando sempre supostos defeitos em outrem, como se fosse possível conhecer a alma de alguém do alto de sua autoglorificação artificial. 

Quase não escrevi este ano, leitor, e, por inúmeras vezes, perdi a vontade de abrir a boca e de digitar qualquer coisa, uma vez que pareço estar nadando, com a barriga rasgada, num rio infestado de candirus e piranhas. Antes fosse isso: meu corpo, pelo menos seria útil à alimentação dessas criaturas inocentes, que penetrariam nos meus cortes e me devorariam até só deixar somente meus ossos. Seria uma morte mais feliz do zumbi que te narra tudo isso.

Meu fiel leitor, que me queres bem, se há alguém assim neste mundo egolátrico, que não observas nem minhas malcolocadas vírgulas, nem as palavras deste ser humano determinado pela nascença a ser apedrejado e que não pactuas com crimes pretéritos ou futuros, sê feliz com a porcaria do vindouro ano de 2022 e se não podes deixar-me em paz na tua sede de sangue, maior que a dos candirus, procura a tua paz e não te preocupes se vou ou não encontrar a minha.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

UM BRINDE AO HISTRIÃO

Meu amigo Nelson, que não é o Rodrigues, uma vez me veio com esta:

O Bom Deus um dia acordou inspirado e, mesmo tendo concluído a Criação, resolveu dar uma colher de chá à Humanidade, recém expulsa do Paraíso, que rastejava sobre a face da Terra depois do Dilúvio:

- Do alto de Minha Graça darei a esse ser humano, perdido desde sua origem, a Minha melhor criação. Será um ser profundamente abdicado: a maldição do trabalho, que até agora só vem da extenuante fadiga e é extraído mediante o suor de seu rosto, se converterá gloriosamente em modesta Sabedoria: não o conhecimento que lançou os homens para fora do Éden, mas o que promova o Bem. A dúvida humana que fez tantos perderem a fé e descrerem de Mim se transformará em progresso benevolente e equilibrado, alegrar-se-á com o sucesso alheio e defenderá tudo o que é Justo. 

E o Senhor assim criou um ser luminoso, sábio, bom e justo. Nesse dia, Deus criou o professor universitário.


Satanás, que como todos sabemos, é um tremendo dum canalha, não se conformava. Vendo aquela obra formosa de Deus, a mais perfeita de todas, resolveu dar o troco:

- Não será uma nova criação dEle que me destronará deste mundo odioso, valendo-Se dessa Sua irritantemente divina criação. Se o Pai fez um ser abdicado, construirei seu perfeito oposto, o seu antípoda: uma criatura execranda e invejosa, que não trabalhará, nem mesmo sob ameaça dos meus súditos infernais. Será o ser mais altivo, o pior mandrião, o mais presunçoso, irascível, glutão, desregrado, soberbo, avarento, arrogante e cometerá com prazer todo tipo de injustiça, algumas que eu mesmo sequer posso imaginar. 

E lançando uma gargalhada horripilante, que assustou os anjos no Céu, Satã acabava de criar o colega do professor universitário.

Grande Nelson!

sábado, 16 de outubro de 2021

FALÁCIA SEM ARGUMENTOS

Leitor, estou em dívida contigo. É injusto porque és o único que não me lê. Sim, está claramente na definição dos termos: o escritor escreve e o seu leitor não o lê. Nada mais justo para ambos.

Não subestimemos textos curtos. Se não há argumentos quilométricos, também não existem conclusões demasiadamente longas. Qualquer silogismo pode ser tuitado, mas poucos serão retuitados. Há quem diga que a felicidade reside nisso. Eu prefiro abrir o tampo da retrete e vomitar.



sábado, 18 de setembro de 2021

O INDISCUTÍVEL

Houve uma época, no princípio dos tempos, em que algumas pessoas sabiam e outras não. As que sabiam haviam feito um longo trajeto: herdaram a novidade fenícia da escrita, a alexandrina solução da gramática, o vocabulário medieval, a ordem alfabética dos lemas e a enciclopédia, a democratização do ensino, o pré-primário, o ensino básico, o ginásio, o colégio, a faculdade, a pós-graduação, o mestrado, o doutorado, o pós-doc e ei-lo feito humano com H maiúsculo, feito e perfeito após o ziguezague no tempo cultural, ei-lo, sapiente que venceu o triátlon da educação, com a medalha de ouro de erudição, a compulsar alfarrábios, após ter decorado tabelas extensíssimas: introjetaram-se-lhe no cérebro fórmulas em demasia, algumas vindas desde os egípcios e transmitidas pelos pitagóricos, o cogito, o Novum Organum, as questões humeanas sobre bolas de bilhar que nunca se tocam, as soluções kantianas sobre as sinucas de bico, arremedadas por Fichte e estava pronto o chantilly da modernidade, com os questionamentos novecentistas e sua pitada intuitiva, se não zombeteira, e a amarga conclusão da necessidade da secularização de tudo, enquanto chorávamos sobre os cadáveres empilhados de nossos próximos e víamos as ruínas das guerras. Por fim, de batráquio, ei-lo, divo, ereto, apolíneo, senhor da certeza. Fazem bem os que estão ainda rastejando ao olhar para cima e vê-lo luzir, deus entre os homens, os quais, modestamente, chama de irmãos como se fosse um bom jesuíta, consultando calepinos doutrinários da Ética, falando a língua dos seres civilizados.

E esse que se dizia em sua modéstia igual aos que ainda reptilianamente se esfregavam nos seus pés jamais deixaria de ser ereto, pensava em seu auto-engano. Os olhos embotados dos répteis, que o viam quase hipnotizados, como que confirmavam essa sempiterna situação. De onde viria essa ilusória sensação? Sim, ilusória, porque era estrondosamente falsa.


À altura dos répteis, algum desses seres iluminados se dignou a baixar, mostrando-lhe um atalho. Não direi que os crocodilianos tenham sido ensinado a usar redes sociais, porque seria muito óbvio e liquidaria com a poesia desse texto, por isso que a imaginação de quem me lê conclua por si só. E ela concluirá, mesmo que não chegue ao fim das minhas palavras, profetizo eu com denodo. Fato é que, como dizem as más etimologias, em algum belo dia, um divo que odiava a si mesmo (ou que amava demais os répteis, tertium datur) propiciou que os que rastejavam se alcandorassem, de tal forma que hoje não é nada óbvio nem mesmo que répteis rastejem: a maioria não precisou trilhar caminho árduo nenhum como descrito acima, mas já está em pé de igualdade a qualquer divindade, se não estiver acima. E os répteis, na verdade, aproveitando essa momentosa oportunidade, deixaram de existir, termo consensualmente abolido, riscado pela hodierna novilíngua, a qual reza categoricamente que répteis e divos não se opõem mais, nem deveriam ter-se oposto jamais.

E na novilíngua propala-se ainda que nada é indiscutível. Tudo é objeto de discussão, em que, ao fim e ao cabo, uma solução sempre se impõe peremptoriamente, a assim-dita mais comedida de todas, a que deve sempre igualar répteis e divos. Porque nenhuma distinção há mais entre palavras opostas, como sabemos. Tudo que é indiscutível precisa ser urgentemente discutido, para que, ato contínuo, aceitarmos indiscutivelmente a solução. Alguém se lembrou que isso lembra tirania, palavra que não faz o mínimo sentido, lembrou outrem, uma vez que não há mais distinção entre o que é e o que não é tirania. Como se chegou a essa igualdade dos opostos? Não sei distinguir entre a tirania da discussão e a indiscutibilidade da tirania, mas ainda sinto os laivos de que há um quid que não as iguala.

Insone, pensava eu, tentando recordar-me da minha pré-história, mas apenas me vieram à mente as letras fenícias, lembremos, ou as letras cherokee, se logradamente abolíssemos o tempo, as quais foram uma solução indubitável entre o alfabetismo e o analfabetismo: diante daqueles monumentos coloridos do Egito, com seus glifos misteriosos, sentou-se algum arquissinaíta e pensou: "por que me privar do mistério do significado proveniente da ordem e das regras que desconheço? Por que não consoantes, cujo nome ainda não sei? Por que não gerar, qual um demiurgo, no esperma das letras, futuras vogais e acentos? Por que não possibilitar no DNA dessa argila de Adão o escrever na direção que eu bem entender, em vez de seguir os olhos de figuras zooantropomórficas, que caminham entre objetos e abstrações, representando assim as sequências das futuras sílabas no rebus que se afunda no passado obscuro?". E de navegadores, que só queriam cobrar suas dívidas, para rapsodos, que aposentaram sua memória, surgiu um novo status numa sociedade dantes tão desnecessariamente igual para aqueles monolíngues no idioma da violência, dando ainda mais poder ao bando de seus aliados saqueadores, singrando agora por mosteiros, por copistas que ciosamente amaciavam seus pergaminhos, malgrado as vândalas decapitações que a barbárie desburocratizada dos impérios perpetrava, fazendo que o leite derramado por um escravo grego fosse trazido novamente por um árabe culto, razão pela qual São Tomás precisava posicionar-se de algum modo, sem descontentar ninguém, sim, se o leitor não me entende, saiba que estou contando tudo de novo, sim, trata-se da saudosa história dos divos, que não existem mais...

Recupero o fio da meada, sim, eis aonde eu queria chegar: bateu-se o papel sobre a chapa e não mais havia uma cópia, mas cem, mil, milhares, se necessário, para dizer anonimamente tudo, tudo, tudo o que penso, sem que minha cabeça role. Para dizer absurdos, blasfêmias, loucuras, para falar sobre os sábios e erasmiar quanto quiser, sim, o conhecimento vitruviano se misturou novamente com o desconhecido, assim como quando a Academia e o Liceu viram, boquiabertos, um agostiniano misturar o absurdo com o arrazoado. Abrem-se-nos portas aqueles calepinos, mostrando-nos povos completamente nus algures, comendo uma perna humana e, eis que, com uma risada amarela, o divo Montaigne nos zomba, dizendo que ele, ninguém mais, foi o último falante nativo de latim. 

Alguém disse, afinal, relembro enquanto o sono não retorna benfazejo, que isso precisava parar e novamente o velho sadismo bateu à porta dos que lideram, para torturar, sempre em nome do mais sagrado, com um amor e uma piedade que só os divos dizem ter, mas que não comove suas vítimas, chamando atenção de químicos e físicos estupefatos em suas torres de marfim e lá está Voltaire dizendo: que horror se comete naquela península... Enfim, não espanto quando relembro que morre Arouet, morre, Lavoisier! No meio do cheiro de carne queimada, as luzes são apagadas com a fuligem das fábricas.

Sim, já havia havido quem destronasse as personagens do Evangelho e se representasse entre as moldura dos quadros, arrancados das catedrais, em situações comezinhas, com seus filhos e sua senhora; sim, eu sei, mas a fuligem que fez tossir aquele maluco e hipócrita caminhante solitário às margens de Genebra (ou o maluco será seu anfitrião inglês que duvida da existência das causas?), vendo mais uma aldeia antiga esvaziar-se, com famintos indo para a cidade à busca de esteiras rolantes ou dos que recompensarão sua existência mediante o troféu da perfeita mendicância (como hoje vejo quando um imenso jacarandá cai e debaixo dele correm indígenas, já exaustos e amarelos de tanto mercúrio nas águas de seu rio sagrado...), aquela fuligem, eu dizia, é o sinal de que nada mais tem retorno e todos irão para a capital à procura do capital. O resto? Mais do mesmo, cada vez mais, toda vez o mesmo.

E o mesmo, de fato, não tem fim, o mesmo parou o tempo quando todas as assimetrias se julgam regularizadas num horizonte sem fim: o mesmo é a regra para que nada mais haja para se discutir, nada mais além do que já se sabe. Para que Rousseau caminhava, e, junto com ele, Goethe, Humboldt, Garret? Ou a patranha sempre foi a regra desde Marco Polo, desde que humanoides com olhos no peito foram representados nos livros dos navegadores, desde que humanos com rabo foram citados por Max von Versen? Por que no século XXI seria diferente? Alguém conseguiu algum dia erradicar o vírus da estupidez? 

Perdão (despertei de vez), esqueci-me novamente de que não é possível discutir nada mais hoje em dia, pois a verdade sumiu entre opiniões opostas. Epistemes nunca existiram, dizem os que louvam a doxa acima de tudo. Mas, perdão, novamente, tenho mais uma pergunta: se há solução para os opostos, ela seria ortodoxa ou estamos diante de um paradoxo?

Mais que isso: há graus no que é indiscutível? Existe uma média entre coisas indiscutíveis? Há aquilo que é indiscutibilíssimo? 

Exemplifico: nada é mais indiscutível que uma ficção. Ficções são o que são e discuti-las seria perda de tempo, pois não há verdade, senão gozo fruído de sua forma e/ou de seu conteúdo. Digo mais: discorrer sobre algo com uma clareza indiscutível mostra-nos que a indiscutibilidade pode ser algo muito bom. Todavia, ponderando se tal afirmação é de uma imbecilidade indiscutível, nada deve haver de pior. Portanto, nada deve haver mais perfeito que a palavra "indiscutível" para evitar discussões.

Essa minha conclusão parece-me indiscutível. Eis que, ao acabar de enunciá-la, já vejo agora um leitor evocando Hegel sem tê-lo lido, fazendo a síntese das minhas indiscutíveis teses com suas discutibilíssimas antíteses e nada posso fazer para impedi-lo, a não ser vê-lo. Sentado, em minha posição de lótus, vejo-o e vejo-me, lamentando profundamente termos nós dois o mesmo lamentável cérebro bugado, como todo primata.

sábado, 7 de agosto de 2021

NEM RAZÃO, NEM FÉ

“Não! Não! Não!

Eu não vou escrever mais”, decidi hoje mesmo. 

De que me adianta levantar-me, pegar minha pena e traçar palavras mensais? De que me vale escrever longas mensagens encarameladas na mais pura verdade, extraída das minhas vísceras humanas se, depois há uma longa ventania de silêncio ou, quando muito, um adjetivo polido ou uma menção fática do tipo “tem razão”. No mais, apenas o eco das minhas palavras. O mundo se voltou para si. Não há mais o que fazer.

Normalmente pedimos atenção para algo que será esnobado por ser óbvio, mas quando nos mostram algo óbvio, que fugiu de nossa atenção, a bola está conosco: ou mudamos de assunto ou dizemos que isso não importa. É assim que deve ser o comportamento do recatado homem civilizado moderno. É nisso que nos tornaram as redes sociais: um enredamento de coisas evidentes, que sequer merecem comentários. Só cegos não veriam. É nessa terra imaginária que residem os novos sacis e lobisomens. O mundo moderno, cheio de informação, voltou a ser o do nossos avós não só em forma, mas também em conteúdo, porque era preciso que o mistério voltasse a rondar nossa vida tão determinada pela tediosa razão, língua falada por uma minoria. No fundo, o chorado descalabro do retrocesso é apenas o grito travestido do antigo bom-senso, esse boitatá recalcado. "Eu me lembro", alguém dirá, para nosso desassossego.


Ai de ti, jornalista, que ainda acredita na novidade!

Para entender o futuro, costumo ler notícia velha. O presente não é uma novidade, como creem os ingênuos jornalistas, mas uma prestação de contas com um passado que nunca termina, às vezes bem recente, esquecido. Quem acredita que o passado passou mesmo é cristão não hipócrita, que boia conforme a água leva, como a folha numa enxurrada, mas quem produz as enxurradas é inevitavelmente um porta-voz de algo em que não acredita.

Por isso tudo, decidi hoje falar apenas sobre o básico, ou seja, sobre o que nos move dia a dia, a arrogância. Como sabemos (ou devíamos saber), a arrogância não é o mesmo que altivez. Aliás, a coisa mais rara do mundo é um altivo suportar um arrogante. Não são sinônimos, nem antônimos. Mas é muito difícil encontrar quem distinga bem aquilo que os une. Altivamente tentarei fazê-lo. Se o meu mudo leitor não concorda, ou é outro altivo e um interlocutor em potencial, ou é um arrogante, de quem quero distância. Impossível concordar ou discordar daquilo que não se entende. Se o que me lê já fez isso, é porque não é nem altivo, nem arrogante, mas uma pessoa cujas ambições estão todas depositadas fielmente em outrem. Se é esse o caso, lamentaria muito pela sua condição, se essa não fosse a condição mais natural do mundo, desde o princípio da vida que bruxuleia nas águas e rasteja na terra, condição que hoje em dia mamãe internet e papai videodrome nos fizeram acreditar que se trata de uma condição doentia. 

Vejamos, afinal, as óbvias diferenças. Um altivo pode abaixar o tom perante alguém que sabe mais que ele, mas um arrogante não. Um altivo recolhe-se, às vezes, arrependido e sentindo-se culpado por ter sido idiota propalando e disseminando o erro, mas um arrogante jamais. Como dito, um altivo por vezes recua, um arrogante apenas avança. Porque o arrogante simplesmente se arroga com um direito que não tem, movido por uma força externa, que não é a sua própria. Um arrogante acredita que uma profecia que ouviu (nem que seja proferida pela sua própria cabeça) há de se cumprir, quer com sua ajuda, quer passivamente. Um altivo apenas detecta o rumo das coisas e diz, pintando com cores da certeza, que ninguém deveria ter, qual caminho é o mais adequado a percorrer. O altivo, por vezes, se engana e sabe disso; o arrogante nunca o admitirá. Na superfície, um altivo é muito parecido com o arrogante, mas nos genes que formam sua essência são completamente opostos. Não é raro vermos o altivo pedindo perdão, algo impensável para um arrogante. Se não ouvimos o pedido de perdão do altivo, vemo-lo nas suas ações, que, se bem interpretadas, sem nenhuma arrogância, denunciarão o seu remorso. 

Aí, meu caro ou minha cara que me lê, é apenas questão de perdoar ou não; difícil quem, na atmosfera cristã do Ocidente, não tenha ouvido falar da boca de religiosos sobre o poder miraculoso do perdão. É preciso ser muito incoerente ou muito arrogante. O perdão é um elemento intrínseco de nossa sociedade e é o que nos torna às vezes, bem raramente, seres dignos, ao mesmo tempo que nos destrói. Pedir perdão, enfim, é comprovadamente algo que revela uma fraqueza nossa até então latente. Quando o arrogante pede perdão, porém, tem em vista a sua sina e precisa de nosso esquecimento para poder destruir quem não o louva. Já o raríssimo pedido de perdão do altivo é sincero, enquanto o pedido de perdão do arrogante, de tão falso, é algo absurdamente ameaçador. Um arrogante jamais se porá do lado dos fracos, já o altivo terá sempre o direito à náusea.


Se alguém te disser que és arrogante, saberás que o arrogante é quem, por comparação, afirma não o ser. Acautela-te! Nenhum altivo te dirá que és arrogante; apenas lamentará que sejas estúpido. E ser estúpido não é crime, embora irrite o altivo. A arrogância não só ofende, mas destrói. Não há arrogância passiva, pois nela se dissimula o veneno, à espera da chance de que passes ao lado, para que o mesmo veneno seja inoculado em ti, veneno há tanto tempo acumulado e remoído. O arrogante quer, o quanto antes, a tabula rasa. O arrogante quer mudar tudo que está por aí e, por vezes, consegue. Por vezes, dão-lhe a oportunidade sonhada. Se não lhe dessem, morreria com seu veneno, calado; morreria como todo mundo; não seria nada além de ser arrogante.

Mudanças são boas ou más. Mas a mudança do arrogante não recua como a mudança do altivo. A mudança do arrogante vai adiante, porque ele sabe onde quer chegar, sem discutir com ninguém. O arrogante prefere o silêncio, pois está sempre certo e não volta atrás. O arrogante tem todas as respostas prontas; é surdo, embora fale em abundância se lhe derem um microfone. Há quem apoie o arrogante, pensando que o lugar aonde ele quer chegar é o mesmo de quem o apoia, mas o lugar aonde o arrogante quer chegar é apenas o lugar aonde só ele, o arrogante, quer chegar, mais ninguém. Apoiadores de arrogantes são suicidas e, se aonde o arrogante quer chegar é o suicídio, quem sabe quem o apoia tenha razão em apoiá-lo. Infelizmente, nem todos arrogantes desejam o suicídio, pelo contrário, a maioria deseja a vida eterna.

Por isso, quem apoia um arrogante é uma figura paradoxal. Há arrogantes que odeiam negros e são apoiados por negros;  há arrogantes que odeiam mulheres e são apoiados por mulheres; há arrogantes que odeiam índios e são apoiados por índios; há arrogantes que odeiam gays e são apoiados por gays; há arrogantes que odeiam gordos e são apoiados por gordos. O que marca e distingue um altivo de um arrogante é seu ódio. O que marca e distingue um apoiador de arrogante é talvez algum ódio a si mesmo ou alguma crença na pouca literalidade das palavras. "Afinal", dirá a quem o questionar, "o que é algo literal?", perguntará, subitamente relativista, pronto para perdoar quem não perdoa ninguém; jamais sentiu ou sentirá a náusea de ter errado. Quem quer o apolíneo, enxerga o apolíneo. Quem quer o dionisíaco, enxerga o dionisíaco.

Mas que o leitor me entenda bem: quem apoia a arrogância não é ingênuo, por conseguinte, não é uma vítima nem mesmo no sentido mais estrito da palavra: o apoiador quer percorrer a picada recém-aberta pelo arrogante porque se vê nela. O apoiador estava ali, sempre esteve, esteve latente, esperando, triste por não ter sido visto, com os olhos bem abertos e ansiosos para ser visto. E o único que o vê e tem condição de vê-lo é um arrogante. Se quem me lê pensa que tem um quê de altivo, mas se afasta do arrogante que descrevo, deveria acautelar-se quando perdoa esse apoiador do arrogante. Ele não é ingênuo, mas tu poderás sê-lo e é tudo que o arrogante quer. Com ele, depois, virão outros apoiadores, pois a ingenuidade é coisa rara: no mundo abundam altivos, há alguns arrogantes e, obviamente, há muitos que não são nem uma coisa nem outra, prontos para subir-lhes à garupa, de tão cansados que estão de andar a pé. Pedir que um apoiador de um arrogante volte a andar a pé, do lado dos cavalos onde cavalgam altivos e arrogantes, é um pedido demasiadamente ridículo. Ninguém gosta de andar a pé, havendo quem possa levá-lo a cavalo.

Assim, ó altivo, sabes agora quem és, depois de remoer a tua consciência e o quanto te distingues do arrogante, que agora galopa diante de teus olhos! Não te esqueças que és um cavaleiro como ele, que tanto te despreza. Olha para o chão e vê que os pedestres precisam de uma garupa. Ou dá-lhas ou sê um altivo mudo, porque tua voz afinada destoa da histeria promovida pelo arrogante. Se nem todos cabem na tua garupa, lamenta, pois é a única coisa que te resta. 


A arrogância venceu e, parte da culpa disso foste tu, altivo, que não olhaste para o chão e não viste que não existes apenas para ser louvado, mas para ajudar quem tem feridas nos pés. Azar o teu, altivo ingênuo: o monstro arrogante, que só pensa em si, olhou agora mesmo para aqueles pedestres. Bastou-lhe apenas acenar com a possibilidade de haver um dia longínquo em que terão sua garupa, ou melhor, um cavalo próprio e agora o amam, ainda caminhando, imaginando tudo isso.

Ouve, ó altivo, o alvoroço que se afigura lá na frente. O arrogante a cavalo, a horda cantando à sua volta absurdos. Se não pensam, não lhes custa repetir: é-lhes melhor repetir que têm a promessa insensata de um cavalo a repetir uma sequência lógica de coisas sensatas que não lhes dará cavalo nenhum. Não os chame de interesseiros, altivo. Antes desce do cavalo, dá-lho, desiste de tua altivez e começa tudo de novo. Ou então permaneces sobre o cavalo e lamenta. Tertium non datur

Ou desces ou choras, altivo. Se desces, terás longo percurso, sem que tenhas mais tempo para terminá-lo: vês quão longe está o arrogante e a horda barulhenta? Se choras, és esse palhaço, eternamente altivo, dono de tudo que é verdadeiro, abalado por tudo que despossuíste, sem louro, sem festa, sem pompa. És só um altivo que ficou para trás por não ter estômago ou coragem para te desfazeres de teu único cavalo e dar ao primeiro que, com certeza, não te garantiria nenhum tipo de gratidão. Era isso que querias o tempo todo, altivo, gratidão? 

Agora é tarde, vê a horda, no máximo, perderás teu cavalo e tudo continuará igual. Mas talvez seja o melhor a fazer. Afundando nas penumbras da angústia de ter perdido o dom mais precioso de sua vida, até agora insabido, procurarás a sabedoria, que anda no sentido contrário à da arrogância? Se tua mente ainda funciona, ainda há tempo de alcançá-la e, quem sabe, um dia te regozijarás. Espero que no teu caminho não encontres a esperança, que te aliciará com outro cavalo, o qual mudará o rumo enquanto dormes para a exata direção para onde caminha a horda que celebra o dom futuro do arrogante. Dizem que o sol do conhecimento não se confunde com a esperança, mas ainda é bem melhor que o ocaso da arrogância. Só mesmo caminhando, um sábio, convicto de que esse é o caminho a percorrer, descobre, aos poucos, o que há de vaidade nisso e o que há de verdadeiro: nesse momento, a horda lhe parecerá distante demais.

Recobro uma nesga de razão. “É muito discurso individual esse da sabedoria; há nele pouco projeto coletivo”, penso. É lamentável admitirmos que o nosso pior inimigo é um completo imbecil, pois, se ele for de fato imbecil, que mal isso nos faz à nossa narcísica auto-estima! Normalmente vemos nosso inimigo como gênios quando o imbecil seríamos nós mesmos... Enfim, não sei se com toda a razão do mundo, ou apenas com fome e sede, volto ao livro que lia ontem. Após quatrocentas e tantas páginas lidas, entendo finalmente tudo hoje:“Rhodiorum oraculum. Dirseha da/ pregunta paruoa & de pouca sustan/cia, porque os Rodios sacrificando a/ Minerua , & estando muyto tempo/ junto dos seus altares , preguntarão/ ao seu Deos se lhe seria licito leuar cõ/sigo mijadeyros? respondeo que si, tornarão a preguntar se serião de co/bre se de barro? importunado ho/ Deos dixe q̃ nem hum nem outro”.

Delirante, penso: "grande modelo para meu projeto de sabedoria! Se um dia eu voltar a falar sozinho com quem me lê, será assim também, na forma de perguntas".

sábado, 26 de junho de 2021

NEUROSE UBÍQUA


Tanto pensei, tanto sofri, tanto refleti, tanto me espantei, tanto escolhi, tanto desisti.

Enfim, leitor, desta vez não foi possível e também não o foi no mês que vem, porque o futuro e o presente se têm mesclado e o passado é um aoristo perfeito que não tem dado vez à imaginação dos poetas. 

E como o mês que vem também se foi, que um dia ela revenha a gosto.

domingo, 30 de maio de 2021

PELO SIM, PELO NÃO

Cada vez que falas, eu, espantado, me calo. Cada vez que as palavras saem de minha boca como torrentes é a vez de tu te calares. Percebes, leitor? As palavras, essas excreções do pensamento, são desnecessárias. Desnecessárias como são nossos pelos, que pararam de crescer por algum bug genético. Os nossos pelos não ficarão maiores no inverno, para nos aquecer. Não importa se isso acontece conosco, humanos, e por isso inventamos mantos, como disse o biólogo, ou, justamente porque inventamos mantos é que pararam de crescer, como disse o sociólogo. As duas teses apenas são palavras para explicar o que é inexplicável e, sem pelo e com inverno, é preciso se mexer. Mas, como Artur Bispo do Rosário escrevera em seu manto: Eu Preciso Dessas Palavras escrita e por isso, meu caro, o impulso de falar me parece tão forte quanto o que o pelo teve quanto decidiu parar de crescer por instrução de um DNA mau gestor. Words, words, words


E não há coisa mais inútil que uma palavra. Com meu silêncio, mostro-me austero. Sem me responderes, dizes mais do que com palavras fáticas. O império do silêncio é idêntico ao das nossas palavras desnecessárias. Desnecessárias porque revelam as idiotices da nossa alma, nossas obsessões, nosso oco interior. Bom mesmo é imaginar o que o outro é, mas ouvi-lo falar é enfadonho e decepcionante. Por isso o novo parece tão bom. Enquanto não ouvimos o novo falar o suficiente, temos tempo de projetar nele as nossas obsessões, mas basta que haja intimidade e veremos que nos enganamos. O outro é o eterno mesmo, porque nenhum outro sou eu. Piscis nequaquam est, nisi recens. "Nã he peyxe, senão fresco. Dirseha do ospede, que nã agrada senão em quãto he nouel", como carinhosamente compilara Jerónimo Cardoso, pouco antes de morrer e ver seu mundo desabar sob as veleidades de Dom Sebastião. Tudo é Panidis suffragium, cousas de homem parvo e tolo, que não sabe julgar, como foi Pânis, rei de Cálcis, que dizia que Isiodo era melhor que Homero.

Aquele que tem um projeto de austeridade, com o seu silêncio já se revela eficazmente, com parca meia dúzia de palavras, ser um idiota para o seu ouvinte; aquele cujas palavras não ouvimos o suficiente não teria direito a chamar-se um ser humano pleno, daqueles que acorda de manhã, arria as calças e defeca, como todos fazemos. Sua estratégia de silêncio destaca-se no xadrez do bando humano, mas, como todos, arrota, fede e é tão idiota quanto os que falam e eu preciso de deuses, quer para adorar, quer para criar imagens deles para, em seguida, feri-las com um surto iconoclasta. Fiz-te a ti, à minha imagem e  à minha semelhança, mas não estou contente comigo mesmo, por isso lanço-te, desapegadamente, uma marretada na cabeça e estilhaço tua estátua em mil pedaços. Sorrindo ou chorando, agora junto os cacos, dissolvo-os, parto para a próxima imagem e esse novo círculo, pintado de mil cores, formado com mil pincéis, cuja margem terá infinitos detalhes, cada vez mais complicados ou cada vez mais simples, voltará a se instaurar e assim será, até que eu, indivíduo, faça a única coisa da qual tenho certeza: morrerei, por meio de uma força tão forte quanto aquela que impede que meu pelo cresça no inverno em defesa de meu corpo.


Mas enquanto isso, que custoso é desenhar esses círculos de dentro dos quais minha pouca imaginação não consegue sair! Eu quero falar ao mundo uma coisa sobre a qual me engano conhecer e sobre a qual tenho convicção ainda maior do que a morte, no entanto, para verbalizar essa mesma coisa, preciso de uma vida toda e mesmo assim, não compreenderás e, sendo sincero, eu também nunca compreendi.

Porque “eu sou assim” é a frase mais entediantemente repetitiva, que sai de todas as bocas rodrigueanas ao mesmo tempo, acredite quem quiser no “assim” do outro. Em momentos de profundíssimo tédio, tampam-se os ouvidos e ecoa apenas o “eu sou assim” provindo de si mesmo; mas quando o tédio atenua um pouco estamos dispostos a babar ouvindo essas palavras vindas da boca de outro, como se fosse a mais original de todas. E, no entanto, são as únicas palavras que qualquer ser humano consegue dizer, mas para isso inventou línguas com vocabulários extensíssimos e regras gramaticais absurdas e, não contente, escritas canhestras para o deleite dos olhos, porque no fundo só queria, exausto, após uma dia de forrageamento ou de labuta com a enxada, ficar sentado em cima de uma árvore, pedir para tirarem-lhe os piolhos, olhar as coisas sem entender direito e, sobretudo, brincar.

O brincar - portanto, tu, que dormiste na primeira linha desse texto e já não estás me lendo – é o único ato possível, uma vez que nada, nada, nada, substituirá, saciada tua fome de frutas e besouros, aquele pensamento tão inverossímil que é o “eu sou assim”, o qual fundamenta a tua má-fé, a tua autoimagem e o teu desapreço por tudo aquilo em que não te refletes, ó mais narcisista de todos os seres, pois sequer percebes que isso é necessário e disso não fugirás com teu infernal raciocínio. Pensamentos são zumbidos e as palavras, seus arremedos.

Perdeste o pelo, ó símio, ninguém sabe como e não culpes os piolhos, meu caro analista da evolução. O teu pelo não cresce no inverno, azar o teu. Antes perdeste tua cauda e agora teu olfato desaparece, abrindo alas para teu cérebro invasivo. Ó mais desamparado de todos os seres, que garras inúteis e quebradiças! Que desengonçado és! As árvores não são mais tua extensão, divorciaste delas! Qualquer leopardo te engole, agora, pois teu ombro não consegue lançar o peso de teu corpo em direção às copas e desaprendeste valer-te dos cipós! Do alto de tua miséria tiveste que levar teu bando para um lugar cheio de ovelhas e mamaste no ubre delas no auge de sua famélica existência. mas, como tantas esquisitices que tua sortuda neotenia te reservou, com o fim de preservar tua hedionda progênie, surpreso, percebeste que a alergia à lactose não era disposição da maioria dos teus. Foi aí que nasceste e depois disso, faltou pouca coisa: um ferro fundido para fazeres o machado com o qual sulcaste a terra e  a cabeça de teu próximo, para ampliares teu domínio e aí sim, só depois disso tudo, é que nasceu o teu tédio ou percebeste que ele existia. Tudo que fizeste depois foi fruto desse grande tédio, desse colossal tédio, desse abismal tédio. O mesmo sempre, sempre, sempre. Tédio e medo do leopardo: a isso te resumes, ó venerando ser dos renascentistas! 


És o mesmo quando saqueias a aldeia ao lado, quando exploras teu irmão, quando saltas a janela de teu vizinho à procura de sua coleção de tranqueiras ou de suas filhas, quando diriges um tanque de guerra ou um avião, quando discursas perante muitos que não te ouvem, mas te dão toda razão, porque é em si mesmo que pensam. Na verdade, danem-se palavras, lógica e razoabilidade, o que importa é que ao final do dia, estejas mascando seu último besouro, de barriga bem satisfeita e que possas ser coçado, o resto são apenas percalços que esperas sejam menores amanhã. E nada de realmente útil fazes para que o sejam.

E o Bem e o Mal? Onde estariam nisso tudo? Mal mesmo seria terminares o dia faminto, seria não teres quem te coces, não teres como impor a tua autoridade no bando por estares velho e decrépito, fora isso, meu caríssimo, nunca existiu nem existirá bem algum, mas um dia a tua falta de olfato fez que uma palavra saída da tua boca adquirisse um aceno a esse Bem e depois dela, muitas outras vieram, todas significando a mesmíssima coisa e nunca te enfadas, exceto quando te apercebes dessa ridicularia toda e, chateado de ter sido enganado, preparas a corda para teu próprio enforcamento.

Pilum non habet, "não tem de seu hũ pelo. Dirseha do que nada tem de seu", leio no velho dicionário. Nec obulum habet unde restim emat, pobre quem não tem sequer condições para comprar essa corda com que se enforque. É na verdade a fome o mal, meus caros, e a nossa fome hominídea é infinita. Fome de comida, fome de saber, fome de destruição. O único jeito de acabar com o Mal, o verdadeiro e único,  esse de que tanto te temes, foi gozar diante dos baobás caídos. Só ao massacrar quem não é assim como tu, sobretudo o mais frágil, que não te oferece resistência, advém-te o único gozo possível para essa tua espécie delirante com tendência ao enforcamento. O Mal não está na maldade humana, mas - para ti - na impossibilidade de exercer essa tua maldade. "Que tudo me seja tirado, mas se minha maldade for anulada, deixarei de ser humano e isso é o verdadeiro Mal: estar de mãos atadas para hostilizar", disseste ou pensaste, tanto faz.

Mas o silêncio não seria a solução? Se o Mal é tão intrínseco à alma do macaco sem rabo, de pelo inútil e de cabeça grande, se esse Mal se consubstancia no verbo, não bastaria abortar essa palavra hedionda, reflexo desse pensamento torpe, criado nesse lobo prefontal usurpador do trono do meu preciosíssimo olfato? Se eu fizer meu voto definitivo a Harpócrates, não estarei de uma vez por todas enclausurado inofensivamente no meu silêncio deletério, suportando o insilêncio alheio como um Buddha, livrando-me de todo o mal que poderia cometer? Não está aí a solução? Consciente do mal inexorável que nasce de qualquer abstração comezinha que venha das minhas profundas circunvoluções cerebrais, desde o meu hipotálamo, se eu cercear qualquer movimento muscular de minha boca ou de minhas mãos loquazes, não estarei eu, doravante apenas observador, no profundíssimo do abismo do meu nirvana simplesmente contemplando a loucura do mundo sem nela intervir e sem contribuir com ela? Com algum esforço, eu poderia até mesmo treinar um sorriso nos lábios, que não significaria nada, mas teria a função de evitar ser morto, a menos que o interpretem como riso de escárnio…


Se eu não tivesse concluído que a saída é o voto de silêncio a que há três meses anseio com quase volúpia, eu diria finalmente que necessitas molesta. Bom, mas se digo que a necessidade é enfadonha, dou a entender que tudo o que se faz, segundo a nossa natureza, nos é deleitoso e o que se faz contra ela nos parece áspero. Isso, porém, custa muito para que nos calemos de uma vez por todas. A nossa voz é mui maviosa e enquanto gostarmos dela, sentar-nos-emos no galho e deleitar-nos-emos com alguma recordação, mesmo que seja uma só, mínima, ouvida por meu ouvido interno como o canto de um rouxinol. Por outro lado, diziam os sábios - que nunca se entendem - e concluíram bem - se eles não são umas bestas arrematadas em que idiotamente me fio - que necessitas magistra. A necessidade é boa mestra, porque faz inventar todas as coisas. De todas essas coisas inventadas a palavra talvez seja a mais importante, pois no princípio era o verbo. De quase entranhada em meu corpo híbrido, como o daqueles estranhos seres que Cronenberg colocou em seu filme eXistenZ, meio criatura de carne, osso e tendões, meio criação provinda de uma loucura coletiva e individual, a palavra, com sua face de Jano, me seduz com sua perfídia mentirosa e canhestra, a qual observo, entendo, desprezo e a ela me declaro, do profundíssimo de meu ser fadado ao abismo da morte, que a amo justamente por não ser eu mesmo. Amo-a histericamente por ser imorredoura, mas talvez o melhor mesmo seja, como fazem os neuróticos, só virar-lhe as costas durante o ocaso, temeroso de que falte algum besouro para mascar em cima da árvore no final do dia seguinte, e só observar o trânsito do mundo, com alguma boa memória que me reste.

sábado, 10 de abril de 2021

DIÁLOGO COM UM JAVALI

De fraque e pince-nez, o esbelto senhor de meia-idade levanta-se e sai de seu apartamento. 

Sorrindo, abre a porta do elevador. Dentro havia um imenso javali.

 

- Que felicidade! Quanto tempo esperava sua visita! Por favor, entre! Entre!

 

O javali, com um olhar perdido, ao perceber-se livre, passa velozmente por aquele que propiciou sua saída. Encontrando a porta do apartamento aberta, corre agitado e lá dentro se mete. Lentamente, o anfitrião o segue, recebendo-o simpaticíssimo:



- Seja bem-vindo, meu amigo!  É de fato momentoso esse nosso encontro. Alia Menecles, alia porcellus loquitur, não é verdade? Desculpe-me pela grosseria. Não quis compará-lo com um porco ou com um cateto. Aliás, vendo-o mais de perto, vejo que há um quê de babirussa. Não, com certeza, sua estirpe é de facóqueros, ou me engano? Sou pouco informado sobre distinções específicas entre artiodáctilos suídeos, perdão. Permite-me doravante que o trate por “tu”? É estranho o que tenho vontade de dizer-te: apesar de desconhecer-te completamente, representas-me de alguma forma.

 

O javali, que inicialmente o olhava hostil e acuado, intrigado com as cores da mobília daquele imenso apartamento, caminhava sem parar, enquanto o anfitrião convidava-o para a sala de estar, fechando atrás de si a porta da entrada.

 

- O meu convite tem uma nobre finalidade e a ela iremos sem delongas. Antes, queria saber se compartilhas comigo a ideia de que Nastássia seja a mais emblemática personagem de Преступление и наказание, escrita por aquele que é, na sua essência, um presente de Deus, ha ha ha! Imagina! Se todos os Teodoros fossem de fato assim, aquele imperador destas bandas subequatoriais não teria que, no exílio, ter recostado sua cabeça num travesseiro cujo conteúdo era nossa terra roxa. Permite-me rir, meu amigo, imaginando essa cena do antigo imperador. É que me passou uma ideia ainda mais engraçada pela mente: como pode o nome de Deus, tão grego, ser escrito com F no prenome daquele romancista? Ah, esses russos…

 



Dita a bazófia, riu, muito alto, de sua própria sagacidade, enquanto abria uma garrafa de champanhe.

 

- Quantas lendas, não é mesmo? Enfim... importa apenas o que é de fato, não acha? Desculpe pelo riso vulgar de agora há pouco: quis apenas que te descontraísses. É tua casa, sinta-te à vontade. Perdoa-me estar falando tanto. É sempre esse o meu jeito de evitar o silêncio absoluto: a tagarelice. Tortura-me a calmaria, não sei por quê. Fato é que, como tu, provavelmente, não consigo suportar as palavras quando não proferidas por mim mesmo.Que pensas disso tudo?

 

Terminada a questão, o javali, acostumando-se com o lugar, que analisava com curiosidade, esvazia o conteúdo do intestino sobre o tapete persa do anfitrião, dando um pequeno grunhido de satisfação.

 

- Ah, não te incomodes com isso. Acontece o tempo todo. Vamos para a sala de jantar e continuemos lá nossa conversa. Sabes que eu conheci um senhor devoto de Harpócrates? Morreu, coitado. O mundo não saberá nunca quem foi, mas eu o conhecia muito bem. Será esse o destino de todo morto: o desconhecimento total de sua existência? Cá comigo eu penso, que mesmo vivo esse conhecimento é impossível, até mesmo dos mais próximos. Quando não de si mesmo. Deixa-me fechar esta porta, por favor, para que o cheiro não invada a sala de jantar. Preferes gim ou rum? Ah, sim, provavelmente não bebes, ao menos não diante dos outros, ha ha ha.

 

Piscou cúmplice um dos olhos. O javali, excitado em sua fúria e fome com o tom de voz estridente e com os sorrisos marotos do seu anfitrião, acabava de derrubar um vaso, que, ao cair, partiu também um grande espelho. O ruído do desastre acabou por assustá-lo, fazendo-o soltar um grito estridente e uma agitação desabalada. Em seguida, parecia ainda mais enfurecido por não ver outras portas abertas. O anfitrião continuou:

 

- Vê, por gentileza, esse quadro imenso nesta parede. É meu pai. Uma grande pessoa. Não te assustes por estar nessa posição, deitado, com essa baioneta. É apenas pose de tiro de guerra. Prestou o exército, mas não chegou a ir a guerra alguma. Problema nos olhos. Essas espartanas exigências, sabes como é... Aliás, tenho uma granada dele em alguma dessas inúmeras gavetas, se os criados não ma roubaram, ha ha ha! Bom, deixemos de falar de amenidades. É preciso que questões candentes se resolvam, uma vez que pulsam nas nossas mentes desde o início dos tempos, não é verdade? Convoquei-te porque sei que tua contribuição seria ímpar. Mas me pareces com fome. Sei que és onívoro, mas podíamos começar com umas castanhas, certo? Preparamos essa mesa porque tínhamos ciência de teus gostos. Nada de trufas, pois seria piegas, embora com certeza descobrirás no teu prato uma comedida pitada do precioso cogumelo.

 



O javali, confuso com a penumbra do recinto, sentindo o cheiro recendente da comida, pôs-se de pé à mesa e, marcando seu território, arrastou o prato com a queixada, fazendo-o cair estrondosamente no chão. Seu conteúdo foi sofregamente engolido com várias bocadas barulhentas e desconfiadas. O anfitrião, quase simultaneamente, já se encontrava sentado, sorria e, brindando àquela reunião, escolhia os talheres corretos para mordiscar um pouco dos acepipes. Acompanhava o convidado em seu repasto.

 

- O que mais intriga, na verdade, é vermos árvores caindo o tempo todo. E elas caem quase na cabeça de silvícolas que se banham naqueles lamentáveis rios de mercúrio. Parece-me agora um tremendo exagero o que eu dissera sobre desconhecermos nosso destino. Se não sabemos o nosso, o deles todos sabemos: a cova ou a mendicância em uma cidade vizinha, o preconceito, a pobreza, a fome. Terrível, não? No entanto, se continuamente brindarmos à nossa tríplice origem, aparentemente haverá uma espécie de anestesia que nos dará sempiterna satisfação e orgulho, fazendo-nos esquecer da miséria alheia. É sempre esse orgulho que nos renova, não? Brindemos.

 

Antes de beber, pôs delicadamente um cálice sob a mesa, ao lado da comida pisoteada. O javali olhou intrigado, derrubou o xerez com o focinho e o ignorou, sofregamente mais entretido em remexer as mandíbulas cheias de comida, talvez porque o cheiro alcoólico não lhe apetecera.

 

O anfitrião, com os pensamentos sempre distantes em algo provavelmente etéreo, abotoando-se melhor, continuou suas fáticas e mui educadas ponderações.

 

- Estive eu cá pensando sobre algo candentemente importante: o contrário de inferno seria o superno, certo? O ser humano se arvorou como superior, mas a desigualdade, a injustiça, a crueldade, tudo isso não se mistura ao conceito renascentista que ressuscita a mais famosa máxima protagórica? E mesmo a empatia, o amor ao próximo e tudo que dizem distinguir-me de um javali, com o perdão de ser tão direto, na verdade, não é algo que podemos usar como blefe dum jogo hipócrita no qual o que importa de fato é a destruição? Pense nos parasitas: alguns não precisam nem de boca, nem de patas, nem mesmo de uma forma definida, pois lhes basta que seus genes passem adiante. Se o homem é um geoparasita, não se trata de neotenia a nossa falta de pelos, nossa cabeça grande tão parecida com a dos fetos! Sim, seria apenas reflexo da perda necessária de ganhos evolutivos para nos adaptarmos: sem clorofila, os animais aprendemos a viver da destruição… Pensando assim, a falta de rabos nos antropoides seria, na verdade, o primeiro cordão umbilical cortado da mãe árvore, certo? Sem a água dos peixes e anfíbios confiamos na nossa gordura; sem ovos reptilianos, na nossa história familiar; por fim, é a nossa homeostase que nos faz ignorar o futuro? Invejosos das aves, nós, mamíferos, nem sempre aprendemos a voar e essa ignorância nos fez valorizar tantas outras perspectivas! Tudo que nos é deficiente é uma glória, não? Acho que sabes do que falo. O importante não é o recalque pelo que não temos, mas o orgulho dos nossos valores, tão facilmente compreensíveis, pois se pautam unicamente em nós mesmo, não? Desculpa-me, novamente, pela arenga, mas não paro de pensar nisso e tenho certeza de que concordas comigo. Segue meu raciocínio. Pelados e regelados, medrosos por não enxergarmos longe nem no escuro, não foi preciso que o córtex prefrontal de símio humanoide invadisse vitoriosamente a área de olfato, anexando-a e subjugando-a, para que com o cúmulo da fragilidade, eu me tornasse o que sou hoje, o ser mais orgulhoso do planeta? Ou estarei eu sendo presunçoso e prepotente, pois essa pretensão de dominar o universo talvez não tenha sido exclusividade minha. Que achas, tu, já que não és humano? Diz-me, por gentileza, meu amigo suíno. Não teriam tido as finadas trilobitas uma sensação de superioridade parecida com a humana? Não terão a mesma certeza hoje mesmo os incríveis fungos, sem cérebro, ao espalharem-se por quilômetros debaixo da terra? Digo-te, porém, uma coisa, como advogado de defesa da minha espécie: na falta de olfato, temos metal, pólvora e fissão nuclear. Perante a nossa ignota indigência banhada em autoengano, quem estaria certo? Jó ou Da Vinci? Deduz-se facilmente dessas premissas que pensar demasiadamente nisso seria um convite à depressão. Sem dúvida o seria, mas se soubermos ponderar as coisas, veremos o que há de maravilhoso no processo e não apenas o lamentável.

 



Para respirar um pouco, feito esse longo e austero discurso, levantou-se um pouco e acendeu um cigarro, tirado de uma gaveta. O javali evitava contatos visuais enquanto essas ponderações haviam sido trabalhosamente tecidas, completamente alheio. Saciado, andava em volta da mesa, agitado, e incomodado porque não achava ainda uma saída óbvia, mas conseguiu facilmente empurrar uma porta entreaberta com o focinho e subiu uma escada. O anfitrião entendeu que o suíno queria familiarizar-se com o ambiente e resolveu mostrar-lhe a casa. Não parava de mostrar cada candelabro, cada estátua, cada detalhe arquitetônico e vincular essas coisas a correntes estéticas, cada uma de seu tempo. Seguiu-o com passos lentos e elegantes, que contrastavam com a agitação do javali, que estranhava aquele ambiente tão pouco selvagem. O senhor, sempre meditativo, alisou os bigodes e retomou o seu fio de raciocínio:

 

- Mas, afinal, lamentável e maravilhoso para qual ser que habita este planeta, não é mesmo? Saberias pensar comigo? Ah, vejo que te entreténs com outras coisas. Deixa tudo isso para lá. Cansa-me às vezes falar do real. Não há nada mais aborrecido do que falar da própria dor ou, pior, ouvir sobre a dor dos outros. Horas há que entendo muito bem a alienação dos que se fecham em clausuras. E ser de uma espécie qualquer é viver numa clausura. Invejo os que gozam apenas porque subsistem nas agruras da sobrevivência. Existência para quê, se basta a subsistência, não é verdade? Um dia a existência deixa de ser! Um dia a essência também deixa de existir. Concluo que o que nos une, de fato, é estarmos sempre numa eterna crise.

 

O javali finalmente encarou-o com seus pequenos olhos vermelhos e focou sua atenção finalmente no anfitrião. Sua fúria inata, dir-se-ia, subitamente se convertia numa estranha empatia. Nesse momento, soltou um grunhido muito diferente. Uma testemunha juraria que, de uma maneira demasiadamente humana, teria dito um claro e surpreendente “concordo contigo”. Ambos agora pareciam esboçar um sorriso, fundamento de qualquer princípio de comunicação, como dizem.

 

É foi nesse exato momento que ouvimos um grito medonho e houve desde então muito movimento naquele prédio. Vizinhos gritando, bombeiros e suas sirenes. Todos se amontoavam à porta recém-arrombada daquela residência.

 

- Eu desviaria teu olhar desta cena final - disse o antes bem composto senhor.  Paixão e compaixão, afinal, o que são?

 

Eu estava no meio daquela multidão apinhada no umbral de seu apartamento e testemunhei que meu vizinho, o pacato seu Mênecles, estava ali sentado no chão, com o javali morto ao seu lado, com a barriga aberta por uma imensa faca, agora cravada no queixo do pobre animal. Tinha seu rosto alvo, sua boca, o queixo, o peito, o fraque, a gravata, as luvas, tudo encharcado de sangue e de fezes. As mangas esfarrapadas e o braço um pouco ferido revelavam ter havido alguma resistência do pobre animal. Meu vizinho falava agora com uma voz guinchante quando se aproximavam dele tentando afastá-lo das tripas recém-tiradas da barriga do animal morto, que insistia em devorar. Levado, enfim, por policiais e enfermeiros, que o imobilizaram, perorava aos que o olhavam petrificados, babando em abundância:

 

Expressar o que se sente, meus queridos, é pouco! O homem é, sem dúvida, muito melhor do que os demais animais, que são incapazes de romper um pacto, uma vez estabelecido – disse mastigando - Homo traditor! Mesmo se os não-humanos viessem um dia a falar, jamais conceberiam o que é a traição, essa característica divina que nos caracteriza. .

 

E, retirado finalmente do apartamento, podia-se ouvir lá fora:

 

- Enclausurada nas almas doentes das pessoas, a monstruosidade era tão bonita… Tinha um certo apelo poético, não concordam, vocês, que me olham tão pálidos? Que triste isso tudo, não? Lamentável, deveras. Saudade de quando todos davam suas opiniões boçais bem baixinho, bem sozinhos, quase mudos. O que nos resta agora indubitavelmente será fazer de conta que não é da nossa conta, porque, afinal de contas, o que conta é o que temos para contar, não concordam?