O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O AZAR, SEGUNDO A CIÊNCIA

Se está comprovado cientificamente que tudo aquilo que pode dar errado invariavelmente dará, não há razão alguma, leitor, para que te deseje um feliz 2021. A esperança, como todos sabemos, é a maior fonte de angústia e depressão do mundo e, mesmo assim, desde os tempos de Pandora, é vista como aquela  boa ilusão remanescente com a qual um zoroastrista qualquer cheio de lábia convenceu o grego prostrado e apatetado, tão acostumado a participar da ágora, à nova realidade alexandrina e com a qual, séculos depois, outro zoroastrista, genericamente travestido de cristão, falou a um outro grego, igualmente calcificado na sua depressão causada por ver seus parentes levados como escravos a Roma, que o bom mesmo é viver depois da morte. Não, leitor, se queres continuar iludindo-te, não continues a leitura. Vai afogar-te no teu autoengano, que ganhas mais.

À guisa de ata de reunião de departamento, antes façamos uma retrospectiva sobre esse bonito ano de 2020, tão geométrico quanto auspicioso. Esse Ano do Rato do calendário chinês começou em 25 de janeiro. Lembro-me de ti, enfastiado à época com o noticiário, que falava por semanas de uma tal Wuhan, a qual, meses depois, procurarias no mapa e descobririas não estar no Japão. Um claro exagero aquela insistência toda dos repórteres, pensavas, algo manipulado obviamente apenas para nos dispersar do que é realmente importante, ou seja....não me lembro mais o que era importante antes da pandemia. 

Wuhan era um nome esquisito e, um mês depois vendo-a citada em toda parte, parecia que havia de fato algo sério lá... mas deste um suspiro de alívio e te lembraste do longínquo ebola. Para tu, habitante de Birigui, qualquer doença que te fizesse morrer em segundos de algum tipo de lepra evisceradora e misteriosa, se não estivesse no noticiário da cidade aí próxima, por exemplo, em Araçatuba, não seria problema. Tinhas um escudo invisível do Homem-Pássaro, um corpo fechado por teu santo predileto, razões em que te apoiavas e ainda te apoias, e que te faziam e ainda te fazem desacreditar que coisinhas à toa como esse vírus venham voando, de cuspe em cuspe, do outro lado do mundo até tua narina. Mas a coisa ficou séria e tu fizeste o que faria qualquer brasileiro, do alto de sua dignidade ocamente ufanista: começaste a mandar mensagens preconceituosas sobre a metade amarela da humanidade que, segundo tua imaginação fértil, passaria o dia todo forrageando baratas e comendo outras coisas estranhas. Disseste teus impropérios nazistas que fariam Goebbels corar e, ato contínuo, lascaste uma dentada na tua carne mal passada de tatu. Pobre bichinho! Ontem mesmo teve sorte e, escavando no cemitério aí próximo, aproveitara-se de um caixão mal lacrado e se refestelara com um cadáver em fermentação. Agora o dasipodídeo está no teu bucho, que odeias quem come urso panda à vinagrete. Tatus, jacarés, morcegos, ursos pandas e capivaras à parte, voltemos ao nosso desapaixonado tema inicial de descrever de forma completamente objetiva o que foi o ano de 2020. 


Bem a tempo: lembro-me agora de que viste um vídeo que te convenceu a comprar um inseticida ótimo contra o vírus e, tão convicto disso, compraste vinte e cinco unidades. Teu irmão te alertou que esse comportamento era completamente inócuo à tua saúde, quando não daninho, pois bom mesmo, segundo ele, era lamber bem as mãos quando voltamos da rua, porque a saliva teria uma superenzima que mata até o vírus-mãe da colônia virótica. Aí brigastes por causa desses argumentos tão seguramente ancorados nas baías de vossas ignorâncias e nunca mais esses dois se falariam, embora estejam agora convencidos, sem voltarem atrás um centímetro de que as duas soluções eram apenas burrice de uma época em que ainda não estavam plenamente informados de que o bom mesmo contra o vírus é tomar banho de xampu neutro misturado com óleo de guapuruvu. Na época da celeuma do inseticida versus o cuspe, ambos nem sabiam a diferença entre pandemia, epidemia e academia. Sim, foi aí que os honrados acadêmicos tomaram o microfone do karaoke da mídia e os cientistas tomaram as rédeas da carruagem desgovernada dos noticiários.

Melhoraste teu inglês! Quando agora pronuncias lockdown, passas por nativo, com pouquíssimo sotaque biriguiense. No seu home office, tiveste que retirar o teu PC empoeirado de dentro do guarda-roupa. E pensavas que ele seria substituído pelo teu smartphone! Pensavas que ele estivesse com os dias contados, assim como tua bússola, tuas fitas cassete de rock, teus cd-roms! Não, agora teu PC era a fonte de tua renda e perdeste horas para te familiarizares com os Google Meet da vida. Descobririas também que teu pé fica incomodado com teus sapatos, tão acostumado ficaste aos teus chinelos. Era preciso ter mais pijamas: dá-lhe compra em sites! E concluíste ajuizadamente que calças seriam menos importantes para ti que shorts. Acessórios de beleza usados nos olhos venceram os mesozoicos batons, agora encobertos por máscaras que aprenderias a usar, embora ninguém te convenceria que o nariz devesse ficar dentro dela, pois obviamente descobriste na tua imaginação teres predisposição a um monte de problemas respiratórios hereditários, o que justificaria teu raciocínio de que, por alguma razão  probabilística e divina igual àquela do comedor de tatu, seria mais fatal morreres de asfixia pela máscara do que da exposição de tuas narinas às gotículas de teus amigos perdigoteiros.

Não zombo: sabes que é verdade. Lembras de como xingaste as ONGs por não fazer nada? De atribuíres culpa às pessoas erradas e de eximires outras tantas ainda mais erradas? Já PhD em epidemiologia e convicto de que a resposta para superar esse clima down seria ter uma vida feliz, otimista e saudável em família, obviamente não tiveste medo algum. Lançaste invectivas a quaisquer que cruzassem tua frente e, por isso, puseste-te pronto para o braço de ferro. Dois varões atilados juntos raciocinam assim: é preferível tomarmos pinga sem medo e sem máscara, darmos umas viris escarradas enquanto simiamente coçamos nossas partes pudendas a discutirmos o medo, porque isso não é coisa de macho. Não valeria a pena discutir com nossos compatriotas sobre quão pouco apodícticas são as bases desse raciocínio: vai que na demonstração do teorema a respeito de quem seria o mais ignorante, o outro tenha uma peixeira ou um revólver, afinal, as armas são o falo máximo do alfa, freudianamente falando. Esquecendo-se do vírus, tais sábios sofistas contaram entre si muitas piadas de pessoas medrosas que caíram desmaiadas de tanto cheirar álcool em gel.


Um estatístico deveria comparar o gráfico da progressão das infecções e mortes com o do  crescimento e arraigamento da burrice. Se a doença fizesse cuspir os bofes em segundos, como dizíamos, o negacionismo não existiria. Isso é a prova de que o negar o real é diretamente proporcional à distância de qualquer fato em relação ao seu próprio umbigo. Mesmo no caso de morte de gente próxima, age-se também como sempre agimos, valentes brasileiros do Hino da Independência que somos: choramos em demasia e culpamos um segmento da sociedade ao qual não pertencemos, como se também não fosse composto de outros tantos brasileiros, mas de alienígenas extragalácticos (pensando bem, isso não seria um argumento plenamente refutável in se, pelo contrário, com muitas possíveis evidências). 

Lamentamos pra dedéu e, se dermos sorte, o câmera do telejornal vai estar ali do nosso lado, ávido como um urubu sobre carniça, só para filmar longamente a nossa lágrima escorrendo. De patetice em patetice, de resignação em resignação, de depressão em depressão, continuamos nossa mentalidade colonial: segundo ela, as hipócritas condições inglesas a respeito da interrupção de tráfico de humanos puderam continuar mesmo depois da independência, mesmo depois de república, mesmo depois de guerras mundiais, mesmo depois de todas as conscientizações possíveis advindas de tanta tragédia junta. O importante, segundo nossa mentalidade, é explorar e tu, favelado convicto de que és integrante da classe média por causa do teu empreendimento de cocadas, apertado diariamente nos ônibus, morres de medo de qualquer mudança no status quo. Nossa revolução, como pobres que somos, é a lágrima. Nossa queda da Bastilha é o desespero, seguido de resignação. E tudo isso só por causa daquele zoroastrista que disse haver uma vida melhor depois desta, após nosso sepultamento. Já te enfureces se alguém disser que não. É cancelamento do whatsapp na certa.

Já que tua bandeira revolucionária só te serviu até agora como capacho, de tão puída e esgarçada, a única coisa que podemos fazer é ouvir nosso capataz. E ele disse que o feriado de novembro agora é em maio. O Big Brother falou, está falado. Pergunta: tudo é para teu bem ou é para seu bem? Repetem no teu ouvido o mantra: "a economia é tão importante quanto tua vida" e tu dizes amém, porque não és comunista, Deus te livre. E ainda: "a roda do capital não pode parar" e tu dizes amém. De tão acostumado a seres engrenagem, nem questionas esse credo: "quem é que vai pôr o feijão na minha mesa?", argumentas. Com certeza te digo que não será teu defunto, Oras, afinal, és Homo sapiens, o intrépido haplorrino que sempre escreve torto pelas linhas retas. Já vencestes rinocerontes, mamutes, lobos e leões. Não será um inimigo pitititico invisível que te derrotará, certo?  E, valente, esqueceste da morte. "Vai, meu filho", diz o capitalista com uma cartola imensa, "vai, meu orgulhoso herói,  faz os meus brioches, vai, enfrenta a savana e traz suado no teu lombo o meu cobiçado lucro, vai, alimenta minha usura, tu, todo ensanguentado e com as costas descarnadas, papai te ama".

Seria injusto se não houvesse alabança para os medrosos também. Afinal, são os cautelosos. Da mesma forma que, com sua bateia, o denodado minerador enlameado mostra seu poder à floresta que destrói, extraindo pepitas de mais-valia aos cartoludos, a burguesia encastelada, com máscaras cada vez mais potentes, agradece as mãos sujas dos enfermeiros e lixeiros, subitamente mais rica porque deixou de pagar o perueiro da escola do filho e cortou o salário da diarista. Observa passarem boiada e lamentam pelos silvícolas, aqueles seres idealizadamente sábios, abandonados há décadas a não ser pela inutilidade de veneração burguesa, abandonados quer por políticos de direita, quer de esquerda, trucidados pelo mercado que lançam um tsunami sobre suas malocas, porque, afinal, essa é a lei da selva neoliberal. Para não deixar dúvida de que esse é o plano, o odioso ministro de olhos glaucos ordena que se passe a boiada. E vemos uma Auschwitz em plena Amazônia. Vemos nossos índios acuados pela doença, pela fumaça e pelo peixe com mercúrio, como os habitantes de Bornéu, correndo das imensas árvores que caem sob o impacto feroz das retroescavadeiras de Suharto, que, em troca pelo desastre, lhes dedicava maus poemas, dizendo que um dia lhe seriam gratos por tê-los forçado à civilização. Um dia Ricardo Salles, junto com Suharto, será lembrado como um dos mais nefastos seres humanos que passaram pela Terra. A ciência também só lamenta tudo isso. Cientista que é bom não convoca ninguém às armas, mas faz cartas de repúdio, diz outro cientista fleumático, lamentando o engajamento do cientista que vocifera, com uma onça morta às mãos. Cientista que é bom, diz quem tem juízo, convida seus orientandos com esta peroração: "o azar é um fenômeno interessante a ser estudado numa iniciação científica ou numa pós-graduação".

E nesse gozo do demônio de Hume, que nos esfrega na cara não haver causas, nem consequências, de fato, tudo é azar. É azar que tenhamos derrubado nossa primeira mandatária e colocado seu vice por meio de interpretações incompreensíveis a mortais que carregam sacas nos portos. É azar que tenhamos prendido um antigo presidente por causa de investigações e tenhamos colocado um outro sempre tutorado pelo Ministério Público e protegido por Congresso e Senado, que não têm agora pressa de investigar. É tudo um golpe de azar, da mesma forma que é um azar que o vírus tenha invadido o planeta, que tudo que é estranho ocorra em Atibaia, que as boiadas estejam passando, que auxílios emergenciais sejam fraudados, que dinheiro esteja sendo desviado para equipamentos que não chegam aos moribundos. É tudo azar. E contra o azar nada se pode fazer. Um cientista diz amém, chegando à conclusão de que o azar não é da sua alçada. Um padre, com máscara, levanta o cálice com álcool em gel consagrado e diz oremus. O policial, nessa mesma vibe, atirando em muitas cabecinhas, diz exsultet!


Mas espera! A curva acaba de descer. Vamos todos votar! O vírus está indo embora igual um bando de andorinhas, dizem. Não foi confinamento, não foi nosso cuidado, não foi nada. Simplesmente a coisa funciona assim: está indo embora, como em outras pandemias. Tinha de ser assim. Maktub. E reiniciamos a dança do acasalamento nas boates e enchemos a cara. Que bom sentir novamente o perdigoto alheio com o cheirinho de cerveja. Tudo é motivo de festa. Diziam alguns pessimistas, porém, que na suruba microscópica, a festa era ainda maior. "Que sorte isso ser apenas uma metáfora", diz um trêbado orgiástico. "Se fosse uma bactéria ou um fungo, aí sim, a coisa seria ainda mais feia", diz o cientista. Sim, é um trouxa de um vírus, que nem vida tem, pfui... Mas Ele, o todo-poderoso Corona, estava ali, nos seus focos, só à espera deste momento. Estava onde ficará para sempre, travestido de corona-2, corona-3, corona-n. Pois bem, há os que não querem vacina, arvorados no seu conhecimento monstruoso de epidemiologia extraído de cinco youtubes dum curso oferecido pela Igreja Masoquista do Gozo de Madalena Democrática. Peraí! Eu também vivo nessa mesma democracia, portanto, quero ter, por exemplo, o direito a não pagar imposto de renda, pois o síndico desse país é muito desorganizado. Abracadabra!  Liberou tudo como sonhávamos! Vamos comemorar novamente a reabertura de tudo na Grande Festa da Democracia Neoliberal. Tenho vinte convites, vou me esbaldar nas alas fordista e taylorista desse Carnaval Keynesiano, estupefeito de cloroquina, com saudade do  alaranjado anão de jardim gigante. Como era engraçado, volta, Trump! 

Até agora mais de 3700 casos e cerca de 100 mortes, só em Birigui. "Aliás, isso, em reais, dá quanto, mesmo? Não chega a ser prejuízo", conclui o economista da Globo News. "Calma, Birigui tem mais de 100.000 habitantes", dirá um cachaceiro da Capital do Calçado Infantil, desempregado e estranhamente conectado àquele economista, num aplaudido rompante intercachacístico de lucidez, segundo o comentarista econômico. Um outro bêbado, um pouco mais sóbrio, que acha que azar não é um fato científico, dirá, tirando sua calculadora do bolso, que 100 mortes num universo de 100.000 habitantes é, sim, só 0,1% da população, mas é isso "porque não é tua mãe". Partiram para a ignorância: briga no bar. É cadeira que voa, é garrafa que cai, é espetáculo de sumô grátis para os transeuntes mascarados. Nessas horas eu me indago se existiria tanta relatividade nos discursos, se fosse um ebolavírus e se os filhos dos que equivalem gente a porcentagens caíssem estrebuchando no chão cuspindo o próprio fígado. Nessas horas eu, com metade do meu copo vazio, vendo os sopapos na mesa ao lado, argumentaria que são muitos bilhões de unidades de vírus em cada um dos 3700 infectados daquela cidade, escolhida aleatoriamente para este texto. Bem distribuídos, só a infecção biriguiense seria suficiente para distribuir um virusinho para cada habitante do planeta. "Wuhan é aqui, minha gente", digo do alto da minha embriaguez, "uma grande panela de pressão onde cozinham mutações que seguem apenas o humor do RNA e nada mais". E a curva de fato recomeçou a subir. Dá até um calafrio, porque o pico parece que não chega nunca. Dessa vez, o carrinho dessa montanha russa vai despencar com emoção e, com azar, ainda vai ter looping. "Exijo receber ressarcimento dos que votaram a favor da Reforma da Previdência", berro, afinal de contas, com um vírus que inexoravelmente ceifa vidas de sexagenários, eu já deveria estar aposentado aos quarenta e cinco, segundo a atualização da perspectiva de vida. Percebo que fui egoísta agora: "desculpa-me, ó imprensa tão preocupada comigo. Foi a pinga". Que vergonha ter dito isso no país do altruísmo, com tanto didatismo independente no noticiário, tão desvinculado dos interesses capitalistas. A tempo: é sarcasmo.

Feliz 2021 aos bois que passam. Se há espaço para esperança, eu espero ab imo pectore que em dezembro de 2021 eu esteja aqui, nem que seja para falar que a coisa piorou tanto, que já temos saudade de 2020.