O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

POR QUE O PORQUÊ ESTÁ NO AMANHÃ?

O hoje não está com nada. Já amanhã, aí sim! Veremos no amanhã a explicação de tudo. Certamente não será hoje o melhor dia da minha vida, este reles dia cheio de defeitos, que amanheceu nublado, não! Mesmo que hoje tenha sido um ótimo dia, um dia ainda mais belo, o mais belo de todos, virá amanhã (e quando amanhã for chamado de hoje, será o que hoje chamamos de depois de amanhã...). Sim, no dia subsequente, após nosso sono noturno, na aurora de uma promessa cumprida! O amanhã virá, após as agruras das infinitas vinte e quatro horas que nos atormentam. O hoje não vale nada. O legal é o amanhã. Portanto, não façamos nada de substancial hoje, pois o amanhã promete! Em suma, o hoje é fichinha perto do amanhã.



Esse raciocínio é universal, porque a esperança - esse adorável defeitinho de nosso cérebro - nos empurra a pensar desse modo. Com isso, o realmente melhor dia de nossas vidas escorre pelos nossos dedos sem percebermos. Só numa profunda depressão, num amargor nostálgico horrível, damos conta disso. Mas o pensamento de que amanhã será melhor que hoje é com razão a causa de nossas ansiedades e angústias, algo de que muitos outros animais parecem livres.

Nesses pruridos confusos que se costuma chamar de mente racional, descobrimos que há causas. Mas há causas e causas. Se eu chuto a bola e ela vai para a frente (e não para trás), diremos que o chute foi a causa do movimento da bola. Esse raciocínio é tão óbvio e tão entranhado no nosso raciocínio que parece que nada pode contradizê-lo. Contudo, o bicho humano é tão doido que já houve muitos que mostraram que a coisa não é assim.

Leibniz foi um desses doidos. O chute causou o movimento da bola, ok, mas eu tive a vontade de chutar antes do chute. Assim sendo, a minha vontade veio antes do chute e foi a causa dele. Mas de onde veio a minha vontade? Que a causou? Nesse raciocínio, muitos chegaram à identificação da causa primitiva numa palavra que explica tudo: foi Deus.

O universo é algo em expansão, mas para expandir seria preciso que tudo estivesse junto e se estava tudo junto antes do Big Bang, por que necessitou expandir-se? Se no primeiro momento tudo estava numa inércia estática perfeita, porque houve a necessidade de começar a mover-se? Qual teria sido o primeiro motor? Dirão alguns, seguindo o raciocínio aristotélico: Deus.


A vontade de Deus é o que faria as coisas acontecerem. É a causa primeira, o ato de criação. E o que aconteceu antes da criação já foi objeto de especulações infinitas. Leibniz resolveu enfrentar a questão com uma solução muito original. Para ele, existe Deus, obviamente. E Deus, no seu ato de criação, criou umas coisas muito difíceis de se entender, chamadas mônadas. As mônadas não seriam reles átomos físicos. Elas estão longe do lamacento e limitado mundo físico nos seus textos ensaísticos. Parecem-se como microdeuses gerados por Deus, tão complexos quanto Ele, mas limitados pelo fato de não serem Deus, afinal de contas, Deus não deixou de existir quando criou as mônadas, mas Deus seria a maior de todas as mônadas e tem algo que nenhuma delas tem, senão, oras bolas, não seria Deus. A criação das mônadas, portanto, não é exatamente uma mitose de um deus amebóide, pois cada um apresenta dentro de si algo da complexidade do universo. E as mônadas são simples e/ou complexas, tanto faz. Tudo é mônada, sim, num discurso que mais lembra as maluquices atordoantes da filosofia indiana. Pitágoras, Anaxágoras, Nicolau de Cusa, Giordano Bruno e Leibniz devem ter fumado a mesma erva, não é possível! Cada mônada representa todas as outras, contém em si o universo inteiro, é em si mesmo um microcosmo, contém todas as leis do universo, sintetiza toda a história do universo e  - essa é a melhor parte - está tremendamente isolada em si mesmo das outras mônadas.

Sim, pois se eu machuco meu pé e ele dói, Leibniz acha que não há uma relação entre o machucar meu pé e a dor que eu sinto, pois o meu pé já estava predestinado a machucar-se e minha mente desde todo o sempre estava sincronizada, para, nesse momento, sentir dor. Portanto, deduz Leibniz, não há causa entre uma coisa e outra. Não entendeu? Normal. Não há paradoxo algum em um único indivíduo ser louco e inteligentíssimo: o que disse Leibniz, ressuscitando a abandonada causa final e o que diziam pitagóricos, platônicos e neoplatônicos são apenas indícios da encruzilhada para onde leva a loucura da racionalidade. No entanto, isso é loucura e nada mais que loucura. Ídolos, diria Bacon.



O que me deixa intrigado era a capacidade de Leibniz ser do contra. Não é qualquer um que tem a pachorra de escrever um livro como Nouveaux essais sur l'entendement humain, que só é compreensível se lermos o An essay concerning human understanding, de John Locke. A paciência de Leibniz chega ao absurdo de contestar integralmente o texto de Locke. Não há problema algum em achar defeitos na obra de alguém, mas alguma coisa está errada quando não achamos nenhuma qualidade. E a obra de Leibniz é uma resposta quase frase a frase à obra de Locke. Quando Locke morreu, Leibniz desistiu de publicar a obra. Os motivos não são claros, mas especula-se que deve ter havido alguma piedade no seu coração para com o oponente defunto ou então as questões pessoais com a Inglaterra, como a acusação injusta movida pelos newtonianos contra ele a respeito do roubo intelectual que teria cometido, possam ter pesado nessa decisão.

Fato é que somente os alemães não ignoraram a excentricidade do sistema de Leibniz, que estava associada ao seu proverbial otimismo e a uma capacidade inédita à diplomacia. Devemos-lhe a gênese daquilo que hoje chamamos de equipes de trabalho acadêmico. Eu, hoje vendo o desenlace dessas questões, admito que há gênios de todos os tipos.

O que me intriga não é a proposta em si, que revela o lado genial e criativo de Leibniz, mas algo como que um reacionarismo à visão pragmática trazida pela nova ciência da época. Esse reacionarismo é constrante na história da filosofia. Os progressos da Inglaterra na área da Ciência eram inegáveis nessa época. A feliz conjunção das ideias pragmáticas de Ockham e de Bacon com a clareza metodológica cartesiana produziram ingleses seiscentistas notáveis, como Newton e Locke, os quais alavancariam as discussões pertinentíssimas de Berkeley, Hume e, mais recentemente, de Popper. E esses autores antigos não são ateus, pelo contrário, embora talvez alguns de seus seguidores o sejam. Por que havia então tanta reação a essas ideias?

Aparentemente foi uma descoberta científica que gerou toda a comoção da discussão da época: a invenção do microscópio. Esse instrumento atormentou Pascal e puxou o freio de mão de Leibniz. Não foram os únicos. Parecia terrível que houvesse insondáveis universos minúsculos dentro e abaixo do nosso universo visível, da mesma forma que o telescópio de Galileu já havia mostrado, acima dele, universos gigantescos sem uma ordenação compreensível, tal como profetizara Giordano Bruno. Uma onda de humildade assolava esses gigantes intelectuais do século XVII que pensavam do seguinte modo: estaríamos sendo presunçosos demais afirmando que são universais as leis e as verdades na nossa ínfima zona de existência? Seríamos arrogantes demais se pensássemos que somos independentes desse contínuo atordoante? Na verdade, o homem onipotente renascentista, que tenta reerguer-se com a ciência, paradoxalmente leva uma nova chapoletada do homem mísero cristão, a criatura expulsa do Paraíso, que usa, nesse golpe, instrumentos novos, criados paradoxalmente por inventores racionais.

Motivo para sentir-se mísero não falta ao homem e essa tendência já se vê desde que os gregos, outrora tão altivos na sua ágora indefectível, quando foram dominados pelo império macedônio e pelo raciocínio persa, trazido de roldão por Alexandre. De um só golpe, todos os cidadãos se tornaram súditos. "Não" - diz esse homem vencido - "a felicidade não pode mais ser atingida hoje". Desse momento de resignação nasce o paradoxo do amanhã augurante: "contudo, no amanhã" - continuavam - "voltaremos ao estado perfeito de outrora, quer depois que eu morrer (num paraíso, do tipo egípcio), quer durante a minha própria vida, com a liberação das amarras da servidão mediante o mistério do batismo (de sangue, como queriam os taurobolistas, ou de água, como faziam os cristãos)". Não parece à toa que essas ideologias tenham florescido em impérios e não em democracias, entre súditos e não entre cidadãos.


O súdito é visto como uma criança pelo seu lider (escolhido ou imposto), o qual assume o papel de pai que constrange suas vontades infantis. Um verdadeiro cidadão, envelhecido pela experiência, não tem líder, pois sabe que sua opinião é tão respeitável e defensável como a de outro qualquer. Qualquer prática que mistura esses dois polos entre a tirania e a democracia efetiva, é algo bizarro e cheio de defeitos. No entanto, a mistura entre tirania e democracia é a regra prática sobre a qual zanza a maioria dos homens do planeta. Mas quem pensa como Leibniz, tão próximo de seres protetores que o mimam, acredita que há um absoluto, um norte que justifique sua felicidade. Seres afeitos à mordomia de um pai superprotetor são profundamente contrários à ideia da inutilidade de um destino, da ausência real de objetivos, da loucura da existência de um norte preprogramado por um ser melhor e superior. Preferem autoenganar-se para ser reles humaninhos e reles cidadãozinhos, para gozar das benesses de um tirano. Esse norte, tão difícil de se desapegar por causa da nossa preguiça e inépcia mental, é invariavelmente algo bem definido e, nas mentes infantis de tantos adultos, algo extraordinariamente claro.

Diz-se que a criança aprende a mentir logo que nasce, pois precisa do autoengano para suportar esse mundo imperfeito, tão diferente da invariabilidade do líquido amniótico em que estava imerso, como que numa eternidade feliz. O corte do cordão umbilical é o primeiro trauma do recém-nascido, que é obrigado a comer e a respirar. A necessidade de mentir para si mesmo torna-se questão de sobrevivência para essa massa gordurenta chamada cérebro, tão afeita à decepção e à loucura. A sanidade é o objetivo preprogramado pela evolução que nos orienta para entender esse mundo novo pós-uterino. Mas o mundo não nos ajuda, então, entre os objetos de nossa sanidade há algo que se convencionou chamar de absoluto. E esse absoluto parece a razão de tudo.

Mas não é, infelizmente. Não há nada além do que existe. E diariamente confirmamos isso, a tal ponto de ser quase desnecessário comprovar essa sentença. Por que será, então, que é tão difícil que convivamos com essa verdade? O que parece certo e seguro é a infinita dimensão de nossa ignorância. Mas sermos ignorantes não quer dizer o mesmo que haver algo que seja mais sábio que nós. Se houvesse, teríamos matado a charada e teríamos deixado de ser ignorantes. Seríamos, pelo contrário, bem sabidinhos.

E entre os sabidinhos está Leibniz. Pena que sofria desse autoengano. Pascal, que era mil vezes mais religioso, aparentemente percebera isso, no entanto, sofreu ainda mais, durante metade da vida, com a autotortura incessante de seus pensamentos. Será então por isso? Teremos apenas duas escolhas: ou nos autoenganamos ou nos autotorturamos? Talvez. Mas se somos conscientes disso, a experiência já nos mostrou que nascerá uma terceira via.



Pensemos: somos limitados, não há nada além (a não ser o arrepiozinho vago daquele que nos contradiz furioso) e se houver ou houvesse, não seria necessariamente melhor, nem mais perfeito, nem a favor de nós. Seria apenas algo que ignorávamos e nada confirmaria o que já sabemos, pois não há indícios, no meio de nossa imensa ignorância, que já descobrimos e conhecemos o que ignoramos. Isso me é frustrante, mas se eu aceitar isso, sem me achar mísero ou desamparado e se pensar que, apesar de ridiculamente limitado, não devo ficar deprimido nem fazer o que é contrário aos princípios morais e éticos que me ensinaram e me constituem como o indivíduo social que sou, simplesmente descobrirei que não há um legislador supremo que exerce uma justiça real e incompreensível sobre mim. Serei livre, exceto pelos meus escrúpulos e devo responder por eles por não ser um ermitão. Quando chegar nesse grau de raciocínio, pensarei que, aí sim, serei, dentro do otimismo leibniziano, senhor de meus atos neste mundo atual. Se somos os senhores, seremos responsáveis pelo que faremos hoje e pelo mundo futuro que virá após nós. Civilidade e respeito não precisam emanar, por meio de hipóstases misteriosas, de um Bem absoluto. Sabermos que não somos pajeados, nem súditos de ninguém é a única forma de falar sobre um futuro. 

Voltando-nos, como agentes, ao bem individual e comum, não mais regidos por uma causa final, seremos melhores conosco, com o mundo que nos cerca e com o mundo que virá depois. A causa final é inútil, apesar de essa bizarrice aristotélica ter sido abraçada por tantos intelectuais e ressuscitada desesperadamente toda vez que surgia uma nesga de materialismo. Igualmente inútil é a hierarquia do ser. Plotino fumou do mesmo cachimbo que Platão. 

A busca da resposta no além foi e é sempre uma opção, apimentada com a revigorante afirmação de que nosso trajeto de vida é uma soma de escolhas divinas ou das melhores orientações para nosso livre arbítrio e não uma combinação hipercomplexa de casualidades e causalidades. Todavia, se somos como máquinas, devemos ser máquinas complexíssimas. Mesmo se aceitássemos isso, não deduziríamos necessariamente daí que alguém nos tenha construído. A metáfora do relógio pára aí: não há relojoeiro algum. Apesar de complexos, somos tão previsíveis quanto um pardal que cai numa armadilha, pois nossa mente é como que um arremedo simplicíssimo da realidade, essa sim, infinitamente mais complexa, e esse foi o bicho-papão que assustou o bebê recém-nascido, quando abriu os olhos e, ato contínuo, refugiou-se no primeiro projeto de um mundo de autoenganos. Foi essa realidade, a única que nos é possível, associada ao programa genético que nos faz entendê-la, que transforma o caos em ordem.

Mas atenção: trata-se da nossa ordenação e não a ordem de fato, não é a ordem divina, senão seríamos, aí sim, presunçosos demais. Trata-se apenas de uma ordenaçãozinha de uma espécie particular dentre as milhões que já existiram neste planeta, pela qual temos especial afeição a ponto de sentirmo-nos centro do mundo e parelhos às nossas divindades, ou seja, trata-se apenas da ordenação da espécie humana a que eu e você pertencemos.