O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

domingo, 21 de maio de 2017

O VALOR DO VALOR

Pensar sobre o valor das coisas não é algo fácil de se fazer nos dias de hoje. 

O valor não é algo intrínseco ao real, mas fruto de nossa cognição. Essa pequena afirmação pode ser entendida como pedra basilar do edifício do niilismo. Basta retirá-la para tudo desabar. Pessoas muito inteligentes no passado reconheceram a fragilidade de tudo, mas não se deixaram contaminar pela apatia que isso oferece. De fato, um niilismo de fachada é o maior índice da filosofia barata. É muito difícil ser um niilista convicto sem ser piegas e ator.

O niilismo, porém, não é a razão da fragilidade das coisas: já escrevi de forma pouco amistosa sobre a esperança. Aparentemente, niilismo não tem nada a ver com esperança, como tentarei demonstrar abaixo, da mesma forma que não tem nada a ver com ateísmo. Nossa cultura entrelaçou essas noções de tal forma que é difícil colocar na mesa os elementos básicos que sustentariam essa minha convicção. Não custa tentar, porém.

O niilista acredita no Nada. O mundo, como eu disse, não tem valores: atribuímo-lhos. Ponto final. Este diamante é uma pedra tal como um pedregulho qualquer. O valor não está nele. Esse papel com que pago minhas contas e se chama "dinheiro" não tem valor intrínseco: posso incinerá-lo e sua fumaça não valerá nada. O meu querido cachorro é apenas um aglomerado de sistemas biológicos em funcionamento: o que faz dele querido sou eu. O que chamamos de bens, seja materiais seja imateriais, na verdade é algo convencionado e reflete as minhas preferências. Se nem mesmo as cores existem, para que falar da existência realista dos valores? Perguntaria o niilista. Um niilista, porém, tem seus valores, apesar de não crer na sua materialidade. Senão, vejamos.

Para tirar todos os equívocos: não confundamos o ateu e o niilista. Todo niilista é ateu, mas nem todo ateu é niilista. Aliás, há toda uma horda de pessoas que se intitulam ateias, algumas com ridículo orgulho. Há, portanto, o falso ateu, o ateu retórico, o ateu fundamentalista, o ateu incoerente, há até mesmo ateus que não sabem que o são. Ateu é apenas uma pessoa que não acredita em determinadas divindades. Não é preciso muito. O niilismo requer mais. Alguém imagina que um ateu não tem valores, mas isso não é verdade. Ateus niilistas são um grupo minúsculo. Ateus niilistas que não têm valores alguns, contudo, não existem. Todos temos valores, niilistas ou não, ateus ou não. Mas essa confusão tem várias fontes. Por exemplo, o crente tem esperança que o injusto poderá viver bem nesta vida mas se danará no futuro post mortem. Esse discurso egípcio com milênios de existência tem base apenas na nossa triste sede de justiça, na nossa resignação e na nossa preguiça. Se o ateu não acredita sinceramente que haverá uma vida após a morte, na qual a justiça plena finalmente se estabelecerá, pedirá a justiça agora. 


O mesmo faz o niilista. Afinal, é aqui nós vivemos. E não vivemos solitariamente. Somos exemplares de uma espécie que vive em bando. E a regra número um do bando é a colaboração. Pode-se não acreditar na justiça após a morte, mas isso não impede um ateu ou um niilista de exercer o "aqui se faz, aqui se paga", não como uma lei supersticiosa da natureza, mas como exercício da justiça entre seres de bando, como somos nós, os homens.

Obviamente há niilistas hipócritas. Um hipócrita não é quem está convencido de que no mundo não há valores. Este apenas seria um realista. Um hipócrita sabe que há valores entre as relações humanas e se vale deles para seu próprio benefício. Ou seja, um hipócrita é um realista egoísta. Essa definição, contudo, ainda não está completa: nem todos os realistas egoístas são hipócritas. A diferença principal é que o hipócrita alardeia que acredita nos valores, mesmo não acreditando. Em suma, o hipócrita é um realista egoísta e mentiroso. Obviamente há niilistas que também são egoístas e mentirosos.

Mas há outros niilistas que, pelo contrário, sinceramente dizem não acreditar nos valores e, mesmo assim, são altruístas. Não há paradoxo algum nisso. Não acreditar nos valores é uma forma de humildade e não necessariamente um motivo para justificar a hipocrisia. Ser niilista não é ser amoral. Afinal de contas, não há nada mais terrível do que descontruir tudo e a si mesmo para chegar à condição do sincero niilismo. Quando falo isso, lembro-me de uma ilustração de um livro de Emil Cioran (1911-1995) que muito me impressionou: um homem descendo por um escorregador cuja base era parecida com a de um ralador de queijo. Esse homem não chegava até o fim do escorregador, pois fora destroçado pelo caminho e se resumia num monte de carne picada no meio do trajeto.

O niilista sincero sofre com a miserável condição humana e não é raro que tenha empatia com o outro que também sofre. Em vez de hipócrita, pode estender a mão ao outro, pode deixar de lado sua angústia para dar um segundo de alegria para alguém. O niilista valoriza o momento bom porque sabe que é difícil transitar por um bosque cheio de monstros ilusórios e cheio de fadas igualmente ilusórias como a vida. O humor do niilista às vezes é irônico, sua atitude amiúde é arrebatada: Nietzsche não tinha nada de niilista, pois era totalmente embriagado pela esperança. Niilistas de verdade não dão ouvido a fadas.



Esse niilista a que me refiro não é apático, muito menos é um suicida. Quer viver, mas sabe que esta vida tem limites. Por isso exige, cobra, chateia, porque, afinal, sabe que nenhum ser de outro planeta virá redimi-lo. O niilista usa o que está aí, não hipocritamente, mas em benefício dos outros, mais do que para seu próprio. Preocupa-se com o futuro em que já não mais estará na Terra, quando for povoada por outros miseráveis esperançosos. O verdadeiro niilista se indigna perante os fatos.

Se não há nada eterno - somente o provisório - e se não temos escolha senão viver nessa transitoriedade da vida, com suas limitações a que nos resignamos e contra as quais lutamos sem hipocrisia, sem sério prejuízo de ninguém, por que o niilista teria que aceitar que outros abusem dele ou abusem de outros mais fracos que ele? Não, o niilista pode não acreditar em nada porque sabe que não há nada, mas não tem escolha: é um ser de bando e o bando tem regras. O niilista se revolta.

Romper uma regra não é digno de quem quer viver em bando. Os ermitões verdadeiros é que rompem todas as regras: comem lesmas, andam nus, defecam em qualquer lugar. Cuidado! Podem até matar para comer a sua carne. Um ermitão é o limite da humanidade, pois está a um passo da loucura. Esse sim não tem regra. Não me venha com seu autoengano dizer-me que você é um ermitão. Se me lê, não é. 

As regras estão aí. Verbalizadas ou não. Quem as quebra, pode ter consciência pesada. Esses eu não julgo porque isso faz parte da humanidade. Mas julgo os que quebram e têm a consciência muito leve a ponto de dormir muito bem. Esses perderam a sua humanidade em algum momento da sua vida. Não são gente: são ermitões em seu mundo de mentiras. Não sabem viver em bando a não ser mentindo, roubando e matando. Na cara desses um verdadeiro niilista não se dignaria sequer a escarrar, tamanho o desprezo que lhe devota. Mas no quarto de acúmulos da justiça achará algo que lhe sirva, para que o hipócrita recupere sua consciência perdida e volte a ser gente, para viver entre nós.

É nesse momento talvez que o niilista se mostre paradoxal, porque tem alguma esperança de que esse miserável ermitão que afastou do bando reaprenda o valor dos valores: longe de seu mundo de mentiras, mas confinado numa solitária, na prisão da verdade.