O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

PRESCRIÇÃO OU PROSCRIÇÃO: A ARTE DA CONVIVÊNCIA

No mundo atual, onde todos têm razão, o megafone das redes sociais dá voz às vicissitudes mais íntimas de cada um, conferindo-lhes ilusória eternidade. Desde que os pares se reuniram em grupos orkutianos, ainda no século passado, assinando declarações públicas acerca de seus gostos e ódios, desde que se inventaram os infames dedinhos e o mundo se converteu num neomaniqueísta like-dislike de opiniões, desde que essa silenciosa turba começou a emergir, não se fala mais em retorno aos tempos em que não éramos interenredados, de modo que não há outra solução hoje a não ser a de conviver ininterruptamente com o nosso oposto. Obviamente, conviver com quem pensa ao contrário de nós nunca foi fácil e os mais suscetíveis (ainda bem que poucos!) ainda preferem enforcar-se ou fazer uma carnificina. A esses não me dirijo. Arquem com as consequências de sua fraqueza psicológica de não conseguir conviver. A grande maioria das pessoas, contudo, preferimos viver mais um pouco, livres, ainda que azucrinados, até o fim de nossos dias, pela voz daqueles que nos são cognitivamente incompatíveis. Para esses, espero eu, a leitura desse texto oxalá seja útil.

Conviver com o oposto, obviamente, não é fácil: nunca o foi. Mas há basicamente duas situações de conflito. Quando o discurso oposto ao nosso advém de uma minoria comparo-o com aqueles alarmes de carros estacionados nas ruas que disparam, acionados por qualquer coisinha, sem que o proprietário do veículo esteja por perto nas próximas horas, para socorrer as circunjacências da sua consequente infernização ou então com aquele cãozinho provisoriamente abandonado, que resolve entristecer-se, emitindo infinitos e repetitivos ladridos e uivos, amplificados pelas paredes do condomínio, a enlouquecer todos os que, por infelicidade, estejam ali, diferentemente do sortudo dono (que diz amá-lo). O oposto minoritário é apenas um chato: uma hora cala-se, se não dermos ouvido a ele. 


Mas atenção: há diferença entre as duas imagens, e não pequena: buzinas acionadas sozinhas não se desesperam. Um alarme chateia sem a menor intenção e não se cansa, no máximo, pára quando a bateria do carro termina. Um cão não só quer ser ouvido, mas também sofre e se extenua, ainda que sua exaustão ocorra bem depois do exaurimento da paciência de seus ouvintes. Ou seja, se a metáfora é boa, há opostos minoritários que são obstinados extraordinariamente frios e só terminam seu falatório per se; já outros, que gostam de chamar atenção à sua causa, contudo entristecem-se, cedem  ao pessimismo e acabam por calar-se algo que complexados. 

Já o oposto majoritário é diferente: se a maioria pensa diferente de nós, nós é que somos a buzina e o cão. Nós é que somos o problema. Se o mundo está alicerçado nas nossas convicções, é cômodo ter a certeza de que os chatos são eles, que não comungam de nossos pressupostos. Numa eventual situação contrária, parece seguro que nossas convicções fiquem no porão do anonimato em silêncio, afinal, ninguém quer ser punido por uma patrulha que pensa diferentemente de nós, ninguém quer ser exposto como daninho ou louco e, convenhamos, é impossível daí não concluir que desejamos que a situação se altere, a menos que tenhamos algum prazer na resignação, alguma essência fatalista, algum galardão comportamental de nada ver de errado na alteridade, alguma extremada acomodação ou uma infinita hipocrisia. O mais comum, contudo, é o pensamento seguinte: se questionar autoridades é válido por que não posso eu mesmo ser a autoridade?

Sabemos, civilizados que supomos ser, que a melhor reação não é a da violência, a da ofensa ou a da ironia, a mas a da própria racionalidade. Seria a razão que nos faz perceber como minoria sensível à contradição? Como evidenciar ao nosso oponente uma contradição dele que não o ofenda? Pior: para contradizermos algo não seriam necessárias premissas com as quais ambos estejamos de acordo? Isso não tem sido nada fácil: mesmo que as selecionemos, é preciso estarmos de acordo que essas premissas e suas conclusões (e não outras) devam ser preservadas para raciocínios subsequentes. Ora, sabemos que isso não foi fácil nem na época de Sócrates, quando havia poucas coisas sobre as quais opinar. Que dizer de agora, após tantas novidades quinhentistas, verdades setecentistas, antíteses e sínteses oitocentistas, inversões propositais novecentistas, sem falar dos direitos à voz atuais?



"Se um afirma que a gravidade não existe, como Jesus cairia da goiabeira?". De fato, os paradoxos atuais soam estranhos para quem não comunga de vários pressupostos e premissas elípticas. Por onde começaríamos para haver um diálogo minimamente honesto? Talvez pelo pressuposto de que ambos queiramos ter um diálogo. Queremos?

Suponhamos que não, que tanto eu quanto tu queiramos apenas impor nossas ideias. Pois bem, há quem alicerce seus argumentos em conhecimentos acumulados, supraindividuais, coletivos e formalmente sólidos; há quem aposte mais em argumentos improvisados, ditados pela inspiração, pela genialidade, os quais sobrepujariam, segundo muitos, todas as visões anteriores. Há ainda os que acatem argumentos perenes ditados de um mundo sobre-humano habitado por seres que se importam com sua criação, seja por amor, seja por tédio, seja por sadismo. 

Obviamente eu acho que tenho razão no ponto debatido. Obviamente tu também te achas com razão. Não é isso já um acordo? Afinal, estamos pressupondo ambos que temos a mesma coisa! E se, portanto, já temos o que queremos, concluímos que ambos estamos satisfeitos. Não é isso já um acordo? Nossa conclusão se confunde com nossos pressupostos; são distintas mas conduzem ao mesmo bem. Nossa conclusão será (ninguém o negará) profundamente relativa àquilo que buscamos. Achamos a paz nesse relativismo. Mas, observará alguém, conclusões relativas são profundamente pirrônicas. Se quisermos ser pirrônicos, portanto, dispomos de um excelente desfecho. Só não me convence que haveria uma só moral da história, satisfatória para ambos os debatedores. Com quase certeza posso afirmar que não haverá e tu concordarás comigo. Mas se temos certeza de algo, não somos pirrônicos! Desfaz-se o acordo, voltamos ao debate. Parecíamos irrefutáveis, mas dois pirrônicos anulam seus pressupostos num debate. Voltemos ao ser humano de carne e osso: o ser idealizado da lógica não nos serve.

O pirronismo nunca deu bons frutos, como se pode ver: seria a causa disso a vontade de domínio, atávica aos seres humanos? Deixemos para outra hora essa questão. Bom, se quero convencer-te e tu, a mim, não sejamos hipócritas: lancemos a primeira afirmação e que o outro discorde com argumentos válidos. A Terra ou é esférica ou isso é um complô da Nasa para que não saibamos que é apenas uma cúpula boiando no nada ou nas costas de elefantes, que, por sua vez, estão nas costas de uma tartaruga. Tudo o que eu mesmo não enxergo, não toco, não saboreio, necessita de um modelo teórico? Mas as ilusões são o quê? Há algo que não seja explicado ou explicável por evidências sensoriais ou por conclusões de premissas? Provavelmente não, a menos que aquilo que chamam de seja o culto ao irracional, no entanto, julgo eu, que aquele que se vale de uma fé qualquer, a despeito da ausência de evidências sensoriais não ilusórias e de indecorrências de premissas, apontará sua crença para algo com uma autoridade, um texto, uma verdade da qual não arreda pé.


Uma revolução radical nos pressupostos não nos conduzirá a bons técnicos, que consertem nossos iPhones no futuro, ou que ponham no ar os YouTubes que propagam as novas ideias que supostamente destronaram as antigas: um pouco das velhas há de sobrar num mundo mais hipócrita do que o que se seguiu imediatamente após Hegel, relativistas, semicientistas e pós-modernos. Mas a coluna há de ficar ereta para que faça piruetas extravagantes a choldra questionadeira, com sua magna auto-estima, sem vergonha de sua voz esganiçada e de suas ideias até há pouco tempo apenas expostas, por entre uma nevoaça alcoólica, em reuniões familiares ou em mesinhas de bar. 

Todos usamos quer o que o mundo nos dá (seja à nossa percepção, seja à nossa razão), quer o que textos nos dão, quer a convicção de uma traidora memória acerca de uma visão de infância: mais do que a necessidade de estar convicto daquilo que falamos, vimos falando ou acabamos de concluir, apresenta-se-nos como a coisa mais necessária de todas ter uma plateia. A obsessão por ter seguidores e o medo de não ficar falando sozinho é o único ponto que realmente caracteriza os dias de hoje. Hoje louco não é mais quem tem uma ideia excêntrica, mas quem fala sozinho. Louco é quem não é submetido ao like-dislike, o oxigênio do século XXI.

A diferença que nos causa espécie e reações nos tempos atuais está toda aí: a demência lamentável do nosso oponente de opiniões nunca mudou! Novo, contudo, é o fato de hoje cada loucura individual  ter um séquito. É a falta de séquitos que nos incomoda mais hoje e não a loucura propriamente dita, pois, abandonada a razão, tornou-se a plateia mais valiosa, nos dias atuais, do que o maior dos diamantes. Perante tanta estupidez asseverada, consolemo-nos: talvez estejamos num novo período pré-socrático. E esse novo Sócrates um dia virá com poder e glória e nos boquiabrirá nos limites e nos píncaros da razão humana, diz o máximo otimista. Não leia isso como ironia, leitor: leia-o como sarcasmo, escárnio. É deboche, mesmo: sabe-o quem me lê assiduamente e está ciente do quanto sou cético acerca da alardeada razão humana ilimitada.

É a falta de séquito que nos incomoda hoje, mais do que a loucura propriamente dita. Quando, definitivamente, conseguirmos conviver com esses novos memes (no sentido original e dawkininano do termo), tudo voltará a ser a bobagem que sempre foi. Oxalá seja ano que vem.



sexta-feira, 30 de novembro de 2018

VIVER É UM LANCE LEGAL: EU JÁ ESCUTO OS TEUS SINAIS

Garçom! Aqui, nessa mesa de bar, você já cansou de escutar centenas de casos de amor. Meu caso é mais um, é banal, mas preste atenção por favor...  Ai, quanto querer cabe em meu coração! Ai, me faz sofrer, faz que me mata e, se não mata, fere. Às vezes você me pergunta por que é que eu sou tão calado; não falo de amor quase nada nem fico sorrindo ao teu lado. Amar é um deserto e seus temores. Sinônimo de amor é amar.

Havia um tempo em que eu vivia um sentimento quase infantil: havia o medo e a timidez, todo um lado que você nunca viu. Ganhava a vida com muito suor e mesmo assim não podia ser pior: pouco dinheiro pra poder pagar todas as contas e despesas do lar. Lembro a menina feia, tão acanhada, de pé no chão; hoje, maliciosa, guarda um segredo em seu coração. Do lado direito da rua Direita olhando as vitrines coloridas eu a vi, mas quando quis me aproximar de ti não tive tempo: num movimento imenso na rua eu lhe perdi. Eu sonhava como a feia na vitrine, como carta que se assina em vão. Sei que você gosta de brincar de amores, mas oh: comigo, não! Foi nessa noite de outubro, quando perdi a inocência, por você: me entreguei aos seus carinhos, eu fiz os seus caprichos, por amor. Só você pra dar à minha vida direção, o tom, a cor: me fez voltar a ver a luz - estrela no deserto a me guiar, farol no mar da incerteza. Ela me falou dos seus dias de glória e do que não está escrito lá nos livros de história...Seu corpo é fruto proibido, é a chave de todo pecado e da libido e prum garoto introvertido como eu é a pura perdição. Essa noite eu quero te ter, toda se ardendo só pra mim. Fazer amor de madrugada, amor com jeito de virada. Beijo travoso de umbu-cajá...Foi um lindo amor; pena não sobreviver: quando a vida me iluminou, a minha luz era você. O nosso amor na última astronave, além do infinito eu vou voar, sozinho com você. Vi a minha força amarrada no seu passo; vi que sem você não há caminho, eu não me acho; vi um grande amor gritar dentro de mim como eu sonhei um dia. A paixão não tem nada a ver com a vontade: quando bate é o alarme de um louco desejo...


Eu que tinha tudo hoje estou mudo: estou mudado à meia-noite, à meia luz, pensando - daria tudo, por um modo de esquecer. Na madrugada, a vitrola rolando um blues, tocando B.B.King sem parar. Quando a paixão não dá certo, não há porque me culpar: eu não me permito chorar, já não vai adiantar e recomeço do zero sem reclamar. À noite vai ter lua cheia, tudo pode acontecer. Se o luar é meu amigo, censurar ninguém se atreve: é tão bom sonhar contigo, oh!, luar tão cândido. Eu saio de noite andando sozinho, eu vou entrando em qualquer bar, eu faço meu caminho: o rádio toca uma canção que me faz lembrar você, eu fico louco de emoção e já não sei o que vou fazer... No espelho dessas águas vejo a face luminosa do amor: as ondas vão e vêm e vão e são como o tempo. No silêncio, uma catedral, um templo em mim onde eu possa ser imortal, mas vai existir, eu sei, vai ter que existir, vai resistir nosso lugar. Meu destino não é de ninguém e eu não deixo os meus passos no chão; se você não entende não vê, se não me vê, não entende. Vamos embora de repente, vamos embora sem demora, vamos pra frente que pra trás não dá mais. Acabei com tudo, escapei com vida: tive as roupas e os sonhos rasgados na minha saída. Há uma porta que um de nós vai ter que abrir, oh! há! Há um beijo que ninguém vai impedir: não vai! Quando homem e mulher se deixam levar, é fácil viver mais. Aquela menina era a felicidade que eu tanto esperei, mas não tive coragem e não lhe falei do meu grande amor; e agora, por onde ela anda eu não sei. Garota pegou fogo em mim; sigo incendiando, bem contente e feliz. De mãos dadas vamos andar; muitos beijos iremos trocar. Me beija na boca, me ama no chão; me suja de carmim, me põe na boca o mel, louca de amor, me chama de céu. Não se esqueça, meu amor, que quem mais te amou foi eu: sempre foi o teu calor que minha alma aqueceu. Mas se um dia eu chegar muito louco, deixa essa noite saber que um dia foi pouco.

A luz do sol me incomoda, então deixa a cortina fechada. Eu desço dessa solidão; espalho coisas sobre um chão de giz. Noite e dia se completam; o nosso amor e ódio eterno: eu te imagino, eu te conserto, eu faço a cena que eu quiser. Mas o ódio cega e você não percebe. Como uma deusa você me mantém e as coisas que você me diz me levam além. Voltei pra rever os amigos que um dia eu deixei a chorar de alegria; me acompanha o meu violão. Eu sou de todo mundo e todo mundo me quer bem. Se eu soubesse o quanto dói a vida, essa dor tão doída não doía assim, Quero somente que na campa em que eu repousar, os ébrios loucos como eu venham depositar os seus segredos ao meu derradeiro abrigo e suas lágrimas de dor ao peito amigo. E cada vez que eu fujo, eu me aproximo mais e te perder de vista assim é ruim demais e é por isso que atravesso o teu futuro e faço das lembranças um lugar seguro. Se Deus quiser, um dia acabo voando, tão banal assim como um pardal, meio de contrabando, desviar do estilingue, deixar que me xingue. São cinco elementos apunhalando o coração: o fogo, a terra, a água, o ar e a paixão. Coração, diz pra mim por que é que eu fico sempre desse jeito.


Amanheci sozinho; na cama, um vazio -  meu coração que se foi, sem dizer se voltava depois. Tranquei a vida neste apartamento e a marcada juventude  também. Deitado no meu quarto, o tempo voa; lá fora a vida passa e eu aqui, à toa: eu já tentei de tudo, mas não tenho remédio pra livrar-me desse tédio. Mais um ano que se passa, mais um ano sem você. Já não tenho a mesma idade, envelheço na cidade. Medo da vida assim engatilhada. Quero não lembrar, que às vezes sem querer me apanho falando em você. Eu amei há muito tempo atrás; já cansei de tanto soluçar. Eu nem buscava alguém a fim de repartir uma ilusão. Hoje eu acordei com saudades de você: beijei aquela foto que você me ofertou, sentei naquele banco da pracinha só porque foi lá que começou o nosso amor... Tudo, tudo pode o amor ganhar: passe o tempo, passe o que passar, a noite vem, o dia vai. E fazer seu jogo vai me deixar louco; sei que você pensa o amor é do seu jeito: coração quebrado e orgulho inteiro. O que é que tá me faltando pra que eu te conheça melhor? Você me traiu e disse que é normal: um a um todos irão por certo acompanhar a evolução e quase que eu fiquei pra trás... Por quê? Fui querer ser bom rapaz. Já que terminamos, só resta agora o adeus final: te amar demais, ser um bom rapaz foi o meu mal, mon amour, meu bem, ma femme. Como eu queria ser esse sol que lhe queima, essa roupa que cobre o seu corpo, o vento que lhe possui e essa água que banha você. Mas se um dia eu chegar muito estranho,  deixa essa água no corpo lembrar nosso banho. Desde quando eu te conheci, nunca mais te tirei daqui, do meu peito: de que jeito? Não está sendo fácil. Não digo que não me surpreendi: antes que eu visse, você disse e eu não pude acreditar.



Quase não consigo na entrada chegar, pois a multidão estava de amargar. Seu olhar inquieto vacila em qualquer direção; o seu corpo empinado desfila na escuridão: ela é uma estrela que brilha na vida que traz. Você diz que me adora, que tudo nessa vida sou eu. O nosso amor não é mais o mesmo: é melhor que eu vá embora. Dizem que eu estou errado, mas quem fala isto é quem nunca amou: posso até ser ciumento, mas ninguém esquece tudo o que passou... Amor perfeito existia entre nós dois; sem esperar que depois fosse tudo se acabar, mas neste mundo que o perfeito não tem vida; não merecemos, querida, viver juntos e amar. Aguardaremos, brincaremos no regato, até que nos tragam frutos teu amor, teu coração. Que seja assim por toda vida e a Deus mais nada pedirei. A arte de viver da fé; só não se sabe fé em quê...esse amor, de cartas claras sobre a mesa é assim. Caso você case, não escreva a nota, não destrave a porta. Toquem o meu coração, façam a revolução que está no ar.


Seus olhos verdes no espelho brilham para mim. Alguém me disse que tu andas novamente de novo amor, nova paixão, toda contente. Você é doida, desalmada e atrevida: sempre quer alguém na vida só para fazer sofrer! Às vezes muito perto desejamos encontrá-la, no entanto é preciso muito longe ir buscá-la. Toquei a 130 com destino à cidade; no Anhangabaú botei mais velocidade; com três pneus carecas derrapando na raia subi a Galeria Prestes Maia. Cento e dez, cento e vinte, cento e sessenta: só pra ver até quando o motor aguenta. Estou só, a duzentos por hora: vou parar de pensar em você pra prestar atenção na estrada. Eu sou rebelde porque o mundo quis assim, porque nunca me trataram com amor e as pessoas se fecharam para mim; eu sou rebelde por que sempre sem razão me negaram tudo aquilo que sonhei e me deram tão somente incompreensão. Cadê você, que nunca mais apareceu aqui? Que não voltou pra me fazer sorrir, que nem ligou, cadê você? Meu Deus do céu, diga que isso é mentira! Se for verdade esclareça por favor! E não tem como não saber: pra mim é óbvio, só pode ser.  Ela me diz que é muito bom ter liberdade, que não há mal nenhum em ter outra amizade e que brigar por isso é muita crueldade. Já sei que um é pouco, dois é bom e três é demais e eu fico louco de ciúmes de um outro rapaz... A palavra que destrói o amor quando tudo ainda estava inteiro: no instante em que desmoronou, palavras duras em voz de veludo. É tão certo quanto o calor do fogo: meu bem querer tem um quê de pecado, acariciado pela emoção.

Só depois de muito tempo, comecei a entender como será meu futuro. O meu erro foi crer que estar ao seu lado bastaria. Feiticeira, feiticeira! Eu não posso negar o feitiço que ela me fez! Não vá embora, meu bem, não vá embora: se você for, eu vou chorar a vida inteira. Meu mel, não diga adeus: eu tenho tanto medo de ficar sem o seu amor e pra sempre ser um ser só. Deu pra ti? Baixo astral! Quantos elementos amam aquela mulher? Quantos homens eram inverno, outros verão, outonos caindo secos no solo da minha mão? Explica a grande fúria do mundo! Eu só peço a Deus um pouco de malandragem, pois sou criança e não conheço a verdade.




Fantasmas no meu quarto, fixação! I want to be alone! Tu pediu, agora toma! Não adianta tu voltar, menina, agora você vai sentar! Olho para chuva que não quer cessar: nela vejo o meu amor; esta chuva ingrata que não vai parar pra aliviar a minha dor. Um dia desses, num desses encontros casuais, talvez a gente se encontre, talvez a gente encontre explicação. Deixa chover, deixa a chuva molhar. O tempo passa e com ele caminhamos todos juntos sem parar; nossos passos pelo chão vão ficar. Um velho cruza a soleira, de botas longas, de barbas longas, de ouro o brilho do seu colar na laje fria onde quarava sua camisa e seu alforje de caçador. Um grande amor do passado se transforma em aversão e os dois lado a lado corroem o coração. Sorria, meu bem, sorria, da infelicidade que você procurou! O que você precisa é de um retoque total: vou transformar o seu rascunho em arte final. Pode seguir a tua estrela, o teu brinquedo de star; fantasiando um segredo no ponto a onde quer chegar. Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Quando a gente tenta de toda maneira dele se guardar, sentimento ilhado, morto, amordaçado volta a incomodar. Ah, que o voo do condor no sol trace a linha da nossa paixão. Tudo é mistério nesse teu voar. É aqui onde estou: essa é minha estrada por onde eu vou e quando eu cansar, na linha do horizonte eu vou pousar.



sábado, 20 de outubro de 2018

HISTÓRIA E SIGNIFICADO

É conhecido dos linguistas brasileiros o paradoxo que Joaquim Mattoso Camara Jr apresentou acerca da incompatibilidade da segmentação vocabular simultaneamente sincrônica e diacrônica. 

Para qualquer falante da língua portuguesa, um verbo como comer tem um radical com- que aparece em todo o paradigma verbal: como, comes, comíamos, comessem, comendo etc. Nenhum usuário do idioma, desde que devidamente treinado com rudimentos dessa prática dissecativa (obviamente), teria dificuldade em dizer que com- é o radical dessa palavra, ao passo que -er é uma terminação, composta de uma vogal temática de segunda conjugação -e- e de uma desinência que indica infinitivo, -r. 

No entanto, isso só é válido para a consciência do falante de português devidamente treinado. Se ele mergulhasse com um batiscafo nas zonas abissopelágicas do idioma, veria que, claramente, o primeiro elemento com- não foi um radical em outras eras, mas sim um prefixo significando "todos juntos" o qual, anexado ao verbo latino edere - que significava "comer" - formava um verbo composto comedere, avô da nossa palavra recém-dissecada

Por causa das enxurradas do rio do tempo, essa palavra, criada no Lácio, foi empregada por bocas ibéricas, às quais se amoleceu o -d- e as quais o converteram num som parecido com o th- da palavra inglesa that, para, por fim, esvanecer-se nas fumaças acústicas, assim como aconteceu com o atonicíssimo -e final. Eis que o verbo comedere, por meio de uma inércia linguística, erodido nos atritos das eras, tal como uma lagarta que se metamorfoseia, tornou-se comeer, com dois -ee- pronunciados separadamente e com acento tônico no segundo. Não seria pedir muito ao leitor que acreditasse em algo que costumeiramente perceberá ocorrer com palavras como "cooperar": duas vogais assim, juntinhas, combinam muito pouco com nossa pressa hodierna e também não combinavam com a pressa medieval de reconquistar terras mouras ou com a pressa do Renascimento, ao sair em caravelas mar adentro. Resumindo a ópera, compreensivelmente se vê que os dois -ee- se fundiram num só e no único -e- que ouvimos. A palavra mumificada em sua crisálida de letras, contudo, continuou a mudar por dentro, de modo que em bocas brasileiras, o -r final também caiu e, volta e meia, o -o- acaba fechando-se ainda mais, tão ávidas as bocas estavam em seu mascar diário, que lhe garante sobrevivência individual.


Mas voltemos a fita ao paradoxo de Câmara Jr: se é verdade que com- é o radical da palavra em funcionamento, tal como uma batedeira de bolos a girar sobre claras em neve, não é verdade que sempre o foi. E de fato, quando comer foi um dia comedere, o radical era esse -ed- que fica entre o prefixo e a desinência, o qual se converteu, pelo desgaste fônico supracitado, em -e- pouco antes de fundir-se completamente com o segundo -e- da desinência. Teria a palavra dois radicais? Um sincrônico e um diacrônico? Aquilo que hoje chamamos de radical foi um prefixo. Ainda o é? Se sim, o antigo radical é a vogal temática, misturada no milk shake do tempo?

A pergunta é meio estranha. Algo como dizer que se os cetáceos, mamíferos que retornaram ao mar primordial, têm os artelhos ocultos em suas barbatanas, inegavelmente homólogos aos de nossa mão igualmente mamífera, conclui-se que patas e barbatanas são uma e única coisa... O ancestral jamais pensaria que sua velha mão se tornaria barbatana e a barbatana não tem saudades do tempo em que era quadrúpede. Foi a necessidade e o meio que a mudaram. O que foi no passado não faz sentido no presente e até atrapalha: substituam a barbatana da baleia por uma pata de cavalo e lancem-na de volta ao mar. Sem dúvida, a falta de utilidade da condição ancestral será o motivo de seu perecimento. E a baleia, dando coices, morrerá afogada.

Uma pata de cavalo numa baleia não teria significado algum, assim como causa espécie reunir irmãos gêmeos idênticos separados pelo tempo como o com- de comer com o com- de combinar. Apesar de válido, não tem significado algum para os irmãos separados, nada para além do que a história nos quer mostrar. O trânsito de significados da história é uma coisa notável, mais ainda se vemos paralelos em trânsitos similares, contudo, juntar o passado e o presente na mesma caixa é uma atitude acrônica. E o acrônico se torna válido quando é funcional, já quando é descritivo, parece ser mera curiosidade.

Mas há alguma necessidade de acronia no ser humano? As leis da física são acrônicas assim como tantas causas metafísicas. Talvez haja, então. O mistério do acrônico talvez seja útil quando não há nenhuma outra resposta reprodutível em laboratório. 


Algo possível de se comer é, segundo a língua portuguesa, comestível. Por que uma coisa possível de se beber não é "bebestível?",  pergunta-se a criança em pensamento inconsciente durante a sua aquisição de linguagem e também o glotófilo. A analogia norteia a lógica e aplaca nossa insegurança do indomável. Cavalos-baleias são indomáveis. Tudo que é complexo nos assusta. O homem parece precisar ter tudo sob controle, senão volta a ser o pirralho chorão e pirracento. A diversidade assusta, pode causar dodói, pensa a mente infantil. Uma língua completamente irregular parece impensável porque o tempo não está nem aí com a nossa necessidade hominídea de colocar tudo em caixinhas para não sairmos berrando de medo. Daí nasce o consolo da exceção. Resolveu esse perrengue a mente do antropossímio da seguinte forma:  há, sim regras, mas há uma ou outra palavra subversiva (às vezes um bocado) que não segue a regra ditada pela tirania analógica. Por que elas existem, se são tão pouco arrazoadas? Para confundir-nos ou para tornar-nos mais sapientes?

Nem toda exceção tem explicação fácil. Mas essa do nosso exemplo tem. O sufixo -ível se junta a um antigo particípio latino e não à base verbal nua. Por isso, uma coisa que se compreende facilmente é compreensível. Veja: não é "compreendível" porque no passado, o radical da palavra em questão formava um particípio comprehensus e é sobre ele que se junta o sufixo. Por trás dessa palavra há uma história que não se dobrou perante a tirania do biberão analógico. E não são poucas as que fazem isso: algo que é possível reverter não é "revertível" mas reversível, pois o particípio de vertere, palavra que gerou em sincronia pretérita o composto revertere e em diacronia a palavra portuguesa verter, tinha também um particípio com -s-:  reversus, daí bastou juntar-lhe o sufixo e - alacazam!- temos o mistério de nossa exceção revelado. Quem não percebe isso acha que o monstrengo pancrônico é "individível"; quem o nega é "insentível" e isso não é "admitível" para quem está disposto de fato a usar sua razão.

Mas mesmo assim, o nosso comestível parece um enigma, mas não é, caro ignoto da língua do Lácio: em latim, o verbo comedere formava o seu particípio como comestus e, novamente, junte-lhe agora o sufixo pela mesma regra acima anunciada e terá o comestível. Caso encerrado. Cabe agora a quem sabe isso fingir que não sabe ou louvar-se porque sabe. Fato é que o fato é um fato.

Mas, espere, não é bem assim. A nossa narrativa não termina aí: entre o radical e o sufixo apareceu um troço esquisito, ou seja, esse -est-  da palavra comestível, sem sentido algum para quem fala hoje, uma espécie do lixo do passado, o antigo radical destronado da sua função central, agora convertido em interfixo (como o denomina Malkiel), algo esquisito, sem significado, trambolho que não fica bem junto nem com o novo radical com- nem com o sufixo -ível. Mas olhando bem, esse -est- é o próprio particípio do verbo edere, é o próprio verbo "comer"!!!


Algum sincronomaníaco ficará atônito e, antes de expulsar essa palavra do templo da morfologia para escondê-lo no sótão da lexicologia, dirá: "tu não podes existir, figura amorfa, com corpo e sem alma, frankenstein caminhante, zumbi de outras eras, arrenego-te!".

Mas fato é que esse avejão de priscas eras retornou e convive entre nós, qual o espectro de Hamlet, para não ser de todo esquecido nos escombros de uma civilização perdida. Não veio para ficar. Sempre esteve entre nós e agora urra para nosso abismar.

Ver dois radicais simultâneos numa mesma palavra parece-se muito com a sensação de observar My wife and my mother-in-law, de William Ely Hill. É como se um pai zumbi estivesse sentado na poltrona, observando, na mesma sala, o filho não-zumbi brincando no chão. Cena ainda pior: é a mesma pessoa morta a observar-se viva. Uma espécie de gato de Schrödinger voyeur. O que era não é, o que é não era. Difícil falar de significado com a visão embaralhando-se assim, sem parar. Mas é o que acontece, fique atento, leitor, quando vemo-nos mortos e vivos juntos, indo e voltando, como depois de bebermos alguns copos cheios de conhaque. Como num ataque de esquizofrenia.

Embriagados pelo paradoxo, pelo vai-e-vem do passado e do presente, alternando-se, como numa dança macabra, só nos restam algumas opções: escolher, dormir, observar, vomitar ou morrer. Sextum non datur.

domingo, 9 de setembro de 2018

NÃO JULGUE-ME POR ESTA ÊNCLISE!

O mundo é fatiado entre aquilo de que gosto e o que não me apraz. Quando éramos crianças que não falavam, suportávamos o mundo. Mas à medida que descobrimos que uma coisa é melhor que outra, abrimos o berreiro, balançamos a cabeça, fechamos a boca para não aceitar o que não era de nossa preferência e fizemos muita birra. Esse foi o melhor estímulo para aprendermos a dominar o código linguístico que nos impunham e, mesmo virando-se muito bem com um arremedo dele por uns quatro anos, eis que o grande motor do progresso, o Tédio, bateu-nos à porta dos nossos mil e duzentos dias de vida e, resignados, paramos de propor regras originais e palavras absurdas, que só nossos protetores adultos entendiam, e lançamo-nos num kon-tiki sem volta, tentando dominar as regras do que nos circunda, nas suas minúcias e na sua crueza, sem perguntar o que há de lógico ou de sensato, mas apenas aceitando-as, com o intento de mudar tudo para nosso benefício, de dominar o planeta e todos que estivessem ao alcance de nossos olhos.

Mas conquistar o mundo não é fácil, como bem sabe o leitor, que já passou por isso. Nem tudo se consegue com murros, tapas, cordas, mordaças e projéteis de pedra, osso, madeira ou metal. É preciso ter um pingo de inteligência para impor-se. E na estratégia particular de cada um para destruir tudo que é ruim, deixando o caminho mais fácil para andar sem perigos, o primeiro passo consiste em afinarmos o julgamento acerca de quem poderá ajudar-nos e quem vai com certeza atrapalhar-nos no nosso nobre intento de devastar todo e qualquer elemento daninho do planeta. De uma coisa estamos convencidos sobre ele: não somos nós mesmos.



E eis que entra o lado dito sapiens do mimado primata: só julgo bem se também souber bem o que devo julgar. Mas como saber? Ilusões nos enganam, notícias falsas nos atordoam, crenças nos atrasam: a sabedoria, principal requisito para o poder, não é uma coisa presenteada pelo DNA, nem um brinde grátis da evolução. O que temos à disposição é apenas uma memoriazinha, uma capacidade limitada de abstrair à nossa maneira, um vórtex amalucado de memórias espantosamente banal, mas que deixou Bergson boquiaberto. Qualquer pardal parece ter igualmente sobrevivido às intempéries das eras geológicas sem chamar tanto a atenção com estardalhaço para si mesmo. E pardais, dizem, também querem dominar o mundo, porque tudo o que é vivo quer este planeta somente para si e para sua progênie, seja ele primata, pássaro, inseto, alga ou fungo.

Não bastaram um cabeção e dons cognitivos onanisticamente louvados em nós por nós mesmos. É preciso muito mais: com uma mente amaldiçoada, sem a capacidade de apagar tudo de modo eficiente, é preciso separar o que é bom do que é mau por meio de julgamentos. E julgar é algo tão atávico quanto memorizar, a ponto de confundir-se facilmente com o raciocínio. Se não julgássemos, não seríamos seres humanos. E, como não há nenhuma instância reguladora para o julgar fora do que foi criado por nós mesmos, uma multidão de juízos despertam-se em nós, os quais são, via de regra, absolutamente errôneos. O erro não é (somente) de lógica, fique claro: equivocamo-nos perante a impossibilidade de vermos que não há nas nossas elocuções mentais nada que sustente suas mais caras premissas, nada além do que uma mera triagem de sombras lembradas ad hoc, com o fim particular e único de domínio, comungado com tudo que está à nossa espreita.

Mas se o julgamento é fadado ao erro, eis que há erros piores que outros. Julguei errado e, socorro!, o monstro meu inimigo agora tem mais poder que eu, pois inadvertida e alopradamente lho deram. O monstro esbraveja para alegrar quem lhe deu poder e eu temo. Se ele quiser manter o poder não deve fazer mais do que esbravejar, bem o sei e, acauteladamente, espero que pestaneje para que eu tome novamente as rédeas. Situação terrível: ele gosta da minha comida e, em vez de um concorrente, descubro nele alguém que pode fazer o favor de ignorar-me: evidencia-se, desse modo, que meu inimigo não é inimigo meu. Como não tenho seu poder, posso ser-lhe indiferente e me verá, desse modo, não me enxergando, a ponto de poder dizer que até tem por mim, que não existo para ele, uma certa complacência e candura. E convivemos em paz eu e o monstro, que cavalga o poder conferido por outro inimigo meu.


A experiência de subordinação ao monstro mostra que tudo é superável, porque não queremos solidão, tristeza, fracasso. E de fato, um homem se junta a um outro homem para construir uma sociedade, e isso em nada se equipara ao homem que se junta a um deus ou ao homem que se junta às bestas em batalha declarada. Lembre-se do exemplo do monstro: nossos inimigos são muito mais insuportáveis do que os que são inimigos de nós. Basta que a fera não nos olhe nos olhos. Basta que o raio não brinque de acaso conosco. Basta que os deuses estejam do nosso lado. E isso se aprende sem estresse, na medida do possível, porque, como sabemos, viver é estressar-se, mas estresse demais também é morte, de modo que a vida nos ensina que a saúde vem da dispersão, do esquecer-se que estamos rodeados de inimigos. Basta que nossos inimigos não sejam inimigos de nós e vive-se resignadamente bem.

Dispersar-se não só do outro, mas de nós mesmo: porque não conheço inimigo nosso pior do que nós mesmos. Mas como, se a solidão nos enlouquece? Hoje, por exemplo, pus um prato a mais na mesa e comi, sem perceber, diante de um comensal imaginário. Há coisa mais triste que isso: reconhecer-se como único e só? Não é isso a grande náusea que se sente um segundo antes de apertar o gatilho contra a cabeça? Que imagem banal, de cujo mau gosto me desculpo, leitor, pois antes devia lembrar-me que, conforme o bushidō, tantos oibara, após comporem seus zeppitsu, já se valeram de um  kaishakunin para auxiliarem a manusear o tantō em seu seppuku.

Ninguém negaria que só o ser solitário é amoral. Todos sabemos que a moral nada mais é que a associação de uma regra a um objeto. Criando regras para nós mesmos, também seremos seres morais. Portanto, sempre houve moral, seja do ermitão, seja do bando, mesmo no nosso período pré-canibal. E a moral está por toda parte: o conceito de sobrevivência não existiria sem a noção de medo; não influenciaríamos ninguém, se não houvesse a culpa; não haveria força de vontade, se não tivéssemos vergonha; o amor não existiria, se não houvesse o pesar, tampouco o discernimento teria um nome, se não houvesse a ilusão. Se julgamos é porque nos apegamos moralmente a algo e porque é difícil demais separar a verdade que nos convence da mentira com que acalentadamente nos autoenganamos. 



São Boaventura disse que a filosofia encerrada em si mesma é desnorteante. Perguntemos ao santo: todos precisamos de um norte? Eu não sei o nome do inventor do CTRL-Z, mas esse gênio também deveria ser canonizado. Como poderíamos viver hoje sem desfazer a bobagem que acabamos de escrever? Uma fala não se apaga como um escrito. E até os escritos hoje se transformaram em falas. A fala se fez carne e habitou entre nós. E a trindade WhatsApp, Facebook e Twitter ditaram o novíssimo evangelho que toca nossas preocupações mais íntimas. Se não, vejamos: a coisa que mais preocupa o niilista homem contemporâneo não é sua diversão, seu deus adorado? E há maior diversão do que julgar os inimigos, nunca tão abundantes como hoje em dia? Antes voejavam flechas, como andorinhas, hoje zune a boataria lançada incessantemente pela zarabatana de silício.

Um dos inimigos principais é aquele que está acima de mim. Ora, isso é simples resolver isso agora: basta reduzi-lo facilmente com palavras, tornando-o algo abaixo de mim. A tagarelice redime. Por exemplo, um governo, criado para me representar e do qual sou uma hipóstase, é visto como um filho perdulário e ingrato, que não me visita e que eu mal conheço. Tanto há para se acusar, tanto há para reclamar, tanto há para se pedir do futuro, que pouco tempo me resta para raciocinar. Julgar sem raciocinar: eis o sonho humano por fim conquistado! Mas, esperem! Essa árvore que caiu bem no meu caminho e isso me chateia um bocado, pois me impede de passar. Quem vai retirá-la para mim? Cadê aqueles que eu achei que estavam do meu lado? Quem me salva? E o homem, embirrado como era antes quando queria um chocalho fora do alcance das mãos, volta a chorar.

Não há o que fazer. Hoje só se presencia o culto ao indigno e isso nos leva àquilo. E nunca foi diferente. Por vezes, o cão infernal ladra pelas suas três cabeças. E aí todos descobrem um inimigo comum. Surge assim a nova amizade, the new friendship. Ninguém mais está sozinho. Quando não havia smartphones, gabarolou-se, durante uma das primeiras passeatas de insatisfeitos, que "saímos do Facebook", mas engana-se quem interpretou essa frase como "demos uma pausa no Facebook, mas logo voltaremos ao computador". Na verdade, trata-se de uma constatação etiológica e significava  "proviemos do Facebook". E hoje, a minha trindade está no meu bolso e dentro dele, todos os inimigos que tornam o mundo um lugar insuportável. Será que morremos, estamos diante de Ammit, e não sabemos?

Quero ter a sensação, ainda que falsa, de que estou vivo. Não há nada mais estranho do que gostar de viver e não deixar que o outro viva. Não há maior hipocrisia do que viver e dizer ao outro que não gosta de viver. Não há maior falácia do que dizer que deixa o outro viver e impedi-lo de dar um passo real rumo à liberdade, pois quem diz isso sabe que o outro não viverá plenamente. Se o outro admira o desprendimento alheio e ao mesmo tempo respeita sua vontade de viver, a vontade de abdicar será ainda maior. Quem é livre, não foge mas, apesar de vivo, não vive. Ora, não dizem que viver é viver plenamente? Que vida é plena se não houver esquecimento da morte? Viver plenamente é, portanto, impossível. E o que é o respeito senão limite, jaula, acordo, abdicação? Como respeitar a vida alheia? O respeito real estaria na falta de acordos ou é preferível a falta de respeito? Se ainda quero resgatar algo de positivo nessa palavra, devo entender como "respeito" a aceitação piedosa da solidão individual alheia, lançada no turbilhão das ondas cotidianas e inconsequentes das experiências.  

Contudo, para atingir esse nível, é preciso que nos lancemos no óbvio novamente. Há um refúgio no recorte que fazemos ao escolher nossas inimizades: o todo não só é insuportável, mas também não é apreensível. Eu sempre me perguntei se, em vez de recorte, talvez fosse melhor a ênfase naquilo por que me apaixono. Se ser é a condição provisória do eterno estar, qualquer raciocínio pode levar-me ao sucesso ou à frustração. Diferentemente, a mecanização pode sempre levar qualquer um ao sucesso, exceto se houver imprevistos. A última frase foi irônica: qualquer generalização sobre o tema se revelará invariavelmente falsa porque toda generalização é falsa, inclusive esta. Abandonemos esse raciocínio espiral, pois o Kon-Tiki está naufragando. Se viver é apenas conviver com fatos do passado e generalizar para o futuro, os fatos se revelam falsos apenas porque a vida se confunde com introspecção. Tudo se revela falso pela própria experiência do viver. Paradoxal?

Conviver com paradoxos é bom e saudável. Há certa consistência nos paradoxos. O paradoxo nos faz sentir impotentes e idiotas. Mas a idiotice é um ingrediente importantíssimo do saber. Por exemplo, uma pessoa que preza a cultura e o argumentação ouve a expressão latina "per rem". Adota-a porque imagina entender o contexto e escreve-a sistematicamente como "per hem", porque, para esse sujeito, a língua da Inglaterra é mais familiar do que a do Lácio. Como explicar essa teimosia pedante? Afinal, indago-me, com propriedade, após tantos milhares de exemplos diários parecidos com esse: não será a burrice um elemento importantíssimo do intelecto humano? Não é a burrice que gera as nossas maiores certezas? E não será a teimosia nada mais que uma forma exacerbada da burrice, fruto da desatenção, a ferramenta-chave da comunicação e o cimento de nossos edifícios argumentativos? Parece que há algo de inegavelmente verdadeiro ao detectar-se a burrice como a essência do julgamento: quem não confunde arrazoados sensatos com a sua própria obtusidade?


Parece que é isso mesmo. No fundo de nossa memória aparentemente infinita procuramos causas, explicações, argumentos e teorias, mas só encontramos, cada vez mais, palavras. Não encontramos para o mundo nem respostas nem soluções, apenas mais termos ocos e elásticos, inventados por este ou por aquele, mas que logo estarão na boca de todos por algum tempo até o surgimento de outros neologismos vazios. Por que não dizer então àquele que me julga: eu me valho do que é mais essencial ao discernimento: a minha estupidez? Contra ela, não há inimigo que possa vencer-me!

domingo, 26 de agosto de 2018

DESCONFIANÇA E IGNORÂNCIA

O bom cético cantaria socraticamente em uníssono com Guimarães Rosa "eu quase que nada sei, mas desconfio de muita coisa" e, assim entoando as sílabas desse culto anexim, estaria sertanejamente fazendo uma asserção que contém algo que poderíamos chamar de ocidentalidade do pensamento, ainda que há muito já se provou não haver fronteiras entre o leste e o oeste mundiais. O mau cético duvidaria até mesmo do conteúdo dessa pérola de sabedoria e ficaria de bom grado à mercê da amoralidade. Alguém poderia estender esse pensamento inicial, alegando que um ceticismo avantajado nada mais é que uma reação a uma incomensurável credulidade. Não tenho argumentos para rebater isso, pois nunca descobri quem é o maior tolo: aquele que pergunta ou aquele que responde.


Se, por um lado, eu sempre achei que falar de id e superego, ao interpretar poemas medievais, é tão absurdo como ver Jesus Cristo em textos pagãos, por outro, não consigo deixar de acreditar nas frases de Thomas Mann em Tod in Venedig, ao ensinar-me que, para quem está fora de si, nada parece mais detestável do que retornar a si mesmo. Na mesma toada, o autor ainda me adverte que o ser humano ama e respeita seu semelhante somente enquanto não tem condição de julgá-lo e até mesmo o seu desejo é produto desse julgamento imperfeito. Ora, quem deseja não desconfia. Quem não desconfia, ignora algo. Mas se todos somos ignorantes, qual é a vantagem da desconfiança? Pergunta fácil de responder para alguns que se autodenominam racionais: quem desconfia tem menos chances evolutivas de tornar-se uma vítima. Menos chances, disseram eles, porque nunca estaremos totalmente imunes àqueles que nos querem destruir.



Uma das formas de parecermos imunizados é ver-nos como inteligentes. Por isso, alardeia fulano que não assiste ao noticiário da tevê aberta, nem lê nada proveniente de determinados meios de comunicação ligados à grande mídia, por suspeitar de sua tendenciosidade. Ora, do zero não nasce o um, pelo contrário, foi do um que se abstraiu o zero. Com isso, de forma supostamente sagaz, tal pessoa não se exporia à mentira, como explicaria, mas fato é que também, nesse estado de perfeita alienação e de opção pela ignorância, não se informaria minimamente de verdades que estão sendo divulgadas. Hoje, contudo, quando todas as coisas e opiniões têm o mesmo peso, é comum que o mau ceticismo impere na forma gabola de atitudes pífias como somente entreter-se vendo youtubes de bobagens ou zapeando canais a cabo exclusivamente voltados à diversão. Parece nem mais fazer sentido vermos alguma importância nas sutis diferenças entre a loucura e o razoável, pois toda afirmação atual é tingida com pigmentos emocionais. As pessoas estão pautando-se exclusivamente em seus velhos preconceitos e, quando querem maquiá-los, vão à internet para achar self-servicemente aquilo que lhe cai como uma luva para apoiar aquilo em que acreditam. A conclusão disso (não é preciso ser sábio para deduzir) será a imobilidade: não quero mudar, portanto não me convencerei. Evidências, para essas pessoas, não dizem absolutamente nada. Nem mesmo a Ingsoc teria tanta eficiência. Espanta-me que o entretenimento não tivesse sido usado como arma de guerra antes.

Na sede de ostentar cultura aceitam-se erros sérios, cuja delação parece ser apenas um caso de irritante implicância. No caderno Cotidiano da Folha de São Paulo, há mais de treze anos (mais especificamente em 27 de maio de 2005, na página C6) afirmou-se, sobre a origem da festa de Corpus Christi, que "em 1264, o papa Urbano 6º estabeleceu a comemoração para toda a Igreja Católica" mas isso não é verdade, pois Urbano VI nasceu quase cinquenta anos depois dessa data e o jornalista, que não sabia números romanos (e talvez não tivesse interesse em aprendê-los), confundiu Urbano VI com Urbano IV. Desconheço se a informação foi corrigida no "erramos" da edição seguinte ou mesmo se agora, transluciferada talvez em página da internet, foi modificada. Se não está, essa informação falsa já está quase virando verdade, porque logo terá duas décadas de existência. Como bebemos no cálice cristão, tendemos a perdoar a ignorância alheia, mas é particularmente irritante ver o pouco caso com a História. Por exemplo, na estação de metrô Alto do Ipiranga, em São Paulo, afirma-se que Santa Paulina era uma italiana nascida no Alto Adige, mais precisamente na cidade de Vigolo Valtaro, em 1865, sendo que essa região, nessa época, nem se denominava assim, mas Tirol, e não pertencia à Itália mas à Áustria (para mais detalhes veja: https://tiroleses.files.wordpress.com/2015/05/decreto-toponomastica-regionale-19231.jpg e também https://tiroleses.com.br/2015/08/a-longa-mao-do-fascismo). Conclui-se que se Hitler tivesse sido tão bem sucedido quanto Mussolini, talvez estaríamos dizendo que o papa João Paulo II, nascido dois anos após a independência da Polônia, era alemão. Que vexame é o anacronismo! E como ele é visto como um erro menor, aceita-se que impropriedades de informação irritam apenas pessoas cricris como eu ou o porta-voz da BALPA no episódio Déjà vu, do Monty Python!

Mas não é para menos. As pessoas de hoje não se espantam mais com a falsidade, como Winston Smith  durante os festejos da Semana do Ódio, ouvindo aquela personagem comparada por Orwell com Rumpelstiltskin, a qual informa a todos que o grande inimigo da Oceania é a Lestásia e não a Eurásia, como todos pensavam até então durante anos a fio, argumento que em uma semana será irrefutável com a destruição sistemática da história. A tabula rasa sempre foi um delírio orgástico do nosso raciocínio primata. Uma tese se segue de uma antítese com muito mais facilidade do que qualquer hegeliano poderia imaginar. Quem está preocupado com a verdade? O mau cético não está. Antes aceita qualquer coisa em seu lugar, desde que o mínimo lhe seja garantido, obviamente.


Permanentes teses e antíteses não constroem nada. Apenas são partes do mecanismo que embaralha as cartas e trapaceia o jogo, a fim de tomar o controle da situação e adquirir poder sobre o outro. Ninguém ignora isso, mas é sempre bom relembrar, para que a desconfiança seja seu escudo.

A regra básica para a vida e para a sobrevivência deveria ser a seguinte: se você gosta de algo e não sabe repô-lo caso desapareça, não o destrua. Isso vale tanto para micos leões dourados quanto para valores que sustentam seus pilares sociais ou para expressões familiares que nos dão a sensação de identidade e aconchego, ainda que sejam miragens. Mas para entender assim, é preciso não só conhecer a história, como Winston, mas também saber o que é o futuro. Mas o que é o futuro? Providência, como pensam os estoicos? Fatalidade, como nos ensinam os físicos? Acaso, como julgam os bons céticos? Não sou uma besta cientômana para imaginar que a verdade acerca do futuro tenha uma só face. Confio mais naquele que constrói a ciência do que naquele que a aplica.

Mesmo para o amor esse ensinamento parece adequado: aquele que está traumatizado com seus relacionamentos pretéritos tem o direito de chegar à triste conclusão de que todos os homens ou de que todas as mulheres são iguais. Mas se pensa assim de fato, por que não agir coerentemente, como o mau cético? Por que escolher tanto? Baseia-se no trauma? Mas se foi o trauma que lhe deu a sabedoria, nenhuma escolha faria sentido. O bom ceticismo é irônico e diria de forma fingidamente otimista que se todos os parceiros são igualmente ruins, é quase certo que escolheremos o pior de todos. Aparentemente, essa conclusão nos faz pensar que somos masoquistas quando acreditamos em milagres. Acreditar em príncipes e princesas não é só infantil, mas também um gesto de teimosia bem-humorada.

O homem-hiena vem de áreas periféricas, como se percebe por sua tremenda facilidade de escapar às situações adversas. Reconhece a ignorância daqueles que julga inferiores e, mesmo sendo em nada brilhante, sabe manipulá-los. Oportunista, sabe virar-se otimamente no caos em seu proveito, pois vem de situações sociais nas quais não lhe apraz somente uma batalha, mas a guerra contínua. Napoleão, por acaso, não foi exatamente assim, um homem-hiena? Quantos outros monstros da História ainda estão por nascer? E essa situação, por acaso, não é agora? Como já dizia a capa do livro de Duncan Watts, tudo é óbvio, desde que se conheça a resposta. Essa voz passiva é muito importante, dileto leitor: quando afirmo algo por meio de uma passivização, seria ingenuidade imaginar que o que eu faço é apenas focar o paciente, transformando-o em sujeito. Com ela também posso não dizer qual é o agente e isso se torna adequado sobretudo em três situações: (1) quando não sei quem é o autor da oração, isto é, quando sou ignorante, (2) quando sei quem é, mas não importa, e nesse caso sou indiferente tanto à informação quanto a quem me lê, (3) quando sei quem é mas não direi por segredo, por discrição, para gerar mistério ou por chantagem: nesse caso crio um poder que antes não tinha. O poder não segue as leis de Lavoisier. Uma mera voz passiva não é uma redundância inútil de expressão como poderia pensar algum ingênuo do inutilia truncat. Pelo contrário: confere miraculosamente poder àquele que a utiliza na sua enunciação.


O minoritário não critica o majoritário por causa de pressupostos distintos, mas sim para tomar-lhe o poder e fazer as coisas igualzinho ao criticado. Quase sempre só consegue fazer ainda pior, por não ter tradição de pensamento, apenas sobeja ambição. É muito ridículo ver alguém enchendo a boca para falar uma coisa óbvia com aquele tipo de ênfase típica que subestima o ouvinte. Esse pateta pensa que nunca o seu interlocutor tinha ouvido tal palavreado? Mas não o subestime: ele está querendo que você pesque ali, em seu pequeno repertório, algo que você reconhece em si e lhe faça sentido ao ouvi-lo. Se ouço um aspirante ao poder que quer minha cumplicidade dizer que "estamos no fundo do poço e, portanto, não dá para descer mais", indago sempre se frases idiotas como essa mereciam ser enunciadas, afinal, quem a pronuncia parece imaginar que nunca alguém a havia proferido antes. Ou cogito que, por causa da deficiente estruturação de nossas redes neurais do cérebro, essa infeliz vítima da sua biologia, por um lapso, esqueceu-se de que ele mesmo já me havia dito essa obviedade várias vezes e que sempre a ouvi saindo da sua boca e de sua alma. Nessa horas, irrita-me a ênfase inútil, a careta tão característica, seguida de indefectível deleite, tão típico de quem só diz boçalidades. Estarei sendo muito cruel com essa pessoa e não capto que se trata apenas de um código que me relembra a imprescindibilidade do bom convívio social entre humanos e a de desnecessidade de duelos eternos? Talvez você, leitor que acha este parágrafo ranzinza demais, pense assim. Se desconfio da ignorância alheia, ignoro, no entanto, a sua desconfiança.

terça-feira, 24 de julho de 2018

O MISTÉRIO DA SAÚVA AMARELA

Certo dia, meu vizinho, do alto de sua inteligência de homem mediano, talvez incitado pela cerveja do fim da tarde, elaborou uma teoria sobre a misteriosa secagem de meu malvaísco: com toda a certeza que só têm aqueles que não se dedicam ao estudo minucioso do tema em questão, afirmou de forma tão peremptória, que faria qualquer especialista em himenópteros corar, que a razão do óbito de minha planta, até então viçosa e brilhante, se devia a uma espécie de formiga "do tipo saúva", amarelinha, que só sai à noite, acautelando-se antes de que todos estivessem dormindo para realizar o seu malfeito de murchar aquela planta específica e deixar os outros três malvaíscos intactos. "É batata!", arremataria Nélson Rodrigues.


Formigas misteriosas de hábito noturno que murcham plantas isoladas, sem que o vegetal tenha direito de defesa e, mais estranho ainda, sem cortar uma única folha, fazem parte do imaginário do medroso hominídeo, que resolveu um dia que o mundo era só dele e decretou o que era daninho: no seu veredito quase tudo merece um quilo de BHC e cobra tem cabeça para receber enxadada. Assim rezam os ditames da jurisprudência antropocêntrica.

Não digo que o mundo poderia ser menos perigoso, mas seria menos misterioso se gostássemos de observá-lo e de pensar sobre ele para além de nossas necessidades diárias. Mas quem tem tempo para isso? Parece ser preciso alterar, construir, limpar, passar o rastelo na geringonça caótica e embaraçada da vida para termos paz de espírito suficiente para resolvermos o quebra-cabeça do ser.

Ao mesmo tempo que é tão medroso ao ver um hexápode rastejante, esse mesmo homem paradoxalmente escala, cavouca, fuça, explode pedras e corta árvores em vez de ficar na sua poltrona. Como ficar tranquilo se a vinte quilômetros de minha casa há uma mata inutilizada, que não é pasto para minhas bestas, ou que é foco de doenças e de bichos estranhos que, de uma hora para outra, vão avizinhar-se de mim? Pensa. Destruir! destruir! Eis o lema-mor! E nesse arrojo paradoxal de lançar-se ao perigo, singrando mares, metendo-se em cavernas, incendiando, parece que o medroso primata se torna o mais valente de todos. Uma ideia sempre o motiva, como dizia Harari, seja o progresso, seja o lucro, seja o bem-estar, seja algo ainda mais nobre. E nesse momento, esquece-se que não tem carapaça de tatu para proteger-se, nem garras, nem caninos. Quando o pai diz ao filho: "vai lá e faz isso!", a criança não o fará, confiante no bem que o pai lhe assegura? Se esse pai está acima de todos, então, isso é mais evidente ainda. Em suma, o pensamento básico do arrojo do covarde mamífero humano é: "se Deus existe, por que respeitar normas DIN de segurança?"

De borra-botas, o homem se torna um portento de valentia. E dá-lhe clavada no bestunto da preguiça gigante e do mamute! Arpoa a baleia, carrega o gigantesco atum para exibir para os outros hominídeos machos. Não se cansa de matar. Mas eis que chega a terceira fase: a do tédio.

Vencido o medo e agora certo de que é o ser vivo mais importante da natureza, apesar de ser um desequilíbrio ambulante, senta-se sobre as toneladas de comida que arrancou da mata ou do solo arado e, arrotando, olha para o céu. Pergunta-se: e daí? 

O mundo do espanto morreu? Outros cavariam o âmago da matéria, envoltos na curiosidade dos cientistas. Novos pequenos espantos serão comercializados. Sumiram as grandes surpresas? Nunca mais um tigre dente-de-sabre vai aparecer no meio de nossa conversa noturna em volta da fogueira? Aparentemente sim. Com a luz elétrica cessaram-se os causos e o mundo do quase inacreditável deixou de fazer parte da rotina, a não ser quando sentamos para ver um filme. E os jovens, todos sobreviventes, sob a proteção do papai desmatador e fuzilador de feras de quem herdará a sua fortaleza esterilizada, não serão os primeiros a provar do modorrento tédio?


E como o homem pôde tudo isso, se olhando uma planta secar ainda vê nela um afluxo de mau olhado ou formigas noturnas de uma espécie inclassificada? Dito com outras palavras: como isso tudo aconteceu, se o Homo sapiens é burro como um pedaço de feldspato? Um famosíssimo formador de opinião, cinco anos atrás, em seu programa de entrevistas, afirmou que há muitas semelhanças entre o tupi e o japonês. Pensei que falaria das línguas e ouvi atento. Sua teoria (diferentemente da de meu vizinho, para tornarmo-nos adeptos da qual se requeria apenas fé perante a sua simpatia) tinha provas inabaláveis segundo seu próprio juízo, scilicet, a semelhança física e o fato de ambas as línguas não terem L. Eis aí um método que faria Aristóteles enforcar-se: a inexistência de algo não pode ser prova da existência de tese alguma. Não ter L em japonês e em tupi não é prova alguma de que as línguas são aparentadas, da mesma forma que o fato de uma pedra e uma lacraia não terem asas não é prova de que pedras e lacraias tenham um ancestral comum. Quanto à semelhança física, nem é preciso manifestar-se, pois seria o mesmo que dizer a semelhança de expressão linguística é diretamente proporcional à semelhança física de seus falantes, o que o leitor com o mínimo de siso de filósofo perceberá que é o mais completo absurdo, senão a expressão de dois gêmeos idênticos seria maior do que a de dois irmãos menos parecidos. Como pode alguém abastado, com excelente formação educacional no estrangeiro, supostamente leitor voraz e com raciocínio aparentemente equilibrado, deixar-se levar por argumentos tão raquíticos? Será apenas a necessidade de tagarelar a causa de desinteligência onipresente da humanidade?

Ou seriam os gênios as pessoas que fazem as maiores burrices de todos os tempos, tal como os chimpanzés que, munidos de um porrete, saem deitando abaixo tudo que encontram? Tudo tem ou pode ter limites, exceto a burrice. Não é a inteligência humana a coisa mais admirável do mundo, pelo contrário, é a quantidade de soluções que encontra para vencer a sua infinita ignorância, não maior nem menor do que a de qualquer outra espécie.

Dada a sua inquietação, o mais calado e covarde dos homens é um vulcão por dentro. Só tem a  sorte de morrer sábio quem foi uma besta, mas algumas bestas morrem bestas. E muito sábio morre besta. Ninguém, no entanto, nasce sábio e morre sábio. Há certo conforto na idealização da loucura, pois se assumo que sou louco, sou feliz, mas ninguém é louco convenientemente. E os sábios que se dizem loucos sem sê-lo são os que criam as ideias que milhões seguem, como se fossem suas, assim como alguém que criou a porcelana em território chinês conduziu ao DNA chinês o orgulho de serem os inventores da porcelana. Um autor é uma pessoa que tateia o mundo das ideias e tenta tornar visual seu vislumbre na mente de outra pessoa, tal como fizeram Maupassant, Platão ou Cronenberg. Quem não constrói ideias, compra ideias. Três anos atrás, o papa autorizou padres a perdoarem (e não excomungarem) as mulheres que se arrependem de ter feito aborto. Há quem gostou e há quem não gostou disso, mas não houve mudança alguma: uma ideia foi substituída por outra, só isso. 

O fato de ser um criador de ideias não faz o ser humano ser um bicho melhor que outro. Quem saberá dizer o que se passa nas faíscas cerebrais de outros sistemas nervosos não humanos? Em filogenia, é comum aparecerem caracteres semelhantes (sinapomorfias) em diferentes linhagens, em diferentes tempos (homoplasias). Se são devidas a uma mesma base genética são homoplasias paralelas. Se são devidas a bases genéticas diferentes, são homoplasias por convergência. Outras espécies mantêm esse caráter em estado plesiomórfico, mas desenvolvem autapomorfias novas. Isso origina a heterobatmia, que faz com que os filos se diferenciem. Tudo obra do acaso. 

Se nosso cérebro cria as nossas ideias, não somos nós que devemos ser louvados, mas os desvãos da história das espécies que conduziram a isso. Além disso, ideias hoje em dia estão fora de moda, pois vem de uma inquietação, ou seja, do ato de perguntar-se diante do mistério, por exemplo, "por que diacho meu malvaísco secou do nada?". Alguma resposta há, se não nos consolamos com a profunda ignorância e com o insondável mistério da vida. Mas a grande questão hoje é: perguntar hoje ainda faz sentido? Habemus wikipediam. Precisamos ainda de um cérebro?



Mas voltando às semelhanças e diferenças das espécies. Haverá no mundo não-humano algo semelhante ao boitatá criado pelo meu vizinho, quando falou das saúvas amarelas secadoras noturnas? Veja bem: uma andorinha é uma ave diurna que utiliza muito sua visão, já o morcego é um mamífero noturno que se vale da audição: seu voo tem funções iguais, têm alta velocidade, não se chocam e comem insetos no voo. São diferentes ou iguais? Essas perguntas, pelo jeito, ficarão sem resposta.

Como todos sabem, a ordem alfabética surgiu graças aos números, pois alfa era o número um, beta era o dois e assim por diante. Os romanos a adotaram por tradição, pois vinha de imemoriais tempos protocanaanitas, sem mesmo terem necessidade de associar letras a números como faziam fenícios e gregos, pois já tinha os seus algarismos romanos, de tempos ainda mais antigos, possivelmente da época de antigos pastores pré-históricos, como prova a sua dispersão pelo mundo, segundo Georges Ifrah. Sem a ordem alfabética, não teríamos dicionários. Mas hoje é possível consultar um dicionário sem  conhecê-la: basta teclar sua dúvida no Google e eis que vários dicionários online surgem. Veja como é fácil ser profeta: vaticino que o espaço mental reservado à ordem alfabética vai desaparecer em breve. E será preenchido por algo muito mais inútil. Pois essa tem sido desde sempre a função do homem: dar um jeito de emburrecer-se. A escrita nasceu da preguiça de memorizar, como já lamentava Sócrates, e a consulta ao Pai dos Burros, atrelada à ordem alfabética, nasceu da preguiça de procurar algo sem fim em listas imensas. A preguiça criou a inteligência humana e a ciência sempre esteve a serviço da preguiça.

Como sabemos, o calorão do sol aniquilará grande parte da vida um dia desses, mas ela renascerá das bactérias resistentes e dos seres abissais indiferentes à variação térmica. Haverá decerto algum ser vivo que curtirá o calorzinho e seres mais cascudos ocuparão a terra novamente. Para que cérebro perto de uma capacidade radiativa aos raios UVA e UVB? As explicações físicas explicam coerentemente  as coisas, por meio de silogismos, as quais, numa explicação religiosa requeria apenas fé. Seja qual for a explicação, desejamos a demência e visamos ao lazer e à preguiça, porquanto uma mente não tem apenas raciocínios: também tem desejos e sentimentos, como afirma António Damasio. Parece blasfemo dizer que Deus tenha uma mente cheia de desejos e sentimentos, mas também parece blasfemo dizer que Deus não tenha uma mente. Estaremos afirmando a mesma coisa dizendo que a demência é aquilo que mais desejamos e que o homem quer equiparar-se a Deus na sua babélica empreitada de destruidor master?

Mas enquanto tentamos convencê-lo, leitor, não paramos de fazer relações: veja bem, somos seres homeotérmicos e, portanto, por definição, diferentes dos animais pecilotérmicos, ou seja, nossa temperatura interna é constante, na faixa dos 36,5 graus centígrados. Um ano tem 365 dias, isto é, dez vezes mais que a nossa temperatura interna. Há relação entre a translação da terra e a homeotermia de nossos corpos? Será coincidência? A mente não para de matutar.

Mais do que da mera curiosidade, o conhecimento humano parece ter nascido da cobiça e sua finalidade sempre foi a guerra contra aquilo que imagina impedi-lo de ser feliz. Mas a felicidade, aquela coisa sujeita ao efeito borboleta que desequilibra tudo, é procurada com um crucifixo na mão para espantar eventuais vampiros que atravessem nosso caminho. Se a cobiça é inerente ao homem e conduz à guerra, por outro lado, a physis não conduziu somente à vida (basta abrir os olhos e ver), mas também conduziu a vida. A vida sem uma mente ordenadora, expulsa paulatinamente pelos conceitos da Física, parece ser paradoxalmente muito mais inteligente: a vida é mais bela no seu sem-sentido de nascer, comer, reproduzir-se e morrer do que a presença de um intelecto ou de uma causa final. 


Isso parece fácil, mas não é. É nossa especialidade mascarar o que somos, negando o óbvio ou definindo-nos como diferente do que obviamente somos: do perfil do nosso Facebook não consta a nossa foto, mas a de nosso cão, a do Dalai Lama, a do Neymar ou a de algum herói Marvel. Teimamos em usar eufemismos como "país em desenvolvimento" para evitar o antigo "país subdesenvolvido", sem evitar com sucesso alguma interpretação possível de que um desenvolvimento galopante pode ser tanto para cima quanto para baixo. Nossa sina é auto-enganarmo-nos. Se há relação entre a translação da Terra e a homeotermia de nossos corpos vertebrados, talvez algum psicólogo descubra no futuro que a má-fé humana já se iniciara na criação do mundo e a ele está perfeitamente adaptada, sim, veja bem: 75% do universo é composto de hidrogênio e 23% de hélio, no entanto o planeta em que pomos nossos pés é uma mistura de outros elementos da tabela periódica: oxigênio, silício, alumínio, ferro, cálcio, sódio, potássio, magnésio etc.

Se o mais profundo mistério é quem somos, talvez isso também seja a coisa mais óbvia de todas.