O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

quinta-feira, 20 de abril de 2017

O QUERER

Não consigo imaginar uma língua em que a ideia do querer não possa ser expressa. O interessante é que quem quer quer algo, ou melhor dizendo, quem quer quer fazer algo. Se digo que quero uma maçã, na verdade quero comer a maçã ou pintá-la num quadro. A razão de eu querer a maçã apenas não é anunciada. Assim, minha impressão, quando ouço "quero uma maçã", é a mesma que se eu tivesse ouvido "quero ter uma maçã à minha disposição agora para comê-la em seguida". O querer, portanto, é um ato mental, distinto do ato seguinte, o de comer. E talvez por isso tantas línguas separam um verbo auxiliar de um paradoxalmente subordinado verbo principal (quer na forma de infinitivo, como em português, inglês, alemão, russo etc. em que se diz "eu quero comer uma maçã" quer na forma de uma oração subordinada como em romeno, búlgaro ou grego moderno em que se diz "eu quero que eu coma uma maçã"). No mundo real, o verbo expresso pelo auxiliar é um ato anterior ao principal: o auxiliar será um passado em relação ao principal futuro, quando o futuro for presente. Mas fato é que, se não se quer, não há o verbo principal algum. Então por que essa ilusão de subordinação de um verbo auxiliar em relação a um principal? Em japonês, por exemplo, a subordinação é tanta, que o traduzido pelo verbo "querer" é um sufixo do verbo principal: na frase uchi ni kaeritai desu "quero ir para casa", a ideia do querer é o -tai  colado ao verbo principal kaeru. Estranho pensar que, quando digo que quero fazer algo em português, o fazer seja o principal, pois está numa oração reduzida de infinitivo. Afinal, é o "auxiliar" que carrega as flexões (refletindo duas categorias fusionadas: uma, de tempo e modo; outra, de pessoa e número, para não falarmos da enigmática vogal temática). Será uma infeliz metáfora dos gramáticos imaginar o auxiliar fazendo tudo enquanto o principal se encontra no mundo infinitivo e simples das ideias? Ou estariam pensando os inventores da nomenclatura em verbos que não têm flexão alguma, como no inglês, no qual tais verbos não carregam nem a minguada flexão do -s da terceira do singular?

Fato é que os recortes do real, promovidos pelas línguas - real este mal lido pelo vezo gramatical e mal interpretado pelas correntes cientificizantes dos estudos da linguagem - são bem diferentes do real em si, o reino do referente, do qual a semântica pensa que tem algo a dizer, mas o diz amordaçada pela própria armadilha das idealizações e de sua retórica.



O querer, para começar, não precisa ter existência real. Não precisamos de muito para nos estimular. Basta que caiam nossos níveis de glicose. O estímulo que causa o que chamamos nossa voluntas pode ser, como todos sabem, apenas um pensamento, sem pé algum na realidade. Ok, die Gedanken sind frei, mas eles se parecem mais com um rebanho que conseguem passar pela porteira quebrada. O estímulo, real ou imaginado, não causa nenhum problema se não chega ao sistema límbico. Lá, o estímulo se transforma em outra coisa: não é apenas aquilo que nos excita, mas sim converte-se em necessidade.  Então, podemos dizer que a necessidade é um pré-querer e ela não seria necessidade, se não tivéssemos sido estimulados previamente de maneira real ou imaginária. E por que fomos estimulados? Porque antes de tudo, havia o gostar, isto é, na nossa história de vida, houve a obtenção de um prazer. O gostar está na história do indivíduo. É sobre o gostar que se erigem os estímulos, à mercê das coincidências do destino e de nossa loucura. Mas por que gostamos de coisas? Pergunta difícil, ligada à nossa condição de ser vivo: se não gostássemos de comer, de dormir ou de fazer sexo, nossa estirpe representada pelo nosso DNA simplesmente deixaria de existir. Há no gostar algo de programado, algo de paradoxalmente involuntário, da nossa espécie. A alma do gostar é o não-querer! Se não é isso, por que gostamos involuntariamente? 

Mas deixemos a obscuridade do gostar e voltemos ao nosso primeiro raciocínio. Algo nos estimula porque dele gostamos, obviamente: se não gostássemos, não nos estimularia e passaria batido, sem que sequer percebêssemos que existe. Esse estímulo, como dissemos, converte-se em necessidade. Percebemos que não temos aquilo que nos estimula. É nesse momento que a necessidade é registrada no nosso córtex cerebral como um desejo consciente, que instrui nosso corpo a agir. O nosso fazer (isto é, quando deixa de ser querer fazer e passa a ser simplesmente fazer) está seguindo instruções do nosso córtex e, nesse momento, podemos dizer que nosso corpo fez algo e que nessa ação houve uma intenção: alcançar aquilo que é desejado. Nosso sistema límbico, que gerou a necessidade face ao estímulo, nesse momento, se sente recompensado, e nossa cabeça se enche de opioides. Sim, querer algo é uma droga. Recompensados igualzinho a um cão de Pavlov, nossos neurotransmissores elevam os níveis de dopamina em circulação e nos dizemos satisfeitos. Isso tudo pode ocorrer sem que gostemos do que fazemos. Depois de recompensado e satisfeito, nossa consciência pode contaminar o prazer com um sentimento de destruição e, em vez de desfrutarmos dela, nasce o sentimento de culpa. Santa Dopamina! 



O superego, consubstanciado na forma da sociedade, balançará a cabeça e dirá: "que feio" ou "que lindo". E nessa hora a culpa vira pecado ou honra. Tudo isso por causa da nossa área tegmental ventral e do nosso córtex pré-frontal! Sem dúvida, há formas muito estranhas nesse mecanismo: por exemplo, algumas pessoas padecem de uma condição chamada de luto eterno. Investigadores descobriram nelas atividades do núcleo accumbens, o qual está vinculado à liberação da dopamina e ao consequente prazer! Ou seja, nem tudo que causa prazer está vinculado à sobrevivência: muito é puro vício, gostemos ou não de estar gostando.

Mas o desejo, se controlado pela aprendizagem, educação, sociedade e memória civilizatória da culpa, aparentemente se molda, o que faz que não sejamos uma máquina e que não exista de fato o inexorável, ao menos na aparência da maior parte das pessoas. Uma mensagem dos budistas, por exemplo, é o controle consciente do desejo, por eles considerado causa do apego e fonte do sofrimento. Mas o desejo, como vimos, nasce das necessidades e essas forma são moldadas pelos nossos estímulos do gostar. Não estaríamos, nesse caso, mirando o alvo errado? Quem não quer sofrer, não deveria ser cinica ou estoicamente indiferente a tudo? E seria possível isso? A esperança não faz o sangue correr na nossa amígdala e no nosso córtex orbitofrontal, indicando atividade do hipotálamo e do nosso querido núcleo accumbens? Está tudo misturado. Uma campanha Dopamina Zero está fadada ao fracasso, a menos que queiramos ser zumbis.

Temos neurônios-espelho: se alguém martela o dedo na nossa frente, nosso cérebro reage como se o ferido fôssemos nós. Conclusão: somos seres empáticos. Talvez um tubarão consiga facilmente atingir o nirvana, mas nossa espécie tem um cérebro complicado demais. Nossa amígdala é um sensor, que não consegue ficar indiferente a uma ameaça ou a uma perda. Nosso humor é involuntário, ainda que consciente. Temos ódio, temos aversão, temos humores: não há como policiá-los facilmente. Emoções são transitórias e comprovadamente mais rápidas do que qualquer atitude consciente. Basta olharmos para qualquer coisa e duzentos e cinquenta milissegundos antes de termos consciência do que vemos, a informação emocional já foi registrada. Você, leitor, conseguiria sinceramente ser consciente mais rápido e deter sua emoção? Só se tiver a agilidade de um tenista, mas, na nossa cabeça, nem tudo é planejamento.

Como dizíamos: querer é não ter. Quando o querer se torna conseguir, não é possível deter as consequências. Etimologicamente, o radical comum de "conseguir" e "consequência" mostra uma grande sabedoria. Se ter (ou obter) é bom, uma consequência será, no nosso mundo "real" e julgador, o nome que se dá àquilo que não é bom, depois que se obteve. Ora, o ter é o mesmo que o não-querer-mais. Parece "lógico" que o não-querer-mais não devesse ter consequências. Segue-se daí que ter é bom, mas do Bem nasce o Mal? Sim, porque do querer nasce o ter e do ter nasce o não-querer! Na verdade, o outro nome do não-querer-mais é tédio, a verdadeira semente do Mal e do non sequitur.


Se de um mal (não-ter e querer) nasce um bem (ter), igualmente desse bem (ter) nasce um mal (o tédio), que só deixa de ser mal quando se torna novo querer! Eis aí, escancarado, o "grandioso" raciocínio humano: um ser que sempre quer, um ser insatisfeito por causa de sua natureza, por causa de sua excessiva curiosidade! Louvada, na verdade, a curiosidade é nosso efeito nocebo.

O que se quer, normalmente, não é o que se pode ou o que se deve, pois, como vimos, o prazer nasce de zonas muito estranhas, anteriores a nós mesmos. Bebês sorriem; sua musculatura e movimentos protovoluntários asseguram o primeiro canal comunicativo entre mãe e filho. Em adultos, o sorriso das piadas evolui para o da maldade, o do escárnio, o do deboche e o do desprezo. Isso ocorre porque ideias de que gostamos são mais importantes que fatos: em nomes delas se ama e se mata. São para as ideias que riem os adultos. É para ideias comungadas entre amigos que sorri o vandalismo comunitário. É para uma ideia que sorri um lobo solitário. Uma ideia faz superar o medo; por isso gostamos dela. Contudo, ninguém negará hoje em dia de que precisamos urgentemente do mundo externo de volta. O mundo interno atualmente reina soberano na forma do Videodrome.

Temos acusado cada vez mais o outro de preconceito por causa dos nossos preconceitos; temos perseguido e linchado quem pensa contrário; exposto surpreendentemente nossa até então incógnita alma porque o interno está cada vez mais confuso com o externo. A barreira do Superego não existe mais? É a vitória do Ego, que abre caminho para libertar o Id preso? Uma coisa é certa: abertas finalmente as jaulas de todos os Ids, estaremos de volta à condição primal, anterior a toda barbárie, de novo próximo das hienas, mas agora um pouco menos inteligentes (pois a evolução humana depende de indivíduos e não de nossa condição como espécie) e, paradoxalmente, sem a evolução de nosso corpo à nossa defesa, afinal, hienas são bem mais musculosas e bem equipadas fisicamente que nós. Talvez nesse momento voltaremos a amar nosso corpo porque nossa mente nos aliciou à perda total (numai pe tine te am, trecatorul meu trup...). Com nosso corpo franzinamente evoluído, voltaremos a ser repasto do mundo e nossa carne, ossos e músculos não serão rejeitados por quem a evolução não agraciou com um cérebro idealizador. A ignorância, por fim, nos lançará aonde começamos e os demais seres viventes reconduzirão sua trajetória na terra sem outras incômodas interrupções motivadas por revoluções cognitivas, que dragaram tanta irrealidade desnecessária para o real.

Um pouco de realidade fez o ser humano sobreexceder-se mas um pouco mais anunciará sua bancarrota e sua real e triste condição. Nesse momento, não haverá mais nada para sorrir, pois ideologias e deuses não virão socorrê-lo. Não será mais Aquiles, que vence Heitor com armas e ajudinhas divinas. Seremos apenas eu, você e algumas hienas, que se admirarão ao nos rever, como nos velhos tempos, e se despedirão de nós para sempre.



O idealizar e a invenção do inexistente solapam qualquer querer. Até há pouco só existiam a mídia, a erudição e o senso crítico. O quarto elemento, que vemos hoje, scilicet, as redes sociais, entrou como um instrumento espúrio e vulgar, uma muleta rápida para quem faz a fisioterapia do senso crítico, como um atalho à erudição, como uma alternativa à mídia, mas hoje, o traidor quarto elemento, igual ao indesejado passageiro com quem Ripley tem de lutar no Alien de Ridley Scott, quer apenas nos destruir: é o Prometheus que não nos trará resposta alguma, apenas nos estrangulará e nos deixará apavorados, indagando o porquê de tanto investimento nessa arma, mais letal do que qualquer gás sarin ou qualquer bomba de nêutrons (com a diferença que sua atuação é muito mais lenta e nos tortura mentalmente há anos).

Não devemos abandonar esse barco em que nos leva o querer? A água que brota do furo do seu convés não é o suficiente para que pulemos fora? Ou a razão de não desistirmos é não sabermos nadar, já que jogamos ao mar o senso crítico, furamos a boia da erudição e ingenuamente nos cremos dotados de poderes para desmascarar o deus midiático? Há outra razão para vivermos lado a lado com linchadores? Ou isso faz parte do nosso Ego tolerante ou sádico, ditado pelo nosso gostar? Não é prudente que improvisemos logo uma tábua de salvação, já que a água que brota do furo já não pode ser contida?

É preciso aprender a querer.