O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

sábado, 27 de fevereiro de 2021

CULTO A HARPÓCRATES

Um dia, representaram o deus Hórus como uma criança chupando o dedo. Um grego alexandrino achou a estatuazinha e interpretou que se tratava de uma divindade, pedindo silêncio, fazendo shshsh!. Aí perguntou que deus era aquele ao egípcio que passava. A resposta foi "Harpakhered" e o grego entendeu "Harpócrates". Essa história não é estranha, leitor: por que o silêncio ficaria sem um deus que o representasse? Ainda mais sendo uma coisa tão importante para nossa sanidade mental! Sim, nosso cérebro ruidoso já range demais e, por isso, muitos precisam de mais barulho, não é? Para abafar essa falação dentro dos nossos miolos. Mas ouvir o silêncio, quem consegue, sem enlouquecer? Ou será que o silêncio cura e o silêncio salva? Saídas da nossa mente pela cloaca de nossa boca, as palavras, com suas convenções de pronúncia, ordem e sentido, não são ainda mais daninhas do que quando estavam presas na masmorra de nossa cabeça? Não seria melhor que esse animal selvagem do pensamento ficasse dentro da zona turva e obscura das relações indesejáveis, daninhas e desarrazoadas da nossa mente? Por que tem de sair, para exibir-se, para decretar, para ofender, para rotular, para seduzir, para enlouquecer os outros ainda mais? Não bastaria um fático, uma regra cordial que determina os limites uns dos outros? Não bastaria que uma vez entendido que o outro não sou eu mesmo e que à sua volta orbitam fantasmas, tanto quanto nas minhas órbitas? Por que falar dessas órbitas e desses fantasmas, por que invadi-las, como numa reação iônica? Por que compartilhar elétrons fantasmagóricos com coisas que não são de nossa valência?

E como fazer que todos percebam isso, sem dizer-lhes “calai vossas bocas”? Como fazer que tudo entre no equilíbrio ansiado, se o mínimo não é percebido? Não é possível ver que o desdouro está na mesma região do louvor? Mas mandar que todos se calem parece intolerância minha e o que é, afinal, isso, a intolerância? Calado, posso afastar aquilo que me amedronta, arremessando-lhe uma pedra ou um pedaço de pau. E só faria isso se não pudesse argumentar, por exemplo, com um cão raivoso. Estarei sendo eu intolerante por não permitir que o cavalo me escoiceie, que o touro me chifre, que a serpente me pique, que a taturana me queime? Ou será que o nome disso não é intolerância, mas outro, talvez “proteção”? Apesar desses conceitos pularem a cerca que os define com muita facilidade, de modo que já não sabemos qual é o meu rebanho e qual é o teu, talvez possamos aprender com os que sabem definir as coisas para finalmente pensarmos nelas em seus conceitos puros e, entendidos nesse nirvana terminológico, nunca mais pronunciá-las. Assim, antes de nosso voto de silêncio, entendamos os conceitos muito bem para que nunca mais os empreguemos em vão. Esse sim é o tabu que vale a pena cultivar: os conceitos sentadinhos em volta à mesa, como amigos imaginários, receberão suas merecidas colheres de papinha na boca e deles não ouvirei sequer um “obrigado”. Quando esse dia chegar, serei o mais feliz dos homens.



Mas vamos lá, não nos percamos no raciocínio, embriagados com a cachaça do futuro ideal. Era uma vez a intolerância. E essa intolerância tinha nome e nasceu pequenininha, anos atrás. Depois tomou coragem, agigantou-se e hoje está maior que eu, a danada. Essa intolerância nasceu de um capricho. O mundo todo me amava, menos um e decretei que no rosto desse um se deveria cuspir, desejei vê-lo sendo esfolado, sonhei em chutá-lo, quebrar seus ossos. O mundo todo era amor para mim, mas esse um não me amava e portanto delendus est, pensava eu, arremedo de Catão. E eu sabia naquela época que esse um não era tão mau assim: apenas não me amava e por isso eu o odiei tão visceralmente que me doíam as entranhas como quando a holotúria golfa seus intestinos para fora da boca, com o intuito de recolhê-las de volta, devorando o pitéu de seu desejo. Por causa desse amor não-correspondido o chamei de fascista, assassino, verme, pulha e tantos nomes injustos e, junto à multidão que me beijava, lancei-lhe um olhar de desdém. Não me bastava ter o amor de quase todos: queria sobretudo o daquele um, que passava ao largo de mim e nada dizia sobre o narciso que me flertava toda vez que ia à fonte. 

Eu tinha um poder quase ilimitado, mas aquele lúcifer ainda me alabava. Era tristíssimo. Resolvi fazer um golem, sentei-o num trono e disse: "só tu existes e não aquele que não me ama". Obriguei que todos beijassem a mão do golem e fui feliz, até que o golem, feito tão à minha imagem e semelhança, sozinho, mostrou a todos que ele não era eu. E todos que me amavam começaram a fazer ressalvas, outros começaram a me odiar explicitamente e a maioria tirou o véu do cinismo para finalmente pedir a minha cabeça numa bandeja. Ai do desamado. Pensava que a dor de não ser amado pelo Um não tinha concorrentes, mas de chofre entendi que muito pior é a dor daquele que, uma vez amado, passou a ser enxovalhado. Acaba aqui a minha história.

O que se segue foi num dia de chuva torrencial. Patinavam todos, livres do amor por mim, uns procurando outros para amar, mas a maioria tornava-se paulatinamente cética e desatenta, patetificada, sem uma razão para existir. O golem foi decapitado, as ruas estavam cheias daqueles que antes orbitavam harmoniosamente em torno de mim: parecia um vespeiro recém-golpeado por um machado. Oh, golem, que fizeste? Foste desatento demais? Lembrastes coisas que os embriagados de amor já haviam esquecido em seus delírios? Amaste uns mais do que os outros? Amaste mais os que não eram cínicos? Amar a sinceridade sempre foi sinônimo de suicídio. Inconsciente, sem cérebro, esqueceste de que havia armadilhas por toda a parte antes do amor universal. Foi com essas armadilhas que nos capturaram e depois disso bastou evocar o Bem. E não há nada pior e abjeto do que evocar o Bem, porque o Bem é uno e é múltiplo. O bem da Justiça te decapitou, o bem da Honestidade libertou os que falsamente me adoravam, o bem da Família fez que todos seus amados fossem perseguidos, por fim, o bem do Amor revelou-nos o seu escárnio pútrido. Nunca tantos males aparecem simultaneamente como quando se evoca o único Bem, esse ser temível, escrito e congelado na solidez das bases. O Bem tem cheiro de sangue e com esse sangue é que se escrevem tantas calúnias e chamam isso de "informação".

Pois bem, onde eu estava mesmo? À busca das melhores definições, as quais, uma vez compreendidas, fariam que eu definitivamente me calasse espontaneamente. Confesso que escolhi o pior momento para fazer isso, porque há um burburinho infernal vindo lá de fora: muitas palavras bonitas gritadas e vomitadas, dedos em riste mostrando os tantos caminhos que se abrem em leque. Tantas, tantas, tantas opiniões. Todos resolveram abandonar o encanto extático para tagarelar desabaladamente. Ouço comentários incompetentíssimos, descalabros nunca antes ouvidos; entrevejo nessa pauta musical schönbergiana um raciocínio enviesado e fanático daqueles que duvidam de tudo, exceto do ceticismo moderado. E nesse ir-e-vir de palpites absurdos, desponta um saudosismo do mal, uma vontade incontrolável de ver tripas perfuradas jorrando fezes e sangue, lançadas ao chão, segadas por golpes randômicos. Desejo de saquear, desejo de derrubar árvores, desejo de erigir um monumento faliforme maior que a Torre de Babel.

Engana-se quem vê o vespeiro e não vê nesse reboliço a existência de um centro. Não é nada que quem não se sinta perseguido, na verdade, possa imaginar. Mas um centro, de nome vago, um centro estúpido, com um riso apoplético e olhar demente. E bem aí que aconteceu o que todos já previam: começaram a se engalfinhar e a se devorar mutuamente. Flutuando sobre todos, tocando-lhes de leve a cabeça, voavam seres que surgiram do nada. Contavam volumosos maços de dinheiro entre as mãos. O calor das opiniões nascidas do massacre sob seus pés parecia aumentar o tamanho do maço. O desaparecimento total da fleuma no mundo parecia transformar aquele dinheiro num conjunto infinito, que se multiplicava muito mais que os pães do Evangelho, de forma ainda mais difícil de entender, de tão lógica. Esses levitadores sorriam e diziam “até que enfim chegou o tempo do lucro infinito” e toda vez que a carnagem esmorecia, um levitador puxava a orelha de alguém já cansado e cochichava-lhe algo que renovava sua fúria. Vendo isso, cheguei a suspirar: “acabaram-se as caras guerras fora das fronteiras quando descobriram que todo o combustível  do mundo, baratíssimo, está dentro das nossas cercas”.



E de fato, todos guerreavam com altos-falantes colados à boca e gritavam o que pensavam da Ciência, da Arte, da Política, da Religião. Todos se sentiam livres, finalmente, amarrados à fé do ceticismo opcional. Hoje basta que me mostrem uma pessoa tendo convulsões e atribuirei esses espasmos a algo que antes era corriqueiro, de que agora orgulhosamente desconfio. Confio nessa nova desconfiança e desconfio do corriqueiro, que antes funcionava. "O vídeo abriu meus olhos", digo com voz segura e olhos alegremente dementes. Desconfio de tudo, menos daquele vídeo. É a época do ceticismo self service. É a época do Videodrome.

No entanto, as fronteiras eu ainda não demarquei para iniciar meu silêncio, como havia prometido. Por que tardo tanto? Isso é tão contraditório! Sim, pois dia e noite eu penso no estouro do rebanho. Uma vaca sozinha derrubaria uma cerca, mas é bonachona demais pra reagir, impulsionada por si só. Já um estouro de um rebanho, dizem, ninguém seguraria. E o rebanho já foi cutucado demais: ninguém percebeu que eram maioria? Ninguém, nem Dawkins, nem Pinker? Tão confiantes antes, sorriam com o patético já-ganhou da racionalidade. Que racionalidade é essa sem poder preditivo sobre a maioria que tanto se apega ao irracional? Não era preferível que antes tivéssemos tido a serenidade para analisar o potencial do irracional a ironizá-los de maneira ácida? Eram precisos mais Sacks... mas Sacks está morto. Pensai no grego aristotélico à beira do surgimento do Cristianismo, com sua Idade Média de mil anos à espreita; pensai no efêmero iluminista às beiras do irracionalismo prenapoleônico; pensai no realista positivista do final do século XIX dizendo com convicção que "guerras não mais existirão na humanidade". Alternamos entre sapiens e insipiens. E as eras irracionais são muito mais longas, sabeis bem.

Ah, ser humano, teu narcisismo é de lascar! Existe uma coisa interessante nisso tudo aí. Se o ser humano fosse racional mesmo, a primeira coisa que faria seria respeitar a vida alheia e não só a dos membros de seu clã. Mas é perigoso pensar que isso tenha nascido só das pregações de Jesus, como se não existissem animais sociais e como se todo grupo só se mantivesse à base da violência. Só acreditarei que somos racionais, de fato, se todos, sem exceção, um dia, desenvolvermos algo de que não dispomos: um instinto de consciência da espécie, estendido para qualquer representante da espécie humana. O chato é que o hominídeo não conseguirá sofrer esse milagre sem ser especista. Ah, símio bípede que se julga auge da evolução: jamais estenderias esse teu instinto privilegiado que ficcionalmente penso que desenvolverias para toda a vida do planeta! Isso seria ser racional?

Não adiantou nada, portanto, eu delimitar as fronteiras do que é a Razão verdadeira. O “cerumano” jamais será o Ser Humano que imagina. Não respeitando nem mesmo seu bando, sempre precisou e precisará de leis mosaicas, de julgamentos da ONU e de um judiciário local. Se fosse racional mesmo, o respeito pela diferença entraria no pacote e não haveria Cristianismo bonzinho nenhum por oposição a  Ciência fria e cruel alguma: é ridículo imaginar a fleuma dos arautos de um céu constantemente sorridente encarando piedosa a Ciência com sua baba sangrenta ansiando para fazer a vivissecção do cunhado ou do vizinho.

Para que eu entenda o que a racionalidade é, de uma vez por todas, para que eu levante os mourões de minha cerca e nunca mais pronuncie as sílabas da palavra que a denomina, como havia prometido, é preciso entender que o problema todo está nessa oposição entre o racional apolineamente frio, de um lado, e da punjante, romântica e dionisíaca irracionalidade, de outro. No fundo, se esse defeito em meu cérebro de hominídeo não existisse, seria possível ser racional sem ser um Spok ou um Hal 9000. Mas é pedir demais, concordo, mesmo de mim mesmo.

Obviamente o ambiente político mudou com as nefandas redes sociais. Obviamente existe relação entre política e esse modo arrogante dos que antes se sentiam burros. A humildade necessária para ouvir o outro desapareceu, finalmente. E nesse cenário, a desconsideração e o ceticismo radical com a Ciência são só alguns pontos que chamam muito nossa atenção, sim, de nós, que valorizamos o racional. Se um grupo é sensato, não tem um líder com versões pessoais daquilo que é construído por milhares de doutos ao longo de séculos: quem ainda não viu cabeças rolando não se convence de que não está imune de perder a sua. Tudo mudou com a distribuição democrática de alto-falantes. Obviamente o descalabro tem a ver com o que os levitadores cochicharam em seus ouvidos. Mudou para sempre com aquele "deveis aceitar-vos, com orgulho, da forma que sois". A humildade necessária para ouvir o outro só poderia mesmo desaparecer, como um passe de mágica, desde então. 

Leitor, o que me incomoda não é nem a inverdade, nem a falta de comprovação daquilo que é estupidamente enunciado, mas a convicção de quem a afirma, às vezes criada sem a menor investigação, como se a História se fizesse só com intuição, com valores pessoais ou imaginação. É algo parecido como um indício de um transtorno esquizofrênico, mas tão frequente hoje no "cerumano", que começo a acreditar que sempre tenha feito parte do seu mecanismo cognitivo. 

Não conseguirei demarcar nada de certo e calar-me, afinal?



Falam tanto de heroicas histórias antigas, mas é quase impensável traçar a história de um ser que não seja hominídeo. De onde vieram eles? Não brotaram do nada. Eu penso na história de cada ser que aí está. Somos sabidos das causas e consequências: basta plantar um ser específico e aparecerá outro ser específico e um tomateiro nascerá das sementes de tomate. Mas, altivamente humano, se não consigo traçar-lhes a história, não enlouqueço com esses pensamentos. Só admiro a pervicácia daqueles que me alegram com sua previsibilidade canora. Mas isso é pouco: vê-se em toda parte autoelogio humano e uma tremenda indiferença pelo esforço hercúleo de todos os demais seres. Nem acuado, à luz das evidências, aprenderemos.

Anuncia-se o fim e o começo de ciclos com alegria, normalmente em épocas erradas. Penso que por saber algumas causas, tudo já está resolvido e tenho o controle de tudo. À minha volta, só gente confusa demais com tantas variantes, dizendo-me o que é de fato necessário, o que me falta, como ocorre, como pode ser classificado. Pode ser difícil para mim, sem memória, sem conhecimento, sem inteligência, sem coerência, mas que dizer dos conjuntos que me abarcam? Pior, dos que não me englobam? Por que não acumulas algum conhecimento, ó "cerumano"? Por que esse andar errático? Se algo me prejudica ou não me mima, relutarei a ter uma opinião formada sobre isso tudo. Basta ouvir os argumentos, porém, e imaginar de que lado eles estariam para saber se algo mudou, se algo sempre foi diferente, se uma decisão é ou não monocrática, se o que vejo é uma ilusão ou não, se o que ouço é ou não é um embuste.

Sim, foi pedir demais de mim. Mesmo que, para separar o joio do trigo, o joio fosse cinco vezes maior que o trigo ou vice versa. Não seria possível acreditar que uma racionalidade perfeita, uma racionalidade ideal ou mesmo uma racionalidade desejada conseguisse driblar aquilo que se esconde nos recônditos mais latentes de absolutamente todas as circunvoluções cerebrais. Não serei um anjo, não serei um buda e tu também não o serás, infelizmente. 

Mais fácil será continuarmos vendo os erros alheios do que detectar ou consertar os nossos próprios: não é isso uma verdade disfarçada de banalidade? Eis-me aqui, dando-te uma trégua, leitor, concedendo-te a palavra. Acho ótima essa tua ideia de que a hipótese do outro está sempre errada. Se bem que ficou paradoxal eu agora ter concordado com ela...

Prostrado ou de joelhos exclamo: era a tautologia tudo aquilo que sempre busquei na vida?! E fico silente, pensando nessa questão, chupando meu dedo.