Há algo mesmo que perdura "até que a morte nos separe". Esse algo é a vida.
Sabemos hoje que esse bem precioso é o resultado de uma batalha de espermatozoides os quais, por um misto de sorte e de capacidade evolutiva, conduziram parte de nós à nossa outra metade ovular, valendo-se de improbabilidades, auxiliados por leis físicas e químicas precisas ditadas pelos desvãos misteriosos dos acidentados milhões de anos de nosso passado pré-indivíduo.
A vida, essa mágica maravilhosa, não tem outra função que ser vivida. E a vida não seria o que é, se, no meio desse caminho, a evolução não houvesse pregado sua costumeira peça: a vida se caracteriza como algo que continua a ser vivida, não só nos nossos corpos, mas também covividas em nossos descendentes.
Há portanto duas vidas: a vida em si e a vida individual. A primeira vida só se diz eterna porque estará na terra, nem que seja na forma de micróbios, quando o sol engolir nosso planeta. A segunda vida, porém, tão passageira, é apenas o elo entre uma vida individual e outra.
A partir dessa segunda interpretação de vida inventou-se a morte. A morte não existe, objetivamente falando. É algo definido por negação.
Aristóteles já dizia que as negações não deviam fazer parte das definições. O elemento lógico da negação (esse defeito ou maravilha do raciocínio humano) traz em si a capacidade de dar existência a algo que é tudo, exceto a coisa negada.
Se digo que não fui ao cinema, não informo que fiz.
Se digo que algo não é azul, não digo a cor que tem.
Se digo que não fui ao cinema, não informo que fiz.
Se digo que algo não é azul, não digo a cor que tem.
Enfim, negar é apenas excluir o afirmado. Entendendo a morte como sinônimo da não-vida, acabo não pensando sobre que é a vida. Apenas sei que a morte é uma das muitas surpresas do futuro a mim reservadas. A morte, portanto, é algo sobre a qual não sabemos nada porque não é nada. Ela não existe, como não há algo como "o ato de não ir ao cinema" ou o "não-azul". Essas abstrações são conjuntos de coisas e não realidades. Alguém poderá dizer-me que a morte é tudo aquilo que não experienciarei, mesmo se quisesse. Ora, isso não é dizer muito, pois outras coisas conduziriam à mesma situação. A consciência da pobreza, por exemplo
Mas, antes de estarmos vivos, estávamos também, de uma forma, não-vivos. Se o pré-vida não interfere na nossa vida, não entendo por que o pós-vida deveria interferir. Não sofremos seriamente por não termos vivido entre os estegossauros, nem entre os maias, nem na época de Chiquinha Gonzaga, portanto, tampouco deveríamos lamentar o que não veremos no futuro depois de nossa morte. Mas é curioso como o apego a essa saudade antecipada é incomodamente onipresente.
O mundo ocidental aferra-se em religiões que prometem um mundo melhor no pós-vida, mas, paradoxalmente, os velórios nos mostram que mesmo os fieis são, no seu íntimo, céticos, caso contrário não chorariam o falecimento de seus queridos. A morte do corpo deveria ser vista como uma bênção por aqueles que creem em paraísos pós-morte. Então por que choram?
Mas não preciso tocar em temas tão polêmicos. Hoje, é comum jovens de 20 anos improvisando discursos de velhos, já com saudade de quando tinham 12. Aos 30 já estão falando como se tivessem encerrado toda a sua vitalidade. Aos 40 não tocam em outro assunto a não ser a sua velhice. Gastam muito tempo no desespero de manterem-se vivos. Aos 50 já se comportam como anciãos, reveem seus valores, sentem-se estranhos perante a jovialidade. Por que tanto desespero, se, em média, as pessoas têm vivido hoje por volta dos 80 anos? Essa preocupação constante com a morte parece que os mata diariamente. E quando morrerem, de fato? Que vida tiveram a não ser a de lamento por algo do qual não se lembrarão? Em que contribuiram para melhorar a vida dos que permanecerão temporariamente vivos?
Isso me faz pensar que a consciência da morte talvez seja um dos elementos mais caracterizadores da espécie humana, provavelmente muito mais do que sua inteligência. Na verdade, todos os seres vivos evitam a morte. Evitam-na na sua evolução, ao criar em seus corpos alguns mecanismos que por vezes servem como ferramentas de ataque e defesa (espinhos, garras, pernas ágeis, olhos, venenos, asas). Evitam-na também ao longo de sua vida, se não forem sésseis, não comendo determinados alimentos, ficando longe de abismos e inimigos. E quanto maior o perigo, maior a reprodução: mais sementes, mais ovos, mais ninhada.
O ser humano, como todos os mamíferos, nasce só, tem consciência de si rapidamente e percebe, logo no primeiro ferimento, que sua vida é muito frágil. Do medo da dor, nasce o medo de perder a vida. Estranho, porém, é que o ser humano se apega obsessivamente a essa ideia, de tal forma, que teme pelo dia em que a perderá, como se a vida fosse um objeto que lhe pertence. Consciente de que não tem garras, nem espinhos, nem venenos, de que é um ridículo animal pelado e sem forças e sem os paraísos apresentados em sua mente voltada a idealismos, compreendeu que a destruição do meio-ambiente é a solução para que seu bando vivesse mais. Matando os insetos, os carnívoros e as cobras, protegendo-se da escuridão, plantando e domesticando, suas chances de viver aumentavam. Nasceram as cidades, a cultura e com ela, o medo coletivo e comum da perda da vida, sem o qual não sobreviveriam filosofias, religiões e literaturas.
Mas pensar na morte o tempo todo não é, paradoxalmente, perder a vida? Não digo perder literalmente, mas qualitativamente. Sempre pensei nisso. Talvez porque tenha passado a infância toda com minha mãe e sua doença degenerativa. A morte era sempre iminente, até que um dia chegou de fato. Quando finalmente veio, eu já era adulto. Em vez do medo crescente motivado pela onipresença diária da morte, gerou-se em mim um profundo tédio com relação ao tema da morte, de modo que os pseudoconflitos existenciais sempre foram - talvez por uma defesa - deixados em segundo plano. Já vivi a morte demais. Cansei.
Todo dia que acordo, já tenho algo para fazer e normalmente faço. Os dias são curtos, a vida (boa ou ruim) passa rápida, mas de uma coisa tenho certeza: não quero reservar nunca minha atenção à morte, embora saiba que ela virá, tranquila ou dolorosa. Perante essa obviedade enfadonha, tento reservar minha vida a meus projetos de formiga, que nunca terão fim, nem teriam, mesmo se eu vivesse dez mil vidas. Pensar de outra forma, creio, é um convite à depressão, à fuga da realidade, em suma, à dor. Penso no futuro como algo em que quero realizar algo. Esqueço-me da obviedade enfadonha da morte inevitável e percebo que por isso nunca precisarei de deuses e de suas promessas além-túmulo. Também aprendi a não dar ouvidos aos abutres quando alguma desgraça me abate prontos a mostrar-me alguma contradição nessa minha atitude.
Agradeço à vida essa infância triste que tive. Pelo menos consigo ver a vida como ela é e não apenas como um oposto à morte, que, como já disse, nada mais é que uma invenção abstrata de nossa mente.