O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

O FIM DA ORIGEM

Dizem que quem não faz algo de maneira racional, perde-se na bagunça dos seus resultados e de seus pensamentos. A racionalidade, essa alcandorada faceta humana, é pintada como o ápice de nossos feitos, nosso último ato animal e nosso primeiro passo rumo ao divino. Sem a organização, esse magnífico subproduto da razão, não progredimos, não vamos além da nossa condição animal e do desgraçado ramerrão dos nossos dias medianos. Como seres que queremos cada vez mais, dialeticamente negamos o passo anterior e preferimos pisar degraus desconhecidos, aventurando-nos em escadas hipotéticas.

Mas aquilo que não existe é às vezes algo muito mais concreto do que o mundo captado pelos sentidos. E, para isso, sempre nos valeremos da contradição, palavra amaldiçoada por lógicos, taxada de pecado, irracionalidade, bestialidade e outras palavras de doesto.


Entretanto, o pensamento racional deve ter sido expelido de nossas circunvoluções cerebrais. Não por um gênio, mas por um animal muito medroso ou muito preguiçoso. Se não raciocinasse, o animal cairia na armadilha de quem o espera com a boca escancarada. Se não raciocinasse, teria de fazer a mesma coisa inúmeras vezes. Para que repetir uma tarefa, se posso ficar sem fazer nada? "Melhor pensar do que me esfalfar", concluiu o primeiro sábio, depois de dar um urro e bater no peito com êxtase. Conclusão: a origem da inteligência (humana ou não) é o medo ou a preguiça. 

Mas se Kant foi o mais inteligente dos homens, não seria injustiça dizer que era também o mais medroso ou o mais preguiçoso de todos? Algo medroso talvez ele fosse, pois Kant jamais ousou ferir-se: não se casou, não se mudou de Königsberg, mal viajou para fora de lá: ficando onde estava, tornou-se proverbialmetne previsível como a circunvolução de um planeta que circula o sol. Atitude inteligente, para quem cedo se cansa das aventuras da vida, as quais nos pontuam com prazeres muito fugazes e nos marcam com dores muito atrozes. Para evitar a loucura dos audazes que se dão mal e a decepção dos que querem manter o gozo eternamente, fica-se onde está. Foi o que Kant fez: não se conhece vida mais monótona que a dele, nem uma psique mais extraordinariamente rica, racional e organizada. 

Prova-se, portanto, que Kant foi medroso, mas seria injustíssimo dizer que foi igualmente preguiçoso, pois escreveu compêndios extensíssimos de forma organizada com a finalidade de vislumbrar, com olhos quase transcendentais, aquilo que ninguém havia visto e que, ainda hoje, mesmo acompanhando seus passos sem qualquer cochilo, é difícil de ver. Ora, quem organiza as ideias desse modo, trabalha-as de forma sistemática e as redige de forma tão primorosa não pode ser chamado de preguiçoso.

Conclui-se, em flagrante contradição com o anteriormente dito, que Kant era racional, portanto medroso, mas de modo algum preguiçoso como teria sido o hipotético primeiro racional. Contradição? De modo algum. Apenas um silogismo bastante falho. Se é certo que foi a preguiça que criou a razão, como argumentamos acima, a razão de modo algum permanece, depois de inventada, numa mente preguiçosa. A preguiça física é muito distinta da preguiça mental. E uma vez parida a razão, tornamo-nos escravos viscerais dela e de seus frutos bizarros. A razão passa a funcionar sozinha como um monjolo em moto perpétuo: cria um mundo muito distinto daquele em que vivíamos antes de a criarmos por preguiça, aliás, um mundo tremendamente agitado.

Esse mundo da racionalidade é algo que não tem pé na realidade. Se por "realidade" entendemos aquele nível de percepção em que seres com nossas dimensões vivem, concluo que, por mais genial que tenha sido o seu encadeamento lógico de ideias, Kant, por não ter ampolas de Lorenzini, jamais entenderá o que um tubarão ou uma arraia sentem quando se aproximam de uma fonte eletromagnética. A realidade do tubarão é diferente da de Kant. Sem esse elemento, o genial prussiano terá entendido como a mente humana funciona, jamais a mente elasmobrânquia.

O racional, provado está, só funciona para nossa espécie e, ao fim e ao cabo, trata-se apenas de uma loucura qualquer, como todo comportamento estranho de um inseto ou de uma anêmona, que jamais teremos condição de avaliar mesmo sendo etólogos gabaritados. Já que não avaliamos o que as outras espécies fazem e não teremos jamais a sua opinião, por falta de manifestação, a bicharada se dá mal na reunião que decide quem é o bicho mais sabido. É voto vencido quando se põe em sufrágio quem é o mais bacana do reino animal. Claro que somos nós. 


Algo parecido fizeram os homens ao inventar as línguas. O mundo todo está recortado em formas lexicais, categorias morfológicas, regras sintáticas que me são compreensíveis mas não a ti, ó falante de náuatle ou de chinês que não me lê. Aliás, no mundo categorial, tão alheio ao mundo real e ao mundo mental, nascem bizarrices que se interporiam o tempo todo nos nossos silogismos, não fossem alguns que se detivessem pormenorizadamente na sua ilogicidade intrínseca - entre eles o mais hábil de todos, Kant - expurgando o que é inútil na nossa tosca argumentação, como um médico que retira um tumor.

No mundo real, uma cadeira é algo inimaginável, pois não há uma única perspectiva a partir da qual devemos olhar, senão a nossa mesma. No mundo mental, uma cadeira é uma experiência abstrata a partir de seres muito distintos que julgo iguais e existentes e ainda mais abstrata quando comunicada a outrem. No mundo categorial, uma cadeira é simplesmente uma coisa feminina que não é verbo. Pergunto-me: se para além desses três mundos não há nada, onde mora exatamente a racionalidade da qual nos vangloriamos se sequer sabemos o que é uma cadeira ela-mesma?

Kant sabia disso. Não era simplista e tinha a real dimensão do quão limitado era tudo o que fazia, da mesma forma que Pascal também sabia. Diferentemente dele, porém, não se entregou conscientemente à loucura, pois lamentava, no seu íntimo tão reservado, que seus pseudosseguidores do idealismo alemão fossem para um caminho que não o da razão. Mesmo assim, detectara que a razão é um prurido do intelecto, afinal, o inato e o percebido juntos não produzem por si só a razão. A razão é um non sequitur. 

Aquilo que é belo, por exemplo, não é um elemento do intelecto. O juízo estético não se funda apenas na beleza mas também no sublime. Fruir a beleza é apenas um dos inúmeros prazeres estéticos possíveis. Se soubesse como Hegel leria isso, jamais teria escrito.

Mas voltemos a Kant. Todos nós sabemos que apreciamos com as pernas bambas aquilo que é colossal, o que é inimaginavelmente grande e o absurdamente pequeno, o que tentamos alcançar com o atrevido e hiperbólico nome de "ilimitado". O que nos emociona e nos assusta atinge nossa alma pouco afeita ao blasé. Um vulcão e um furacão são sublimes, pois entre sua magnipotência e nossa nauseante condição mortal instaura-se uma dramática consciência de finitude e de insignificância. 

O desmedido é irmão do imagético e - ai! - vivemos num mundo em que a imagem nos informa e, ao mesmo tempo, embota qualquer senso de comedimento. Tornamo-nos entediados perante tantas imagens. Nesse crescendum do universo das imagens, perderemos um dia nosso senso de sublime? Vivemos num mundo performático e nada mais nos surpreende. Nosso exibicionismo tende a fracassar se não tocamos no osso dos valores alheios. Somos sabidamente desesperados e mais do que nunca temos chance de sermos alguém com uma atitude extremamente covarde que tenha visibilidade. Cuidado! Um novo homem está surgindo. Mais frágil e, portanto, mais agressivo. 

Antes, o ser humano servia-se de inofensivas pedras, fogo, flechas, balas e bombas. Hoje serve-se de letais fotos e câmeras. O arremedo de Übermensch atual destrói monumentos milenares, continua matando covardemente inocentes, mas, diferentemente de antes, hoje filma seu próprio assassinato. O novo homem tem lançado aviões apinhados contra montanhas.

Esse novo ser age desse modo, na frente de todo mundo, porque está mais desesperado do que nunca e faz de tudo para que a sua existência seja conhecida e divulgada. Haverá sempre alguns insanos que aprovam seus feitos no meio da grande massa que quer assustar. Contudo, o importante mesmo para o cameralgoz é que não seja ignorado, que não seja apenas mais um na massa amorfa da humanidade. Se não age na frente de todos, fá-lo perante seus colegas. Novas tribos brotam da massa das pessoas inexpressivas que se julgam imensamente diferentes umas das outras.

Silêncio. O homem atual está falando. "Aqui está meu carimbo para quem recicla lixo, para quem come carne de porco, para quem não comunga da minha opinião política, para quem não acredita no meu deus". O homem atual é irracional? Não. Tem excesso de razão. Age por meio dela. Como sabemos, a razão divide, classifica de forma inquestionavelmente lógica, como os animais daquela enciclopédia chinesa de Borges que mimetizava os anseios de John Wilkins. Tudo que é minimamente diferente é imensamente distinto na razão. Com a razão, veem-se imensos abismos onde só há deserto. E, pior, mata-se por isso. Talvez seja o momento para admitirmos que a nosso prazer pela destruição seja apenas algo demasiadamente humano, justamente por sermos racionais. Distinguimos o indistinguível pela razão.

O tédio nos impele a isso, assim como nossa baixíssima auto-estima, mas nada mais que nosso desespero de perceber que somos um ridículo nada alavancará nosso potencial desejo de destruição. Uma lei moral tão simples quanto a de não fazer a outrem o que não queremos para nós mesmos parece ser esquecida por seres sem empatia ou então perversamente quebrada por puro tédio. Confundem-se facilmente valores sociais e valores humanos. Isso ocorre já faz tempo: num mesmo conjunto de conhecidos mandamentos, matar alguém pesa tanto quanto pronunciar uma palavra monossílaba em vão ou quanto desejar para mim algo belo que não me pertence. É muito difícil manter o equilíbrio mental quando não vemos diferenças entre coisas naturalmente tão distintas. Reunimos o irreunível pela razão.


Nosso problema, portanto, não é a irracionalidade de alguns, mas a racionalidade de todos. A animalidade do homem mata menos que a razão. E não é o nosso intelecto que nos tem feito conviver bem. O bom convívio, como qualquer um sabe, é pautado em regras que, de longe, são meros construtos práticos: só podem ser chamadas de racionais no sentido de que são pactos em que, a contragosto, nivelamos as nossas diferenças. Esses pactos só são atingidos após longas guerras e enquanto está viva a memória de suas consequências.

Decerto haverá pessoas que pulam nas jugulares das outras e comem-lhes as carnes como leões, mas, convenhamos, essas são minoria. A barbárie humana é mais comumente arquitetada na mente. Há muito de recorte social e psicológico. Há muito do que é tolerável para outros integrantes do seu bando, minoria ou maioria na sociedade em que vive. 

Mas a barbárie não se contenta em destruir o próximo. O novo homem tem atingido também memórias recalcadas. Destruir quadros, livros, relíquias, templos e estátuas, para além do seu asqueroso caráter midiático, parece querer apontar para outro paradoxo: busca-se o fim da origem. O que age assim pensa: "quem sabe se nascermos de novo, de outra forma, seremos algo mais que criaturas limitadas?". Nesse autoengano, talvez o mais grave sintoma de nossa esquizofrenia social moderna, parece que estamos todos de acordo.

A tabula rasa, de tempos em tempos, é enaltecida, para depois dar azo a um remorso muito estranho. Sim, acabou a origem. E daí? Conseguimos recriar algo de fato? Ou nossa imaginação é pasteurizada demais para isso? Valeu a pena destruir a semente dos nossos tormentos? Ou ela jaz imaterial e fantasmagórica na nossa mente, como avejão que arrasta correntes, perturbando nosso sono? Terei de fato destruído algo? Ou terei criado um monstro ainda mais incompreensível que me atormenta? Somos pais do nosso próprio Horla. Um iconoclasta com alguma consciência saberá do que estou falando.