O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

domingo, 26 de março de 2017

AS MOSCAS

É pensamento meu recorrente -  e tema contínuo desse blog - a lembrança de que o reino hominal foi mais um dos delírios de nossa espécie. Que somos especiais é verdade, mas não menos especiais que um golfinho ou um pelicano. Se o homem é diferente de todas as espécies, também o é a holotúria e a girafa. O culto ao homem não é apenas fruto do quatrocentismo, como dizem os manuais de Literatura. Que a evolução das espécies conduz teleologicamente ao homem não é afirmação darwiniana, mas pode muito bem ser spenceriana e teve, de fato, grande sucesso dentro do pensamento positivista dito ateu. Paradoxalmente, também se vê essa ideia nos argumentos positivistas ditos espiritualistas com suas antiquíssimas raízes na metempsicose, quando descreve o homem como um elo mais próximo de Deus (afinal, como diz o livro de Gênesis, é sua imagem e semelhança) do que, digamos, o é um társio ou um musaranho. Se não quisermos contradizer o senso comum, afirmando escandalosamente, que eu acho, por exemplo, uma Ornidia obesa mais espetacular em atributos do que o nosso primata preferido, tenho que tentar entender que algo particular à espécie humana seja, sim, digna dessa louvação toda. Os etólogos, contudo, andam jogando um banho de água fria quando mostram a inteligência e os sentimentos de outros animais e lá vemos surpresos exemplos de chimpanzés aprisionados que parecem ter empatia com aves igualmente aprisionadas, orangotangos que decifram rapidamente um problema, pinguins que se reúnem, sem ajuda de comunidades do Whatsapp, para o mesmo lugar no planeta, caminhando quilômetros para proteger seus ovos de focas de priscas eras que jamais voltarão a chegar ali, borboletas que migram distâncias inimagináveis sem GPS, abelhas que aprendem truques como ratinhos de laboratório a despeito de seus cérebros menores e menos complexos. Ao fim e ao cabo, vemos todos esses milagres feitos pelos bichos e os chamamos desdenhosamente de "instinto". Penso eu, todavia, que há de haver algo que seja humano e que caracterize a nossa estirpe, algum instinto mais particular do que o da linguagem, algum sentimento mais terno do que o amor materno, algo que seja exclusivamente humano, assim como há atributos que são exclusivos da Agraulis vanillae ou da Turritopsis nutricola. 



Se eu apostasse, diria que é a esperança. A frase parece bonita, mas encerra em si algo terrível. A esperança é a mãe das revoluções, esses eventos convulsivos antecipados por uma época mediata que quase sempre chamamos de auge. Obviamente, entre o auge e a revolução alguém dirá que houve alguma decadência, mas isso não vem ao caso. O auge está sempre antes de uma mudança radical, num daqueles picos do gráfico da humanidade de Vico. Se não fosse assim, Sócrates não teria antecedido Alexandre, os estoicos não teriam antecedido o cristianismo, o iluminismo não teria antecedido a Revolução Francesa, o afã romântico hegeliano-comtiano-marxista não teria antecedido a Primeira Guerra. Os auges paradoxalmente parecem anunciar alguma necessidade de tabula rasa sedenta de esperança. Mas com que isso contribui de fato para o homem? Não falo do homem-deus, mas do homem-bicho, sem exoesqueleto, tão frágil que sucumbe a intempéries um pouco mais violentas que as usuais. Não encontrando nunca um espaço no mundo real, ao invés de prostrar-se diante da sua fragilidade, o homem preferiu criar seu próprio mundo e eleger-se síndico ou imperador desse mundo virtual, onde se sente tão bem.

Achamos o homem-bicho feio, porque nele reconhecemos a sua real hominidade, e acreditamos que o homem-máquina é mais belo e próximo da divindade. A máquina é nossa progênie, a nossa imagem e semelhança. Será? A geometria angulosa e antisséptica do belo ideal é de fato melhor que a arredondada e viscosa do belo natural? Pausa para ver nossa alma: não há modo de fazer isso melhor do que na arte e, na nossa atual era voyeurista, nada melhor que as imagens.


Em 1958, Kurt Neumann dirigiu um filme da Twentieth Century Fox que muitos coetâneos meus se lembram de ter visto na Sessão da Tarde quer na forma original quer nas péssimas continuações de Edward Bernds, Don Sharp e Chris Walas. Era a filmagem do conto de George Langelaan, The fly, que em português ficou horrivelmente traduzido como A mosca da cabeça branca. O enredo desse filme é sobejamente conhecido: lá está Vincent Price interpretando François Delambre, irmão do cientista assassinado pela esposa, que aparentemente enlouqueceu, pois narra uma história inverossímil para justificar seu crime ao inspetor de polícia Charas. A loucura de Helene Delambre parece estar no fato de não se sentir arrependida do homicídio do esposo Andre Delambre, mas ao mesmo tempo chocada toda vez que uma mosca dentro de casa é morta. O segredo de sua angústia está no fato de o marido, transgredindo as leis de Deus - como está claro numa das falas - ter descoberto o teletransporte. Em suas experiências, Andre, playing God, sacrificou o gato da família e depois a si mesmo: fazendo-se de cobaia, numa das suas experiências, não percebe a entrada de uma mosca no aparelho. A máquina, sempre confusa nos sofismas lógicos tão inadequados à nossa espécie, acabou por embaralhar os dois seres. Nessa mistura, uma das mãos e a cabeça são trocadas. O lado animal do humano Andre parece estar dominando sua mente: a mão de mosca já não obedece ao seu raciocínio e Andre pede para que a querida esposa o mate, escrevendo a súplica numa lousa contrariando os movimentos involuntários da sua rebelde pata de inseto sobre a qual não tem controle. O pedido termina com um comovente I love you. Vejam bem: a homem-mosca de Langelaan-Neumann não fala, pois tem cabeça de mosca, com antenas, ocelos, olhos compostos e um aparelho bucal completo: gena, palpos, arista, vibrissa etc. Ao menos foi essa a intenção da maquiagem. A mosca-homem, morta pelo inspetor, agoniza na teia de uma aranha pedindo socorro. Se a mulher é homicida matando um inseto, o inspetor também o é, raciocina François, conclusão que permite que a lei seja casuisticamente burlada e se simule o suicídio de Andre para evitar que Helene seja presa e internada numa clínica psiquiátrica.

O assim dito remake de David Cronenberg, quase 30 anos depois, é uma história completamente diferente. Apesar de ser mais conhecida por causa dos suas cenas com repugnantes vômitos corrosivos, traz uma mensagem muito mais próxima daquilo que se tratou no início deste texto: a esperança. A "versão" de Cronenberg não foca o produto duplo, quase um castigo divino à bisbilhotice da ciência, no qual há um homem-mosca e uma mosca-homem. O computador tosco daquela década de 80, dialogando com o novo cientista, Seth Brundle, numa sintaxe improvável da esperada inteligência artificial dos proféticos Prologs de então, confirma a decisão que tomou, diante dos inesperados dois seres que entram no telepod.  Seth perceberá, aos poucos, que a sua suposta evolução misteriosamente promovida pelo teletransporte não o aprimora rumo a um Übermensch, mas é o que é: uma evolução.  É nesse ponto que vemos que The Fly de Cronenberg não tem nada a ver com o texto original e tampouco tem a ver com a afirmação wikipédica de que se trata de algo similar a Die Verwandlung de Franz Kafka. A mosca cronenberguiana tem outra moral, senão vejamos.



A degradação física de Seth fica clara a partir do momento em que sua linda namorada-jornalista Veronica Quaife mostra que algo deu errado e, de fato, Seth não é mais Brundle, mas um híbrido, que chama de Brundlefly. Essa transformação não foi fruto de um castigo divino, mas de uma bobagem: Seth estava ciente de que o babuíno transportado com êxito há pouco precisaria ser analisado em laboratórios durante muitas semanas antes de a notícia ser veiculada (a paixão que nasce entre a Ciência e o Jornalismo neste filme daria panos para outras mangas), mas estava chateado porque, no dia da comemoração, sua amada teve que se retirar para falar com seu ex-namorado e patrão Stathis Borans, que a chantageava. Portanto, a infecção de Bundle pelos genes da mosca não é fruto da arrogância da ciência, mas de uma terrível fatalidade, de um descuido, motivado pela ingestão excessiva de álcool associada com a rivalidade com o ex do romance recém-surgido, algo pelo qual facilmente nos perdoaríamos se fosse conosco. Antes de ser cientista, Seth é humano, sábio porém fadado às bobagens características da nossa espécie. Fato é que o resultado não são dois seres híbridos, mas um só em lenta metamorfose (portanto, repetimos, essa metamorfose nada a ver com a súbita transformação de Gregor Samsa): o homem-mosca se transforma paulatinamente, de forma angustiante e desesperadora, em mosca-homem. O tema de Cronenberg não é o enredo original do conto, mas trata da degradação do homem. Mas ela ainda está longe de acontecer de fato, como nos mostra o final do filme.

O filme, portanto, seria realmente um trash movie se Cronenberg fizesse eco ao senso-comum, caracterizando essa degradação meramente como a transformação de um homem que se supõe Deus em um animal, mas, como em muitos outros filmes cronenberguianos, a sua mensagem vai mais além. O homem é homem antes de arrogar-se homem-Deus, mas só toma essa consciência no estágio de homem-bicho. O homem-mosca perde sim aos poucos as características humanas: não se torna mais vil porque é asquerosa, mas se torna menos empática, afinal, empatia não é o forte das moscas. Have you ever heard of insect politics? pergunta à namorada, ironicamente, tentando alertá-la de que os valores humanos estão sendo sobrepujados pelos valores artrópodes. Now the dream is over and the insect is awake (...) I´m saying. I´ll hurt you if you stay. Essa conclusão se dá após os altos e baixos de reflexão: a mescla foi uma vantagem ou não? A sua mudança corporal é, afinal, uma disease with a purpose? Antes de declarar que o sonho acabou definitivamente, agonicamente reflete que a doença wants to turn me into something else. Most people would give anything to be something else. I´m becoming something that never existed.

Que sonho é esse que acabou? The synchronicity of the two events may blur the individual effect. I will say now, however subjectively, human teleportation, molecular breakdown and reformation is inherently purging. It makes the man a king. Since I left the pod, I feel great. A emergência do inseto mostra, porém, que o homem-bicho não é o Zaratustra que se espanta com os que ainda não sabem da morte de Deus. O sonho que acabou é apresentado pelo próprio Seth, pouco antes de desdenhar a namorada e procurar outra parceira aleatória para seu sonho de perfect couple, de dynamic duo. Tawny, adquirida numa luta entre machos, é, na cabeça desse homem-bicho inconsciente, mais adequada para seu sonho lisérgico emergido involuntariamente pelo metabolismo alterado. Veronica não serve mais para suas pretensões de homem-deus, que surgem desse delírio provocado pelas drogas de seu próprio corpo: you´re afraid to be destroyed and re-created. Think you woke me up about the flesh? You only know society's straight line about the flesh. You can't penetrate society's sick gray fear of the flesh. E, parafraseando Alexander Pope, diz: drink deep or taste not the plasma spring! evocando as metamorfoses de Ovídio.

Não. Quem consegue apreciar essa passagem sem passar mal definitivamente entende que não estamos diante de um filme trash. 

A carne a que se refere será tema de muitos filmes de Cronenberg: a superação, a síntese após a aniquilação, aquilo que é o trabalho de Brundle: I build bodies, I take them apart and put them back together. Trata-se do tema da new flesh, um dos núcleos da sua filosofia cronenberguiana escondida por trás das imagens que nos desconcentram. Muito ainda é preciso dizer sobre ela (como tentamos mostrar em http://marioviaro.blogspot.com.br/2014/09/a-fusao-e-o-ser-transformado.html). This is not just sex and penetration, but penetration beyond the veil of the flesh. A deep, penetrating dive into the plasma pool. É a mensagem subliminar do filme e não qualquer coisa que procure na fala do Cronenberg ator (sim, como Hitchcock e Tarantino, ele está no meio do filme no papel de ginecologista). Será nesse plasma pool que reside nossa alma, perdida, mas que ainda ecoa no Brundlefly? Ou perde-se algo, como o bife teletransportado, que tem um sabor sintético?


 A frase mais conhecida do filme (be afraid, be very afraid) está longe de ser a mais importante e só serve para a publicidade.  O tema aqui é a primeira etapa evolutiva: o homem-Deus se torna consciente de que é homem-bicho ou, na expressão do computador com quem Seth dialoga: o human se mescla ao not human. Para convencer-se definitavemente, é preciso que as unhas e as orelhas caiam, enfim que seu corpo, sua única certeza, se deteriore. I´m scared, help me, ecoará Bryan Ferry. Mais tarde, falando despicientemente com os pedaços cadentes de seu ser, o Brundlefly filosofa shakespearianamente sobre o que é de fato evolução: you're relics. vestigial, archaelogical, redundant, artifacts of a bygone era, of historical interest only. Por isso, os momentos mais macabros enfatizam a humanidade ainda presente na mosca-homem, cuja transformação está prestes a se consumar: Agindo como uma espécie de Corcunda de Notre-Dame, Seth rapta a mulher grávida de uma clínica de abortos, horrorizada pela ideia de levar dentro de si um gusano tal como lhe parece nos pesadelos. O plano de Seth é chocante, mas está longe de ser a atitude egocêntrica de um vilão e muito menos de um animal: pretende fundir-se com a namorada grávida, de modo que ele, Ronnie e o bebê em formação se tornem uma só carne, numa fala que lembram os ritos matrimoniais. Just you and me? Yeah, is there someone else you want to bring along? Uma espécie de trindade é o resultado desejado pelo aberrante homem-animal: we'll be the ultimate family, a family of three, joined together in one body, more human than I am alone. Obvia e compreensivelmente, ela não entende a atitude do gosmento ex-namorado e, em meio aos seus berros, que facilitam a desconcentração do espectador, há uma cena emblemática: debatendo-se e segurando no seu maxilar, acaba por arrancá-lo. Nesse momento, todo horror é pouco: o homem-mosca se torna mosca-homem. Perdendo o maxilar, somem as derradeiras características de hominidade: a fala se torna impossível com o aparelho bucal do díptero recém-desenvolvido. Como se diz desde Aristóteles, o homem se distingue dos animais pela voz articulada (algo que Seth estava perdendo aos poucos a ponto de não conseguir mais dialogar com seu computador). Não só a queixada cai na cena de horror. Despedaçando-se o homem por inteiro, a metamorfose em animal se completa. Sobra pouco de humano em Seth, apenas os olhos. Sim, diferentemente da mosca de Langelaan-Neumann, que ficou famosa por uma cena em que a esposa de Andre Delambre é vista da perspectiva dos omatídios do inseto, no caso do monstro de Cronenberg, o último resquício de hominidade é a presença dos olhos de Seth, olhos muito humanos, aliás, tremendamente marcantes por causa da excelente escolha do ator Jeff Goldblum. Para apreciar essa cena de incrível sinopse filosófica é preciso ver o filme algumas vezes e, acostumado com o reviramento do estômago que causa naturalmente, poderemos entender a mensagem que está por trás como algo mais do que cenas feitas para impressionar.

Ora, o plano romântico de fusão que geraria um ser superior (more human than I am alone), acaba não dando certo. Stathis, mutilado no chão, atira no aparelho e Ronnie se salva. Em vez de fundir-se com a amada e com seu filho, o pobre Bundlefly, tentando sair do telepod, funde-se com a própria máquina que inventou. Esse tema aparece em vários filmes de Cronenberg a ponto de ser quase uma obsessão. O que vemos aí é a evolução que está longe de ser o Homo deus de Yuval Noah Harari: se o homem-animal nos dá pavor, o homem-máquina nos dá pena. O excelente resultado alardeado pela máquina (fusion of Brundlefly and Telepod successful) é de fato tão bizarro que, como no filme de Neumann, o monstro pede para morrer. Nos dois casos, a cabeça, que gerou a máquina, é atingida. Cronenberg conseguiu mostrar o que é a verdadeira degradação: não o homem-deus, nem o homem-animal, tampouco o homem-família, mas o homem-máquina, que se rasteja na sua disformidade e na sua irônica lógica que insists on purity. Resta apenas que sua mente seja destruída por quem ama, que continuou sendo humano por convicção ou por acaso.

Vida é percepção. O bicho pica e mata porque tem medo e fome. A máquina mata e sequer percebe. Os dois são igualmente amorais mas não são a mesma coisa. O homem não o funâmbulo que anda sobre uma corda estendida entre o bicho e Deus, como julgavam os positivistas e bem percebeu Nietzsche. O outro lado da corda, porém, não é o super-homem que imaginou tão otimista. O homem está, na verdade, entre o bicho e a máquina. Der Übermensch ist tot.




A ideia de um homem-bicho é algo escandaloso para o público, desde o tempo de Darwin, mas nem Zaratustra poderia prever que o real Übermensch estivesse tão perto. Seth nu e bêbado, como Noé, despede-se do seu irmão babuíno, e entra na sua arca, reencontrando-o ainda inconsciente de que é Bundlefly. The residue of another life. I wouldn't ask you to do anything that I wouldn´t do myself. A síntese, para Cronenberg, não é algo que devemos comemorar, como se acreditavam tão positivamente Hegel ou Nietzsche. A consciência da síntese do homem com o animal nos dá angústia, mas a síntese do criador com a criatura é, nessa linha de raciocínio, a sua total aberração e sua aniquilação. E a criatura humana não é o bicho, seu irmão, mas a máquina, seu filho. O fruto da síntese é algo que inspira horror e pena e não uma esperançosa evolução rumo ao cada-vez-melhor, como pensava Comte et caterva. Mas em que pensa o homem quando gera a máquina? The world will want to know what you're thinking, diz a repórter, 'Fuck' is what I'm thinking, diz o cientista. De fato, the flesh should make the computer crazy, like old ladies pinching babies, I haven´t taught the computer to be crazy by the flesh, the poetry of the steak, so I'll teach it now.

Diz-nos Cronenberg que, apesar de horrorizados do que com as cenas do filme, nos horrorizaríamos ainda mais se percebêssemos que a síntese do homem-bicho com seu verdadeiro filho, a máquina, já está entre nós. Não nas teias de aranhas que nos devoram, mas na telecomunicação e, hoje, ainda mais. em outras teias que nos enredam: as redes sociais. Isso pega de surpresa aquele que, como o Seth do início do filme, dizia, ironicamente, I hate vehicles. O Brundlefly matou a charada: at the very least it should make a fabulous children's book.