O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

EVOLUIR SEM PROGREDIR

Ando chateado, pois desde que a revista em que escrevia foi extinta por causa da crise atual, perdi meu ritmo mensal ensaístico, tal como se pode ver pelas frequentes interrupções das postagens mensais de meu blog, mas planejo retomá-las ano que vem com a mesma periodicidade antiga. O dia-a-dia também se me mostrou bem cruel neste ano de 2015 e em janeiro já sabia que não haveria este ano em minha vida, tantas foram as atribuições, tarefas e compromissos de minha agenda.

Por causa da ressaca de 2015, que está já no seu fim, talvez deva escrever, por falta de melhor assunto, algo sobre uma micropolêmica surgida do conhecimento casual da pouca opinião que há sobre as minhas linhas. Já faz um bom tempo, uma amiga me disse que um amigo dela começou a ler meu blog e ficou chocado com algo que escrevi. Opiniúdos e opiniosos há por toda parte, mas o que me espantou foi que ela dizia que ele achara estranho que eu tivesse dito (talvez mais de uma vez) que não entendia Hegel. Um professor universitário não pode dizer isso, dizia. Claro que posso, ri.

Mas talvez por "entender" ele tenha entendido outra coisa. Sou obviamente limitado como todos o são, mas ao confessar não entender Hegel não quis dizer que sou limitado a ponto de não tentar entender o que Hegel diz. Pelo contrário, se me destaco por algo é pelo meu esforço para entender o outro, muitas vezes frustrado porque as regras do jogo proposto pelo outro, na maior parte das vezes, não são expostas, mas inferidas. Mas se é assim na vida, não é preciso que seja na exposição do filosofar.

Hegel me impressionou quando era jovem, mas hoje em dia, de fato, tirei-o de cima do pedestal do meu jardim dos grandes filósofos e coloquei-o no chão do lado do bebedouro dos passarinhos. Sem dúvida, trata-se de um filósofo com magnífica verve. Nietzsche também o é e nunca me incomodou, porque a proposta de Nietzsche é ser pura verve. Mas o que me chateava à medida que entrava no cipoal das imagens de Hegel é que ele queria querer me ensinar algo e ao mesmo tempo não queria que eu estivesse ali. Como não tenho talento para ser cuspido, perguntei-me sobre o porquê de sua atitude.


Qualquer um fica impressionado quando Schopenhauer azedamente chama Hegel de impostor. Não chego a tanto, até porque não o conheci pessoalmente para fazer esse julgamento. Nem é por isso que preciso tomar partido em relação a um dos dois grandes filósofos, tão diferentes um do outro. Não sei se Hegel foi um impostor, se reciclou ideias de Fichte, de Schelling e dos gregos que conhecia tão bem, fazendo-as suas. Se fez isso, por mais que o culpássemos por infringir o dogma romântico da criatividade, sua escrita continuaria tão original que não parece justo reduzi-lo plagiário. Quanto ao que sinto hoje em dia por Hegel, só posso apresentar sob a forma uma admiração murcha. Vejo-o a distância, tal como aconteceu com outras figuras e obras pelas quais minha primeva ignorância alimentava alguma admiração simbiótica. O meio dizia que Hegel era legal, eu concordava. Até que o enfrentei, com todo o respeito e com a melhor das boas intenções.

E não eram quaisquer pessoas que aumentavam em mim a promessa de encontrar na leitura de Hegel um portento: eram os escritores que mais me haviam influenciado e moldado meu modo de pensar. Penso que, indiretamente, até mesmo meu estilo, que julgo tão meu, veio indiretamente daqueles que amava, os quais por sua vez amavam Hegel. Aquela coisa de tese, antítese e síntese me arrepiava e me dava óculos para ver tudo, enquanto não havia lido Hegel de fato. Sim, pensava, Hegel bebera decerto em alguma fonte divina para ter tido essa ideia genial.

Quando descobri que tinha talento para epistemologia lendo e compreendendo Locke, Berkeley, Leibniz, Hume, Popper, entusiasmei-me. Cheguei a Kant e tive a real dimensão da minha limitação, pois Kant também me cuspiu de seu texto na primeira leitura. Não que Kant seja inacessível, não é isso. Tanto não é que voltei a enfrentá-lo e a cada releitura, entendo-o mais. Mas lê-lo de forma correta requer que sentemo-nos em silêncio excepcional e dediquemo-nos ao seu raciocínio. Trata-se de um pensamento muitíssimo sutil, algo como estudar uma língua completamente nova, como observar fascinantes detalhes por meio de um microscópio, como montar peças de um enorme quebra-cabeça. Kant, compreendido, dá-nos um sentimento de respeito reverencial misturado com medo ou espanto, algo que em inglês se diz awe. Impossível não pensar: como alguém pôde conseguir manter seu juízo de forma tão constante e direcionada? Kant devia ser um alienígena.



E o aspecto crescente do progresso, de Locke a Kant, não parava aí. Fichte, que dizia basear-se em Kant, antes da fase em que não estava com medo de perder seus cargos e começou a falar asnices germanófilas, criou um admirável sistema "kantiano" com foco no individual. De kantiano, o próprio Kant percebeu que não tinha nada, mas o que Fichte escreveu tem momentos admiráveis, de uma originalidade que beiram o lírico, não fosse de fato filosofia.

O que se segue, com Hegel, foi algo bem diferente. Explico: a dialética de Hegel prevê sempre um status quo, seu dramático aniquilamento e uma espécie de reconstrução dourada feita das ruínas do primeiro estágio com o que há de bom do segundo, ou seja, uma espécie de outro status quo novinho em folha, muito melhor que o primeiro. Essa visão positiva de progresso incomoda qualquer pessoa honesta.

Para que possamos engolir isso, temos de aceitar que a realidade não é mais substância alguma, mas apenas sujeito e espírito, daí a sensação de a filosofia hegeliana (e fichteana) não se assentar no mundo real: caminha e se transforma sem parar. Bom, Heráclito já tinha dito isso nas auroras do Ocidente. Até aí, morreu o Neves. 

Quando Hegel coloca a Religião após a formação do Espírito em sua Fenomenologia e dela extrai o Saber Absoluto, meio que desprezando a passagem da Lógica para a Mecânica, Física e Física Orgânica, ordenando, a seguir, seu produto numa nova sequência: Arte, Religião e Filosofia (sobretudo a filosofia alemã, especificamente a dele, se pensarmos no seu crescendum ininterrupto), aí uma pessoa sensata deveria atenuar um pouco sua admiração pelo grande filósofo, fechar o livro, pensar um pouco e perceber que está diante de alguém que está forçando a sua amizade com essas tríades que vêm de algum mundo plotiniano. Até mesmo Platão acharia isso um delírio.

Por que são sempre três e não sete etapas? E eis que Hegel se mostra, nesse seu raciocínio tortuoso e embriagado, antes de tudo, sob a veste de um grande orador, alguém que não conseguimos acompanhar sempre, pois entre etapas claras há sempre o levantar de uma fumaceira verbal que não nos permite seguir seu raciocínio. Aí vem as regrinhas dos exegetas: só entendemos a cientificidade de sua metafísica se dilatarmos alguns significados, se especificarmos outros, se aceitarmos seus paradoxos, enfim, se estivermos no mesmo mood de seu palavrório.

Mas se não estivermos, cometemos algum pecado contra o pensamento filosófico ocidental? 

No caso de Hegel, não basta projetar-se no momento histórico para entendê-lo como figura histórica. É preciso segui-lo como um discípulo segue um mestre, senão leva-se a pecha de grosseiro ignorante. Por mais louvavelmente aplicado, inteligente e obcecado que Hegel tenha sido com suas questões (na verdade, tanto quanto qualquer outro filósofo deva ser), vejo que em Hegel, assim como na maior parte dos que o sucedem, habitava (e habita) o sentimento de impor que o que afirma é algo maior do que o de seus sucessores, ou porque eram mais limitados ou porque eram muito esquecidiços. 

Ora, ninguém poderia mais negar as questões e as soluções levantadas por Kant, mas o filósofo de Königsberg humilhara demais seus leitores com seu bem-sucedido projeto de vida dedicado à filosofia. O falto de imaginação ou de talento não aceitaria que a fala kantiana era o fim da conversa: claro que era possível fazer mais, avançar, modificar, melhorar, superar, mas quanto conseguiriam isso doravante? Perante à quantidade absurda de informações hoje em dia, às vezes vejo que estamos de novo perante o mesmo problema, mas não quero me dispersar misturando passado com presente.

A geração mimada que recebeu toda a volumosa informação encadernada e organizada numa estante tem vontade de jogá-la toda no chão e botar fogo em tudo. Por quê? Talvez o nosso lado chimpanzé explique paradoxal apego e ódio simultâneos à geometria, mas não levantemos razões biológicas desta vez. 

Essa vontade de jogar tudo que é belo e perfeito para o alto se justifica não por um mecanismo obscuro numa dimensão oculta da História, mas porque o indivíduo quer reinar, dane-se a conquista da mente coletiva. Sim, o tal Espírito hegeliano nada mais é que o Eu fichteano travestido com palavrório. Não é grandioso, mas mesquinho e muito egocêntrico. Esse Espírito que navega no tempo, imponderável e quase inimaginável, só supera as aquisições reais pelo simples fato de ser impalpável, vago, subjetivo e, acima de tudo, contraditório. Na verdade, supera uma pinoia. Em vez de antítese e síntese, o que eu vejo de fato é destruição e perda.

Os cristãos não superaram Platão. Fizeram um sincretismo cuja separação ainda hoje é difícil de desfazer. Houve perda quando o conhecimento egípcio se desfez, para não falar dos maias e de tantos povos que da barbárie migraram para o nada. Onde está a síntese? Ninguém honesto conseguirá enxergar porque sobrou muito pouco do progresso do passado.

Em vez de afirmações, refutáveis por meio de novos pressupostos e dados, oferece-nos Hegel uns círculos místicos e umas espirais enigmáticas. Por que têm esse formato e não são pirâmides, dodecaedros ou esferas infinitamente concêntricas? Também essas formas geométricas estão lá no meio de nossos estranhos arquétipos humanos e são formas fáceis para nos convencer sem que haja de fato argumentos para seu formato. A redação hegeliana hipnotiza, não convence o leitor aplicado que confessa não entendê-lo. Sentimo-nos um discípulo sempre a interpretar a fala solipsista do mestre e isso, de alguma forma, já estava superado no momento em que Hegel propõe sua dialética. A proposta da clareza dos ingleses nunca convenceu a mente barroca alemã, desde o tempo de Leibniz. Voltou tudo para trás. Não houve síntese, houve antítese após antítese.



O estranho é que Hegel não nos esconde isso. Pelo contrário, dá-nos muitas provas de ter consciência do que faz: compara, por exemplo, sua dialética com um triunfo báquico. Pergunto: por que então tanta coisa se erigiu sobre um terreno construído por ébrios? Por que se parou de discutir o que vinha sendo ponderado seriamente por Hume e por Kant e o sólido ficou fluido? Será que porque, dando um saltinho para o lado, temos algum modo de escapar das questões de dentro do círculo e, em terreno fora dele, podemos ironicamente debochar de quem está procurando sentido nas palavras dentro dele? Na verdade, o que vejo de original em Hegel é a descoberta dessa fórmula, copiada por todos os que vieram depois, com talento para filosofia ou não. O triunfo báquico é o triunfo do preguiçoso e do que despreza o leitor. Está aí o Transgressing the boundaries de Alan Sokal como prova de que ninguém mais se importa em ser desprezado.

Convenhamos: Hegel não se contenta em ser antítese de Kant pois se acha com talento para ser síntese. Mas, caramba, quem foi então a antítese de Kant para chegarmos à síntese de Hegel? Fichte? Schelling? Hegel não tem dúvida que ele próprio é uma síntese e seus precursores são antíteses: essa egolatria lhe custou perder a amizade de Schelling.

Mas o leitor adora e quer ser seu novo amigo.

Lemos Hegel à cata de uma dica sua que nos ilumine. Aceitamos suas contradições com complacência. Entendendo-o, pensamos que somos seus camaradas. Mas é com base em benevolências e em fisiologismos que se aufere o tão desejado saber? Ou a busca da verdade foi abandonada no exato momento em que se instituiu esse comportamento? As aulas lotadas de Hegel, odiadas com inveja por Schopenhauer, deram às hordas cada vez menos hábeis o salvo-conduto de transitar no Mundo das Ideias, vestidos com mantos de reis, tal como o batismo prometia, com seu poder libertador do mundo carnal, até então, único, antes mesmo do surgimento dos cristãos. Dica: basta usar o abracadabra "Hegel" e tudo o mais lhes será acrescentado.

Essa êxtase que se vê escancaradamente em Nietzsche é a coluna cervical velada do hegelianismo e da filosofia seguinte, coisa fácil de se fazer no mundo pós-Hegel. Não podes com o peso da história? Lança no meio da cerração tudo o que te incomoda. Eis a fórmula para a máquina dialética sempre caminhar adiante e progredir sem que olhemos os precipícios em volta da estrada. Canta no teu trajeto, ó neófito hegeliano, o seguinte mantra: "toda coisa é um silogismo". Triunfo báquico.

A tempo: "superar", por fim, não é uma boa tradução para o famoso e propositalmente ambíguo verbo alemão aufheben da metalinguagem hegeliana. Melhor seria "suspender", que aparecem em algumas traduções. A imagem é clara: criar-se-ia um suspense enquanto a síntese não se efetuasse. Nesse suspense, tudo fica em suspenso: a lógica, a vontade de entender, a própria dialética que supõe existir. Paradoxo: tudo parou quando os conceitos começaram a rodar ininterruptamente. Finalmente houve a vitória da ambiguidade alemã sobre a definição inglesa!

Enfim, há quem goste. Mas, pergunto-me, onde está a limitação de quem pensa de modo contrário e não suspende completamente suas ideias para desenvolver algo belo, como quando uma bailarina necessita de um apoio no chão para seu rodopio, algo que nos causa tanto awe quanto a embriaguez? A tríade invocada por Hegel, se não vem de Deus ou de um mundo imaterial, parece ser apenas um engenhoso mecanismo retórico e não uma verdade atingida. Não funciona, em última análise, como bom pressuposto de nada. 


Já dizia Mario Bunge em seu Chasing reality que os pressupostos não são suficientes para caracterizar coisa alguma e que a mudança é sempre fruto da emergência ou da submergência de propriedades. Kant descobriu a estrutura dos fenômenos e da razão no nosso conhecimento, mas o realismo, no sentido de Bunge, parece bem mais produtivo se um dia fosse alcançado. Mas os produtos racionais da imaginação embriagada, mais fáceis e mais belos, são mais atraentes. Enfim, é atrás deles que vamos para superar nosso infinito tédio de primata consciente da própria morte. Não tenho esperança, como os materialistas, de que isso um dia seja aceito por todos.