O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O AZAR, SEGUNDO A CIÊNCIA

Se está comprovado cientificamente que tudo aquilo que pode dar errado invariavelmente dará, não há razão alguma, leitor, para que te deseje um feliz 2021. A esperança, como todos sabemos, é a maior fonte de angústia e depressão do mundo e, mesmo assim, desde os tempos de Pandora, é vista como aquela  boa ilusão remanescente com a qual um zoroastrista qualquer cheio de lábia convenceu o grego prostrado e apatetado, tão acostumado a participar da ágora, à nova realidade alexandrina e com a qual, séculos depois, outro zoroastrista, genericamente travestido de cristão, falou a um outro grego, igualmente calcificado na sua depressão causada por ver seus parentes levados como escravos a Roma, que o bom mesmo é viver depois da morte. Não, leitor, se queres continuar iludindo-te, não continues a leitura. Vai afogar-te no teu autoengano, que ganhas mais.

À guisa de ata de reunião de departamento, antes façamos uma retrospectiva sobre esse bonito ano de 2020, tão geométrico quanto auspicioso. Esse Ano do Rato do calendário chinês começou em 25 de janeiro. Lembro-me de ti, enfastiado à época com o noticiário, que falava por semanas de uma tal Wuhan, a qual, meses depois, procurarias no mapa e descobririas não estar no Japão. Um claro exagero aquela insistência toda dos repórteres, pensavas, algo manipulado obviamente apenas para nos dispersar do que é realmente importante, ou seja....não me lembro mais o que era importante antes da pandemia. 

Wuhan era um nome esquisito e, um mês depois vendo-a citada em toda parte, parecia que havia de fato algo sério lá... mas deste um suspiro de alívio e te lembraste do longínquo ebola. Para tu, habitante de Birigui, qualquer doença que te fizesse morrer em segundos de algum tipo de lepra evisceradora e misteriosa, se não estivesse no noticiário da cidade aí próxima, por exemplo, em Araçatuba, não seria problema. Tinhas um escudo invisível do Homem-Pássaro, um corpo fechado por teu santo predileto, razões em que te apoiavas e ainda te apoias, e que te faziam e ainda te fazem desacreditar que coisinhas à toa como esse vírus venham voando, de cuspe em cuspe, do outro lado do mundo até tua narina. Mas a coisa ficou séria e tu fizeste o que faria qualquer brasileiro, do alto de sua dignidade ocamente ufanista: começaste a mandar mensagens preconceituosas sobre a metade amarela da humanidade que, segundo tua imaginação fértil, passaria o dia todo forrageando baratas e comendo outras coisas estranhas. Disseste teus impropérios nazistas que fariam Goebbels corar e, ato contínuo, lascaste uma dentada na tua carne mal passada de tatu. Pobre bichinho! Ontem mesmo teve sorte e, escavando no cemitério aí próximo, aproveitara-se de um caixão mal lacrado e se refestelara com um cadáver em fermentação. Agora o dasipodídeo está no teu bucho, que odeias quem come urso panda à vinagrete. Tatus, jacarés, morcegos, ursos pandas e capivaras à parte, voltemos ao nosso desapaixonado tema inicial de descrever de forma completamente objetiva o que foi o ano de 2020. 


Bem a tempo: lembro-me agora de que viste um vídeo que te convenceu a comprar um inseticida ótimo contra o vírus e, tão convicto disso, compraste vinte e cinco unidades. Teu irmão te alertou que esse comportamento era completamente inócuo à tua saúde, quando não daninho, pois bom mesmo, segundo ele, era lamber bem as mãos quando voltamos da rua, porque a saliva teria uma superenzima que mata até o vírus-mãe da colônia virótica. Aí brigastes por causa desses argumentos tão seguramente ancorados nas baías de vossas ignorâncias e nunca mais esses dois se falariam, embora estejam agora convencidos, sem voltarem atrás um centímetro de que as duas soluções eram apenas burrice de uma época em que ainda não estavam plenamente informados de que o bom mesmo contra o vírus é tomar banho de xampu neutro misturado com óleo de guapuruvu. Na época da celeuma do inseticida versus o cuspe, ambos nem sabiam a diferença entre pandemia, epidemia e academia. Sim, foi aí que os honrados acadêmicos tomaram o microfone do karaoke da mídia e os cientistas tomaram as rédeas da carruagem desgovernada dos noticiários.

Melhoraste teu inglês! Quando agora pronuncias lockdown, passas por nativo, com pouquíssimo sotaque biriguiense. No seu home office, tiveste que retirar o teu PC empoeirado de dentro do guarda-roupa. E pensavas que ele seria substituído pelo teu smartphone! Pensavas que ele estivesse com os dias contados, assim como tua bússola, tuas fitas cassete de rock, teus cd-roms! Não, agora teu PC era a fonte de tua renda e perdeste horas para te familiarizares com os Google Meet da vida. Descobririas também que teu pé fica incomodado com teus sapatos, tão acostumado ficaste aos teus chinelos. Era preciso ter mais pijamas: dá-lhe compra em sites! E concluíste ajuizadamente que calças seriam menos importantes para ti que shorts. Acessórios de beleza usados nos olhos venceram os mesozoicos batons, agora encobertos por máscaras que aprenderias a usar, embora ninguém te convenceria que o nariz devesse ficar dentro dela, pois obviamente descobriste na tua imaginação teres predisposição a um monte de problemas respiratórios hereditários, o que justificaria teu raciocínio de que, por alguma razão  probabilística e divina igual àquela do comedor de tatu, seria mais fatal morreres de asfixia pela máscara do que da exposição de tuas narinas às gotículas de teus amigos perdigoteiros.

Não zombo: sabes que é verdade. Lembras de como xingaste as ONGs por não fazer nada? De atribuíres culpa às pessoas erradas e de eximires outras tantas ainda mais erradas? Já PhD em epidemiologia e convicto de que a resposta para superar esse clima down seria ter uma vida feliz, otimista e saudável em família, obviamente não tiveste medo algum. Lançaste invectivas a quaisquer que cruzassem tua frente e, por isso, puseste-te pronto para o braço de ferro. Dois varões atilados juntos raciocinam assim: é preferível tomarmos pinga sem medo e sem máscara, darmos umas viris escarradas enquanto simiamente coçamos nossas partes pudendas a discutirmos o medo, porque isso não é coisa de macho. Não valeria a pena discutir com nossos compatriotas sobre quão pouco apodícticas são as bases desse raciocínio: vai que na demonstração do teorema a respeito de quem seria o mais ignorante, o outro tenha uma peixeira ou um revólver, afinal, as armas são o falo máximo do alfa, freudianamente falando. Esquecendo-se do vírus, tais sábios sofistas contaram entre si muitas piadas de pessoas medrosas que caíram desmaiadas de tanto cheirar álcool em gel.


Um estatístico deveria comparar o gráfico da progressão das infecções e mortes com o do  crescimento e arraigamento da burrice. Se a doença fizesse cuspir os bofes em segundos, como dizíamos, o negacionismo não existiria. Isso é a prova de que o negar o real é diretamente proporcional à distância de qualquer fato em relação ao seu próprio umbigo. Mesmo no caso de morte de gente próxima, age-se também como sempre agimos, valentes brasileiros do Hino da Independência que somos: choramos em demasia e culpamos um segmento da sociedade ao qual não pertencemos, como se também não fosse composto de outros tantos brasileiros, mas de alienígenas extragalácticos (pensando bem, isso não seria um argumento plenamente refutável in se, pelo contrário, com muitas possíveis evidências). 

Lamentamos pra dedéu e, se dermos sorte, o câmera do telejornal vai estar ali do nosso lado, ávido como um urubu sobre carniça, só para filmar longamente a nossa lágrima escorrendo. De patetice em patetice, de resignação em resignação, de depressão em depressão, continuamos nossa mentalidade colonial: segundo ela, as hipócritas condições inglesas a respeito da interrupção de tráfico de humanos puderam continuar mesmo depois da independência, mesmo depois de república, mesmo depois de guerras mundiais, mesmo depois de todas as conscientizações possíveis advindas de tanta tragédia junta. O importante, segundo nossa mentalidade, é explorar e tu, favelado convicto de que és integrante da classe média por causa do teu empreendimento de cocadas, apertado diariamente nos ônibus, morres de medo de qualquer mudança no status quo. Nossa revolução, como pobres que somos, é a lágrima. Nossa queda da Bastilha é o desespero, seguido de resignação. E tudo isso só por causa daquele zoroastrista que disse haver uma vida melhor depois desta, após nosso sepultamento. Já te enfureces se alguém disser que não. É cancelamento do whatsapp na certa.

Já que tua bandeira revolucionária só te serviu até agora como capacho, de tão puída e esgarçada, a única coisa que podemos fazer é ouvir nosso capataz. E ele disse que o feriado de novembro agora é em maio. O Big Brother falou, está falado. Pergunta: tudo é para teu bem ou é para seu bem? Repetem no teu ouvido o mantra: "a economia é tão importante quanto tua vida" e tu dizes amém, porque não és comunista, Deus te livre. E ainda: "a roda do capital não pode parar" e tu dizes amém. De tão acostumado a seres engrenagem, nem questionas esse credo: "quem é que vai pôr o feijão na minha mesa?", argumentas. Com certeza te digo que não será teu defunto, Oras, afinal, és Homo sapiens, o intrépido haplorrino que sempre escreve torto pelas linhas retas. Já vencestes rinocerontes, mamutes, lobos e leões. Não será um inimigo pitititico invisível que te derrotará, certo?  E, valente, esqueceste da morte. "Vai, meu filho", diz o capitalista com uma cartola imensa, "vai, meu orgulhoso herói,  faz os meus brioches, vai, enfrenta a savana e traz suado no teu lombo o meu cobiçado lucro, vai, alimenta minha usura, tu, todo ensanguentado e com as costas descarnadas, papai te ama".

Seria injusto se não houvesse alabança para os medrosos também. Afinal, são os cautelosos. Da mesma forma que, com sua bateia, o denodado minerador enlameado mostra seu poder à floresta que destrói, extraindo pepitas de mais-valia aos cartoludos, a burguesia encastelada, com máscaras cada vez mais potentes, agradece as mãos sujas dos enfermeiros e lixeiros, subitamente mais rica porque deixou de pagar o perueiro da escola do filho e cortou o salário da diarista. Observa passarem boiada e lamentam pelos silvícolas, aqueles seres idealizadamente sábios, abandonados há décadas a não ser pela inutilidade de veneração burguesa, abandonados quer por políticos de direita, quer de esquerda, trucidados pelo mercado que lançam um tsunami sobre suas malocas, porque, afinal, essa é a lei da selva neoliberal. Para não deixar dúvida de que esse é o plano, o odioso ministro de olhos glaucos ordena que se passe a boiada. E vemos uma Auschwitz em plena Amazônia. Vemos nossos índios acuados pela doença, pela fumaça e pelo peixe com mercúrio, como os habitantes de Bornéu, correndo das imensas árvores que caem sob o impacto feroz das retroescavadeiras de Suharto, que, em troca pelo desastre, lhes dedicava maus poemas, dizendo que um dia lhe seriam gratos por tê-los forçado à civilização. Um dia Ricardo Salles, junto com Suharto, será lembrado como um dos mais nefastos seres humanos que passaram pela Terra. A ciência também só lamenta tudo isso. Cientista que é bom não convoca ninguém às armas, mas faz cartas de repúdio, diz outro cientista fleumático, lamentando o engajamento do cientista que vocifera, com uma onça morta às mãos. Cientista que é bom, diz quem tem juízo, convida seus orientandos com esta peroração: "o azar é um fenômeno interessante a ser estudado numa iniciação científica ou numa pós-graduação".

E nesse gozo do demônio de Hume, que nos esfrega na cara não haver causas, nem consequências, de fato, tudo é azar. É azar que tenhamos derrubado nossa primeira mandatária e colocado seu vice por meio de interpretações incompreensíveis a mortais que carregam sacas nos portos. É azar que tenhamos prendido um antigo presidente por causa de investigações e tenhamos colocado um outro sempre tutorado pelo Ministério Público e protegido por Congresso e Senado, que não têm agora pressa de investigar. É tudo um golpe de azar, da mesma forma que é um azar que o vírus tenha invadido o planeta, que tudo que é estranho ocorra em Atibaia, que as boiadas estejam passando, que auxílios emergenciais sejam fraudados, que dinheiro esteja sendo desviado para equipamentos que não chegam aos moribundos. É tudo azar. E contra o azar nada se pode fazer. Um cientista diz amém, chegando à conclusão de que o azar não é da sua alçada. Um padre, com máscara, levanta o cálice com álcool em gel consagrado e diz oremus. O policial, nessa mesma vibe, atirando em muitas cabecinhas, diz exsultet!


Mas espera! A curva acaba de descer. Vamos todos votar! O vírus está indo embora igual um bando de andorinhas, dizem. Não foi confinamento, não foi nosso cuidado, não foi nada. Simplesmente a coisa funciona assim: está indo embora, como em outras pandemias. Tinha de ser assim. Maktub. E reiniciamos a dança do acasalamento nas boates e enchemos a cara. Que bom sentir novamente o perdigoto alheio com o cheirinho de cerveja. Tudo é motivo de festa. Diziam alguns pessimistas, porém, que na suruba microscópica, a festa era ainda maior. "Que sorte isso ser apenas uma metáfora", diz um trêbado orgiástico. "Se fosse uma bactéria ou um fungo, aí sim, a coisa seria ainda mais feia", diz o cientista. Sim, é um trouxa de um vírus, que nem vida tem, pfui... Mas Ele, o todo-poderoso Corona, estava ali, nos seus focos, só à espera deste momento. Estava onde ficará para sempre, travestido de corona-2, corona-3, corona-n. Pois bem, há os que não querem vacina, arvorados no seu conhecimento monstruoso de epidemiologia extraído de cinco youtubes dum curso oferecido pela Igreja Masoquista do Gozo de Madalena Democrática. Peraí! Eu também vivo nessa mesma democracia, portanto, quero ter, por exemplo, o direito a não pagar imposto de renda, pois o síndico desse país é muito desorganizado. Abracadabra!  Liberou tudo como sonhávamos! Vamos comemorar novamente a reabertura de tudo na Grande Festa da Democracia Neoliberal. Tenho vinte convites, vou me esbaldar nas alas fordista e taylorista desse Carnaval Keynesiano, estupefeito de cloroquina, com saudade do  alaranjado anão de jardim gigante. Como era engraçado, volta, Trump! 

Até agora mais de 3700 casos e cerca de 100 mortes, só em Birigui. "Aliás, isso, em reais, dá quanto, mesmo? Não chega a ser prejuízo", conclui o economista da Globo News. "Calma, Birigui tem mais de 100.000 habitantes", dirá um cachaceiro da Capital do Calçado Infantil, desempregado e estranhamente conectado àquele economista, num aplaudido rompante intercachacístico de lucidez, segundo o comentarista econômico. Um outro bêbado, um pouco mais sóbrio, que acha que azar não é um fato científico, dirá, tirando sua calculadora do bolso, que 100 mortes num universo de 100.000 habitantes é, sim, só 0,1% da população, mas é isso "porque não é tua mãe". Partiram para a ignorância: briga no bar. É cadeira que voa, é garrafa que cai, é espetáculo de sumô grátis para os transeuntes mascarados. Nessas horas eu me indago se existiria tanta relatividade nos discursos, se fosse um ebolavírus e se os filhos dos que equivalem gente a porcentagens caíssem estrebuchando no chão cuspindo o próprio fígado. Nessas horas eu, com metade do meu copo vazio, vendo os sopapos na mesa ao lado, argumentaria que são muitos bilhões de unidades de vírus em cada um dos 3700 infectados daquela cidade, escolhida aleatoriamente para este texto. Bem distribuídos, só a infecção biriguiense seria suficiente para distribuir um virusinho para cada habitante do planeta. "Wuhan é aqui, minha gente", digo do alto da minha embriaguez, "uma grande panela de pressão onde cozinham mutações que seguem apenas o humor do RNA e nada mais". E a curva de fato recomeçou a subir. Dá até um calafrio, porque o pico parece que não chega nunca. Dessa vez, o carrinho dessa montanha russa vai despencar com emoção e, com azar, ainda vai ter looping. "Exijo receber ressarcimento dos que votaram a favor da Reforma da Previdência", berro, afinal de contas, com um vírus que inexoravelmente ceifa vidas de sexagenários, eu já deveria estar aposentado aos quarenta e cinco, segundo a atualização da perspectiva de vida. Percebo que fui egoísta agora: "desculpa-me, ó imprensa tão preocupada comigo. Foi a pinga". Que vergonha ter dito isso no país do altruísmo, com tanto didatismo independente no noticiário, tão desvinculado dos interesses capitalistas. A tempo: é sarcasmo.

Feliz 2021 aos bois que passam. Se há espaço para esperança, eu espero ab imo pectore que em dezembro de 2021 eu esteja aqui, nem que seja para falar que a coisa piorou tanto, que já temos saudade de 2020.

domingo, 22 de novembro de 2020

O JUSTO E O COMPLEXO

Um dia, para as bandas de onde nasce o Sol, alguém no imenso império persa disse que havia o Bem e o Mal. E esse conceito, talvez sensação atávica, formalizado pela roupagem dessas palavras, carnificado, estatuificado, subsiste até hoje. Na narrativa desse Bem e desse Mal com olhos e pernas, pelo diz-que-diz-que infinito da parolagem humana, associaram-se ambos à história daquele deus que vencera e lançara na Terra seus inimigos: lucíferes, saturnos, titãs e asuras. O vencedor seria, por meio dessa vitória, o novo Bem, aquele que apagou o passado e renomeia seus inimigos ao seu bel prazer, pois a sua vontade deve ser feita. Como anuncia o Ministério da Verdade, a Lestásia, nossa antiga imimiga na verdade nunca o foi, pois nossa antiga aliada Oceania é que sempre o foi. Para entender isso, basta apenas um pequeno movimento de aceitar. Além disso, como sempre soubemos, dois mais dois é igual a cinco. Esse Bem tirano, obviamente, sempre gerará diariamente novos Winstons Smiths,  mas isso é um problema fácil de resolver, pois a violência - como bem sabe o leitor - resolve todos os problemas. A solução final sempre conviveu conosco na família primitiva e só foi delegada ao Estado quando se abstraiu a noção de território... quando, com uma régua na mão, o homem disse: "isto tudo aqui é meu, fora!". Foi assim no Paleolítico e é assim hoje nas Amazônias do planeta mutatis mutandi.



O Bem violento, que se arroga dono de tudo, cansou-se de estátuas desses deuses dos quais era descendente. Comprova-o seu argumento de sangue na abstração de outros sinais igualmente icônicos. E os velhos deuses vencedores, por fim, foram destronados pelas letras e surgiram as castas. A função  desses sinais visuais passou a ser justificar a violência e sua variedade de formas é bastante proteica: tábuas, constituições, cheques. O alfabetizado foi o primeiro ateu. Mas isso tanto faz: o importante era deixar claro agora e sempre que toda violência é cometida em nome do Bem. E foi assim, nas priscas eras, que ser bom se tornou o mesmo que ser violento. Por vezes (na verdade sempre, estou sendo cínico), penso que isso valia tanto na Pré-história quanto no mundo de hoje, sobretudo em locais incivilizados como o Brasil. 

Do Brasil não conheço melhor retrato que o do filme Cronicamente inviáveldirigido por Sérgio Bianchi, escrito em parceria com Beatriz Bracher. Leitor, como você não vai ver esse filme só porque estou recomendando, imploro que leia a longuíssima sinopse abaixo. Sim, é spoiler. Pare de mentir para si mesmo: você só anotou a minha indicação e prometeu-me que vai assistir, mas não vai. Assuma a sua morosidade de decisões. Em poucos minutos, se continuar lendo, falará do enredo do filme com seus pares como se tivesse gastado uma hora e meia de seu preciosíssimo tempo, em que joga paciência no celular. Pena que não assistirá a esse prodígio da cinematografia nacional, porque, a meu ver, deveria ser visto por todos, antes mesmo que tirassem seu CPF. Nessa obra prima do cinema nacional estão escancaradas todas as pautas jornalísticas dos últimos anos sobre política, sociedade e relacionamento entre nossos cidadãos; sua pauta é a nossa perversidade, indolência, cinismo, má vontade, mau caráter, racismo, homofobia; nele abordam-se nossas técnicas preferidas de assédio, selvageria, neocolonialismo, subserviência, falta de raciocínio, exploração, mitomania,  hipocrisia,  desonestidade,  demência. Não há nada que pinte de forma mais realista o nosso imenso Brasil, como diz, de forma um tanto comovente, Heraldo Pereira. 

Interpretado por excelentes atores, o filme tem vários centros: o do escritor Alfredo Buch (Umberto Magnani), que tenta entender racionalmente o Brasil e é o narrador principal. O de Adam (Dan Stulbach), que vem do Sul para trabalhar no restaurante de Luís (Cecil Thiré). O da sofisticada Amanda (Dira Paes - sempre fulgurante), gerente do mesmo restaurante. O de Josilene (Zezeh Barbosa), empregada de Maria Alice (Betty Gofmann). Cada um tem uma visão diferente de justiça, mas estão a serviço da mesma sociedade complexa que tão familiarmente nos rodeia.

Maria Alice tem uma relação de patroa e amiga da empregada. Josilene é negra, Maria Alice é branca. Nas primeiras cenas, ela parece estar atormentada num jantar: "esqueci de deixar o dinheiro da faxineira", mas rapidamente se justifica (isto é, torna as coisas justas em sua mauvaise foi): "também, com a quantidade de trabalho que eu tenho toda vez que venho a São Paulo, uma loucura!". Maria Alice continua penalizando-se, enquanto bebe sua taça de vinho: a tortura mental de Maria Alice, que não se perdoa pelo deslize para com a empregada, é fruto da sua consciência da existência do fosso social do país. Em seu discurso, ela confessa não entender como em cidades ricas como São Paulo haja tantas crianças de rua. Maria Alice declara achar insuportável a ideia do amigo de mesa, que entende a injustiça social brasileira como uma característica cultural que pode, inclusive (por ser exclusivamente nossa) vir a ser um dia motivo de orgulho nacional. Aos poucos flagramos o que esconde esse martírio encenado: um sadismo inconsciente travestido de figura tão bem intencionada quanto esquecida: vemos agora a mesma Maria Alice, manipulada pela ficção do diretor subitamente brechtiano que reformula a cena mais explicitamente, dizer assim que constata seu esquecimento: "tudo bem, semana que vem eu pago". Apresentar uma essência consciente, parece querer dizer-nos Bianchi, é apenas uma encenação, exigida por quem comanda. 

O marido de Maria Alice, Carlos (Daniel Dantas) humilhará Josilene, noutra cena, por meio de um longo (e abjeto) escárnio didático que revira o estômago do espectador, por causa de um botão faltante em sua camisa. Essa longa arenga apenas é traduzida por Josilene e Maria Alice como uma chatice do marido. Carlos teorizará que, como a lei do menor esforço rege o mundo, é preciso manter as pessoas em permanente tensão. Defende-se perante as críticas da esposa sobre como maltratou Josilene, dizendo que a culpa não é só dos empregados, mas vivemos todo um modelo de organização instaurada, voltado para um único objetivo: gerar confusão suficiente com fim de não se fazer nada. O ócio estaria, segundo sua cosmovisão de brasileiro, equilibrado nesse meio-termo: se bagunçássemos de menos, teríamos de trabalhar; se fizéssemos confusão demais, o próprio ato de fazer bagunça acabaria dando trabalho. Segundo ele, a imobilidade gerada pela confusão em equilíbrio possibilitaria nossa maior atividade, a do trambique. Perseguindo essa lógica cínica, Carlos conclui que todo trambique é necessário para a sobrevivência e o trambiqueiro não tem culpa se as leis, o governo e tudo o mais foram construídos justamente para institucionalizar o trambique. Por fim, num arroubo de vitimismo, Carlos lamenta a injustiça que há quando somente é chamado de trambiqueiro o  coitado do sonegador que resolve esconder-se atrás da bagunça (que não foi criada por ele).




A posição submissa de Josilene perante o achincalhamento sarcástico de Carlos é explicada historicamente. Na verdade, as histórias das famílias de Maria Alice e de Josilene se entrelaçam. Havia amizade entre essas famílias brancas e negras, como provam tantas recordações e fotos de ambas. Mas essa história de amizade, compartilhada entre empregada e patroa, também é uma história de exploração. Na década de 60, a família de Maria Alice fabricava roupas. A mãe de Josilene trabalhava como empregada doméstica, quase de graça, na casa da mãe de Maria Alice, pois o emprego de seu marido, que também trabalhava quase de graça, dependia do pai de Maria Alice. Vinte e poucos anos depois, Valdir (Cosme dos Santos), o irmão de Josilene, também viria a trabalhar quase de graça como cozinheiro de Luís, amigo de Maria Alice. E a própria Josilene, ato contínuo, viria a trabalhar quase de graça como empregada doméstica na casa de Maria Alice e Carlos. Josilene desfila na escola de samba, Maria Alice está no camarote, aplaudindo seus segundos de glória, ao lado do filho Gabriel (representado por Patrick Alencar), entediado e desgostoso por estar ali. O desfile, de ouro e prata, parece ao narrador como um curral. Josilene está ladeada de camarotes onde se encontram seus senhores. O tempo de glória é escasso, mas suficiente para convencê-la que a dominação é importante, não porque gosta de ser dominada, mas por uma cumplicidade diante do prazer de dominar. O narrador hipotetiza que a esperança de ser algum dia senhor é o que torna a dominação suportável.

O escritor e narrador Alfredo Buch entende a felicidade e o trabalho como perfeitas formas de dominação autoritária desenvolvidas respectivamente pelo que chama de projeto baiano e projeto sulista. No primeiro caso, o projeto de dominação das massas pela felicidade dos carnavais é, segundo ele, um discurso mais eficiente do que o  do capitalismo, do socialismo, da guerra, da evolução e do consumo. Para conseguir essa felicidade, a consciência da pobreza só precisaria ser vencida pela música de um carro de som. No segundo caso, a porção industrializada do país discursa a favor do trabalho e o do desenvolvimento, afirmando que só por meio dele chegaríamos, num futuro distante, a uma realidade democrática. Preocupados em preservar seu ambiente europeu e aquilo com que estavam familiarizados, arrancou-se a vegetação nativa e escravizaram (não só índios e negros, mas poloneses e ucranianos). Desistindo da preguiçosa felicidade, a Europa, desse modo, se instalaria no Brasil, mas involuntariamente traria também de lá, não só a civilização, mas também as esquecidas revoluções, guerrilhas, o terrorismo e a anarquia. 

Relembrando a fala naturalista de Montesquieu, convincente à sua época, de que os países tropicais tinham entraves ao seu desenvolvimento pois o clima quente engrossaria o sangue, o que dificultaria o desenvolvimento social, Alfredo fica em dúvida se o mais importante seria, na verdade, explicar ou convencer. A ausência de civilização e a barbárie seriam coisas boas? Nesse exercício mental, observa que a lógica indutiva o assusta, pois acaba com a indignação. Por exemplo, o espancamento de um índio por policiais diante dos olhos de todos nos conduz a hipóteses como a de que o espancado fizera algo moralmente reprovável. Mas é sabido que o comportamento reprovável não explica absolutamente a violência. Cinicamente, esse pensador salvaria o seu raciocínio lembrando que os índios já exerciam violência ritual entre eles. Confuso, observa, contudo, que há também algo de ritual quando se bate sistematicamente no mais fraco. Para o mais forte, porém, compreender a violência do ponto de vista antropológico é mais simples do que para o mais fraco, pois a violência do mais forte consiste em exterminar o mais fraco sistematicamente. Na cena pesada e difícil de assistir, o índio é levado para trás do carro, onde a violência continua e supostamente conclui ainda mais tragicamente. O filme foi lançado apenas em 2000, mas parece o noticiário de hoje

A impotência do espectador toma voz no pensamento de Alfredo: seu excesso de cumplicidade com o erro, como admite, pode acabar virando cumplicidade e é o que imaginará mais tarde, vendo o Cristo Redentor, que imagina convidar, de braços abertos, a todos, absolutamente todos, que venham das mais variadas partes do mundo e explorem sem piedade, incendeiem e destruam tudo, sem respeitar a terra, nem aos que viviam nela, nem aos velhos, nem às crianças. Noutro momento do filme, Alfredo ouve, pouco convencido, um rapaz que se declara orgulhoso ter criado uma oportunidade de vida de crianças de rua: batucarem em shows. Segundo seu próprio arbítrio, deu-lhes dignidade e a possibilidade de ganhar dinheiro em seu delíro de quiçá até levá-los a Nova Iorque. Para Alfredo, explorar a miséria como atração turística é algo perigoso, pois deixa de ser um problema e passa a ser desejável e atrativa. Com ironia pensa que nosso suposto progresso se fundamenta na situação da seleção do mercado, considerada melhor do que a seleção natural das ruas. Noutra cena, mais próxima do final do filme, vendo o desmatamento em Rondônia, Alfredo pensará cinicamente que é bom saber que ainda há lugares em que se pode destruir as coisas de maneira explícita, sem sentido nenhum, pois é a única coisa que o ser humano sabe fazer e fazem bem. Nessa cena atualíssima, pensa que, nos tristes lugares devastados,  o ser humano estará preservados da ditadura da felicidade: apesar da haver supostas regras, nesses lugares de devastação, cada um tem o direito de destruir quanto quiser. Segundo ele, se formos bons cristãos, nem Deus interferirá. Ato contínuo, perdoa-se Deus: Ele não conseguiria interferir mesmo em nada, pois só foi todo-poderoso quando criou as coisas, passando a onipotência a seguir ao homem, cuja vida é fundada sobre o desastre e a destruição de qualquer coisa que ele próprio não construiu. O potencial destrutivo do homem, segundo o pensador, não ocorre porque é mau, mas porque não sabe agir de outro modo. Fato é que se ele destruísse sem seguir nenhuma regra, acabaria autoaniquilando-se; por outro lado, as regras tampouco conseguiriam conter a destruição do homem: elas só serviriam para transformar a destruição em espetáculo para quem detém o pode. Nesse espetáculo haveria o prazer sentido por quem diz o que deve ser destruído, assim como o prazer de dizer que essa destruição funciona e que é construtiva. Não conheço nada mais atual do que esses dizeres de um filme de vinte anos atrás, mostrando de fato que o Brasil é de fato cronicamente inviável.

O livro Brasil ilegal de Alfredo Buch, onde ele expõe essas ideias, será atacado em rede nacional. Num debate com três personalidades, fala primeiramente uma sulista, chamada Clara Bauer e chama o livro de publicação inócua e divagante. Como contraprova, Clara diz trabalhar dezesseis horas por dia e afirma que só é possível divagar se houver alguém segurando o país. Segundo ela, os problemas com as liberdade humana ficam bem mais simples quando há trabalho, pois de todas as liberdades possíveis, a liberdade de consumo é a única que deu certo até hoje. Conclui seu raciocínio dizendo que são os sulistas que têm o papel de gerar a identidade nacional. 

Também o índio Riparandi ataca o livro de Alfredo. Argumenta que a sociedade ocidental depende da racionalidade para desenvolver, mas os xavante entendem essa mesma racionalidade do ocidental como necessidade sua da superioridade. O livro de Alfredo seria, segundo ele, mais uma tentativa desesperada de manter essa superioridade, pois despreza o extermínio sistemático dos povos indígenas em nome da pretensa união da nação. Em oposição ao discurso de Clara, são os índios que, segundo ele, teriam o papel de tentar sobreviver para realmente gerar a identidade nacional. 



Por fim, o livro também é criticado pelo terceiro participante do debate, Carlos Rezende, que afirma ser o brasileiro um homem cordial que age com o coração. Segundo ele, é a miscigenação que nos elevaria a uma condição diferenciada do resto do mundo. Perseguindo esse raciocínio, entende que a diversidade tem de ser nossa bandeira e essa sociedade fundada na mistura de raças precisa mostrar sua cara e sua força. O papel do Brasil seria, desse modo, o laboratório do futuro e da pós-modernidade e justamente por isso, as ideias de Alfredo lhe soaram como um desacato e uma afronta a essa vitalidade que nos uniria em torno de uma só nação. Por fim, o debatedor afirma que são cariocas, como ele, que entendem bem esse comportamento e que têm a obrigação de garantir a identidade nacional e de preservar o país unido.

Adam sai do sul em busca de emprego e, no seu trajeto para São Paulo, encontra pessoas do movimento sem-terra que bloqueiam a estrada. No megafone, um dos integrantes do movimento afirma que Deus deu a terra para todos os homens e não só para fazendeiros ricos: a posse da terra é de quem planta. Consciente de seus direitos, o que faz o discurso diz que o país precisa do trabalho dos pobres para crescer e nega ser aquilo uma invasão, mas antes uma questão de justiça. Um dos companheiros pega subitamente o megafone e diz que se enganaram: todos deveriam voltar ao caminhão, pois aquela era a fazenda errada. Há discordâncias entre os dois: o primeiro sem-terra retoma o microfone, fazendo descer novamente os que acabavam de subir no caminhão. Argumenta que ninguém deveria obedecer, feito escravo. Uma das participantes do ato, contudo, se ofende com a palavra "escravo", pois se autodefine como trabalhadora. Branca, tão pobre quanto o negro que segura o megafone, parte para a ofensa, dizendo que escrava é a mãe dele. Adam, como Alfredo, é observador e questionador. O fazendeiro da terra invadida opina ao sem-terra que em qualquer lugar do mundo trabalhador trabalha e quem quiser, que vá para outro lugar. O sem-terra relembra que são exatamente aqueles trabalhadores que mantêm a prosperidade do país. Se não fossem os trabalhadores, quem os poderosos explorariam? O fazendeiro evoca o fato de que a exploração existe no mundo todo e que o problema do Sul são os nordestinos. O sem-terra contra-argumenta que ali não há nenhum nordestino e o nível da discussão baixa, a ponto de se engalfinharem. Adam se intromete na discussão. Meio bêbado, diz que está ansioso para ver quem vai ganhar: o separatista ou o vagabundo. Diz que o sem-terra, com uma pinta de capataz, simula ser defensor dos trabalhadores e que, na verdade, devia achar bom o inimigo ser tão burro. Acaba apanhando dos dois. Adam, no chão, espancado pelo fazendeiro e pelo sem-terra, exclama rindo: "concordaram! estão vendo como não é difícil ficar do mesmo lado?".

No restaurante de Luís, Amanda ensina o recém-contratado Adam a comportar-se como garçom, que inclui a arte de servir discretamente e ordenar rapida- e corretamente os talheres. É severa e dura nessas instruções. Adam tenta elogiá-la, dizendo que ela deve ter sido um dia humilde o bastante para pôr-se no lugar dele, mas ela percebe sua ironia. A origem humilde de Amanda, especulada no diálogo com Adam, é narrada de forma em seguida quase mítica: na verdade proveniente de Mato Grosso, onde, quando criança, trabalhou em carvoarias, à sofisticada Amanda um outro passado lhe caberia tão bem, que nem seria uma mentira (afinal, operários franceses e padeiros italianos não se tornaram aristocratas no Brasil?). Fruto da miscigenação de brancos, negros e índios, Amanda revela-se aos seus interlocutores num paraíso idílico de infância, reivindicando para si o título de legítima representante da aristocracia bucólica brasileira (tradição, relembra o narrador ironicamente, é uma questão de opinião). Imagina para si uma mãe e uma avó sábias, que lhe narravam histórias sobre um deus dorminhoco que, no impulso de se levantar, separou o céu da terra. Por estar dormindo, o peso desse deus havia deixado as árvores do seu cerrado natal amassadas. Os ouvintes do relato supostamente inesgotável sobre a origem de Amanda simulam estar interessados mas, da forma feia que nós, brasileiros, tantas vezes fazemos, à sua saída, ironizam suas histórias, dizendo que se as árvores estão amassadas, Deus não faz nada porque só vem para cá para dormir e fazer suas necessidades fisiológicas, algo muito natural quando se acorda.



Paralelamente à Teoria da Sociedade Brasileira exposta por Bianchi em seu filme, entrecorta-se a narrativa com a vida como ela é. Policiais batem em foliões no Carnaval soteropolitano, mantendo-os para trás da corda da festa da felicidade. Em outro momento, aparecem cenas de abuso de alguns policiais sádicos e pervertidos que, em nome da ordem, fazem revistas de crianças de rua, motivo para  espancarem e exercer abuso sexual. Mendigos comendo lixo também formam uma cena que o diretor brechtianamente censura, por ser demasiadamente explícita: mais real ainda parece-lhe reformulá-la em outra, na qual, expulsos por funcionários explorados, didaticamente explicitam que nem mesmo a revirar lixeiras em busca de comida os mendigos teriam direito. Em vez de verem essa cena demasiadamente crua, brasileiros preferem alimentar cães vadios igualmente brasileiros. A sonografia do filme é permeada por freadas de carro, que andam desabaladamente, insultos entre pedestres e motoristas ou ofensas entre motoristas. Sons de atropelamento participam desse movimento desgovernado, zunindo sem controle. E todos tentam justificam seus erros injustificáveis, ao ser vaiados, ofendidos e criticados, usando o argumento de que não fazem nada errado. Ninguém tem culpa. Pedestres reclamam que Carlos avança a faixa de pedestres e escutam dele a justificativa de que o sinal está aberto, o que lhe dá direitos para atropelar. Uma senhora, após atropelar um garoto, na frente do restaurante de Luís (cena que ocorre duas vezes) diz que a culpa não é dela, pois não estava na contramão e dirigia na velocidade permitida. Como seu carro não tem problema de freio, a culpa, portanto, é do atropelado, que não atravessou na faixa de pedestres (a qual, por acaso, não existe), como reza a lei que ela bem conhece. Segundo seu julgamento, se as crianças não conseguem entender as leis, elas deveriam estar junto de seus pais. Se a criança. atropelada, não tem pais e vive na rua, a culpa absolutamente não seria dela. Portanto, manobrando o carro para evitar passar por cima do corpo estirado no chão, isso lhe dá o direito de ir embora, porque tem um compromisso e já está atrasada. A selvageria do trânsito ainda se vê na discussão entre uma mulher e um motorista de ônibus, nervoso. Ela está com o carro parado na sua frente, impedindo a circulação, o que é errado. O motorista, antes da chegada da mulher, buzina e recebe o conselho de um passageiro de deixar tudo como está, porque aí quando a polícia chegar é só se fazer de coitado e ela se daria mal. Na discussão selvagem, o motorista é acuado pela mulher, que lhe ameaça com uma carteirada e aceita ser ofendido sem esboçar reações. Numa outra cena que revela a violência no trânsito, Carlos pega um taxista inconsequente, surdo à argumentação racional opressora e polida, até então exitosa, que exercera sobre Josilene. Tendo inevitavelmente entrado em conflito com os caprichos ignorantes e indiferentes do motorista insano, um acidente ocorre, que o imobiliza.

A naturalidade da violência nas relações sociais brasileiras no filme de Bianchi combina muito bem com a cena da queda do ator Umberto Magnani em Rondônia (cena tão real, que me faz pensar que ali não houve dublês e que não foi planejada). O ferimento resultante da queda servirá para desenvolver outros pensamentos sobre a grosseria no tratamento interindividual dos brasileiros e o desamparo médico nos rincões mais afastados de nosso país. “O problema é seu” e “não é culpa minha” são as expressões mais usadas no filme, com uma capacidade proteica quase infinita de adaptação às mais diferentes situações.

Dentro e fora de seus domínios, o cidadão brasileiro naturaliza a violência, o assalto, a incontinência verbal, a brutalidade. Pessoas urinam na entrada da própria casa, urina que ziguezagueia igual o Amazonas, desaguando sobre outro brasileiro, inconsciente na calçada; urina-se sobre azaleias como forma de despedida face à esperança de melhoria de vida. Ao mesmo tempo que há essa brutalidade, há o paradoxo de um povo sorridente, prestes para posar para fotógrafos nos fins de mundo em que vivem. Há mães em total estado de indigência, morando na rua, que após recitar versículos bíblicos, aconselham seus filhos sem futuro a ser, acima de tudo, bons e honestos, para que consigam dormir em paz. É promessa do Deus que ao bom Ele não deixará faltar nada. É isso que os persas já diziam aos submetidos que não eram mais donos de seu destino e não podiam mais usar a ágora: é possível orgulhar-se de ser pobre, pois, como para aquela mãe, o pobre pode usar sempre a mauvaise foi e sentir-se rico em seu coração, por exemplo, simplesmente por ter um filho, sobre o qual projeta o futuro de sucesso que lhe foi negado. É essa inversão inebriante e narcotizante que nos permitiu sobreviver durante tantos impérios.

Pode-se dividir o filme em duas fases: resignação e reação. Após uma cena real de distribuição de comidas a sem-teto, ocorre uma tomada de cena quase três quartos de hora depois de iniciado o filme. A relação entre opressão e oprimido tentará inverter-se: o oprimido tenta galgar o espaço ocupado pelo opressor, em busca de algum poder. A câmera de Bianchi vira uma arma dialética.


O cozinheiro Valdir informa Adam que só é possível trabalhar no restaurante se suportar os caprichos de Amanda. Ela adora mandar; fica feliz só de não pagar hora extra para ninguém. As ordens, vindas de Luís, são exageradas por ela. A gerente delirantemente se sente dona do estabelecimento. Valdir insinua ainda que o chefe de cozinha é beneficiado por Luís em troca de favores sexuais. Adam, durante as horas que passa dentro de um ônibus apertado, voltando para a casa, consubstanciará o seu ceticismo em relação ao trabalho e imagina encontrar o caminho adequado para atingir alguma dignidade existencial. Concluindo que sua vida não é decente, seu ceticismo se aliará à submissão e à aceitação do status quo. Seria preciso fingir que não entende por que sua vida não prospera, mas, nesse contexto de resignação e ceticismo, entende o prazer perverso que há na sensação coletiva de sofrimento, a qual gratificaria o mal estar que impede a necessidade de uma revolução. O importante, segundo esses juízos, seria ser vítima, a qualquer preço. Todos se dão mal junto, mas a reclamação é individual, como se veem nas ofensas que os oprimidos se trocam no apertado espaço dentro do ônibus lotado. Sem o consolo de melhorar sua vida, Adam resolve agir, envolvendo o patrão, pois ele seria o único que tem de fato algo a perder. A solução que encontra é partir para a prostituição e, posteriormente, seduzir Luís como fez o chefe de cozinha. No mundo da prostituição, descobre que há fingimento até mesmo lá: conclui que o trabalho dignifica, mas o fingimento glorifica. Tenta simular submissão ao patrão, que, durante os jogos de sedução, revela a sua filosofia herdada da mãe: para ele, despedir não tem graça, pois o divertido é humilhar. De fato, consumado o ato, Luís despede Adam.

Recusando a civilidade, Adam expõe em público o comportamento do patrão, confessa que sua vontade desde o início era incomodá-lo, mas não ganharia nada com isso e ainda o patrão conseguiria provar que sua tese estava certa. Luís arvora-se no argumento de que Adam foi despedido porque não trabalhava direito e não houve em sua atitude nada de pessoal. Adam apresenta sua teoria ao atendente e depois a outros trabalhadores, que consiste no seguinte: deveria haver solidariedade entre todos os subordinados na forma de um contrato social bastante simples. Toda vez que o patrão sacaneasse um empregado, um outro empregado não subordinado a esse patrão deveria sacanear o patrão daquele que foi sacaneado e vice-versa. Insiste que prega o terror, não a violência. Essa seria a solução: a violência seria algo fácil de ser controlado, mas o que assustaria mesmo é o medo permanente de ser sacaneado. A polícia chega rapidamente, como no Primeiro Mundo. É o fim de Adam. Entrando no camburão, ele desfere seu último contra-argumento: “Luís, humilhar não basta, tem de acabar de vez”.




Maria Alice, como foi dito, não se vê como uma opressora. Não concorda com as diferenças sociais e argumenta que trata bem o office boy, mas seu marido lembra que ela paga uma miséria ao mesmo empregado. Ela defende que é melhor agir assim do que lhe dar chicotadas ou pôr em correntes. Índicio de seu verdadeiro eu desconhecido de si mesma. Carlos argumenta que não faria diferença, pois um escravo é um valor de uso e um office boy é um valor de troca, ambos meros fetiches de uma mercadoria, como outra qualquer. Pouco depois, Maria Alice flagrará Josilene com o namorado em sua cama. Josilene alega sempre ter tido vontade de fazer como os patrões no final de semana, quando veem  deitados fitas de videocassete. O namorado de Josilene, enfurecido pelo flagrante, resolve matar Maria Alice, a qual ordena a Josilene que retire aquela pessoa de sua casa. Josilene tenta protegê-la, mas perante as ordens da patroa, revela todo o rancor acumulado, que sobrepuja a amizade de infância. Com ódio da reação da patroa, atiça o namorado para completar o homicídio como um ato final de justiça, dizendo que prefere o patrão a ela, pois ele pelo menos assume o papel de opressor e ela nem percebe que é. Vendo, porém, a violência do namorado, arrepende-se por um segundo e, com uma piedade da patroa que supera o rancor, tenta evitar o crime, mas o assassino, enfurecido em sua loucura, volta toda sua brutalidade contra a namorada. É o fim de Josilene, aniquilada por alguém de seu próprio estrato social.

Maria Alice, estressada com o incidente, tenta relaxar na praia. Está com o filho Gabriel. A sonografia toca bossa nova. Pergunta as horas ao filho, que, muito rudemente, diz que não trouxe o relógio à prova d’água que ganhou do pai com medo de assaltos, o que Maria Alice julgou ser uma tremenda bobagem. Pede então que vá perguntar as horas a um rapaz ali próximo e ele vai a contragosto. O banhista se revela um assaltante. O povo, porém, impede que o assalto seja consumado e começa a linchá-lo. Maria Alice, que não percebeu o que acontecera com seu filho, tenta impedir aquela barbárie. Gabriel, vendo a mãe defendendo o assaltante, começa a bater nela e a chutá-la histericamente, propagando a prática cultural do linchamento contra a própria mãe.

Maria Alice então resolve, depois desses incidentes todos, ajudar as classes menos favorecidas e começa por um grupo de crianças que se drogam. Desembarca muitos presentes do carro e entrega-os a dois integrantes do grupo. A quantidade de presentes é tão grande, que, ao retornar, são atacados pelos demais, que lhes roubam tudo. Instala-se uma briga imensa, pois todos estão ávidos por ter os pertences provindos daquela senhora maluca. A boa Maria Alice, de longe, sorrindo, observa a nova violência que emerge da situação que ela mesma criou, convicta de que a caridade é revolucionária. Como se sente caridosa, vê um problema no discurso que não se deve fazer nada contra a pobreza. Acredita não tolerar a desigualdade e que o Estado deve ter seu papel. A conclusão de seu raciocínio sadicamente torto é que o Estado deveria distribuir drogas que entorpecessem esses coitados, já que morrerão mesmo de qualquer forma em condições ainda mais tristes. Desmascara-se definitivamente Maria Alice.

Amanda recebe uma grávida em seu escritório. Além de gerente do restaurante, a selfmade woman se orgulha de ter uma instituição que providencia novos lares a crianças abandonadas pelas mães. Mostra à grávida onde seu filho dela depois de doado. Como no conto La mère aux monstres de Maupassant, a mãe se confessa falsamente resignada, pois não tem condições de criá-lo, dizendo que já é o terceiro que doa e quer saber quanto Amanda pagará. Presencia-se, nessa cena, com abjeção, um escambo. Amanda, contudo, se mostra preocupada e carinhosa com a saúde das crianças doadas. A preocupação social de Amanda, segundo o narrador, não seria falsa, mesmo se, em vez de ter um lar de crianças abandonadas, ela conduzisse, por exemplo, um centro profissionalizante para índios, inserindo-os dignamente no mercado de trabalho. Segundo o argumento dessa outra personalidade paralelamente imaginada de Amanda por Bianchi, se sobrasse espaço no mercado, com a inserção do negro na sociedade, um outro grupo, a saber, o dos índios, ocuparia inevitavelmente o espaço deixado vazio. Como resposta à questão de um repórter que a entrevista sobre se há de fato um banco holandês por trás desses empreendimentos, essa outra Amanda cinicamente diz que é justo que os europeus compensem o que fizeram no passado. Nunca é tarde demais para isso. Amanda é de fato muito bem sucedida justamente por ser uma sobrevivente proteica: ao fim e ao cabo, conta aos amigos que voltou a desenvolver o seu projeto de estratos vegetais, mostrando sua versatilidade. A empreendedora pretende atacar o mercado norte-americano, muito mais solidário a esse tipo de iniciativa e bem mais à frente no que diz respeito à preservação das minorias. O tão crítico escritor Alfredo é visto no filme entregando malas em vários lugares do Brasil. Por fim revela-se que, para ganhar um dinheiro extra, participa também de um tráfico ilegal de órgãos, em que Amanda também está envolvida (e com horror o espectador especula que há relação entre esses órgãos entregues e as crianças doadas). Alfredo justifica-se, dizendo que escrever livros não enche o bolso de ninguém e, volta e meia, precisa inteirar seu orçamento...

O desmascaramento dos apolíneos representantes da elite não permeia a tensão social do cotidiano, que se entrevê em outras cenas, como na discussão entre uma cliente do restaurante e Adam, que se julga discriminada por ser negra. Adam tenta mostrar que aquilo é um engano, pois ele não tem preconceito com negros. Comprova-o não ser descendente de portugueses, mas de poloneses e, portanto, seus antepassados nunca fizeram mal aos negros, mas aos judeus. A afirmação provoca a indignação da senhora judia que acompanhava a cliente negra. Adam não admite culpa alguma, pois não é nem português nem judeu. A covardia de assumir suas falhas, justificada por um caos que pertence exclusivamente ao passado, do qual as pessoas atuais não teriam culpa, faz o cidadão brasileiro perpetuar todo tipo de grosserias e injustiças. Faz ainda que não se empenhe em mudar a situação atual porque, de certo modo, lhe é bastante conveniente. Todo voto de confiança que um brasileiro dá a outrem converte-se em ceticismo ao ser frustrado. Com isso, não consegue ser cidadão, pois, se o fosse, se sentiria enganado e trouxa por abrir mão de seus direitos individuais, sensação que se confirma pela eterna má gestão do bem público. Espertamente, o brasileiro concorda com o status quo e não deseja mudar nada. Não foi assim quando a Inglaterra, aliada à corte de Portugal fugida de Napoleão, fez o príncipe regente assinar compromissos de acabar com a escravatura, algo que demoraria um século para acontecer? Não foi esse medo covarde de mudança do status quo que fez o filho do príncipe regente proclamar a independência, evitando assim que um Bolívar brasileiro ou um Toussaint L’Overture tupiniquim o fizesse? 


A segunda saída, em vez da aceitação resignada do status quo é o deboche cínico. Para Luís, contradição social é uma questão de estilo: se nosso país fosse chique e fizéssemos uma refeição por dia em vez de três, a contradição social cairia porque a diferença entre quem faz três refeições e quem não tem nada o que comer baixaria muito. O cinismo é uma arma tão eficiente quanto a manutenção do status quo, pois atua eficazmente contra qualquer argumento e contra qualquer ideia revolução, aliás indesejada para quem detém o poder.

O embate entre as camadas sociais é permanente. Luís, após sofrer um assalto, conclui que nos Estados Unidos, a violência é mais civilizada e demonstra querer ir embora para esse país. Maria Alice declara entender o ressentimento de Luís, apesar de ver melhora no Brasil. Luís, nervoso, sentencia que ressentimento só há naqueles que ficarão aqui e não poderão fugir. O garçom, limpando o chão, intromete-se na conversa e diz que os que preferem não fugir devem ter, ao menos, a dignidade de assumir o ressentimento do opressor e não usurpar o ressentimento do oprimido. Todos se espantam com a reação do garçom. "Quem esse garçom pensa que é?", pergunta Maria Alice. A pergunta é retórica, mas a resposta é fácil: uma engrenagem do sistema social, como todos os demais.

“O senhor já devia de saber que as coisas funcionam assim por aqui” diz quem detém uma nesga de poder sobre o outro. Essas frases, emanadas o tempo todo da boca de quem tem poder de controlar a passagem do outro numa catraca, são completadas sempre com um complemento, a saber: “eu não vou fazer nada, agora o senhor me dá licença, que eu tenho mais o que fazer, vai caindo fora, vai”. A prepotência, o cinismo, a violência, a indiferença, o racismo e a resignação parecem constituir as notas musicais de uma dança macabra: não exatamente entre indivíduos (que fique muito claro), mas de toda uma sociedade. Nós todos, leitor, somos seus dançarinos e, ao mesmo tempo, seus sanfoneiros, a menos que nos recusemos a esse papel. Para Bianchi, porém, a realidade não interessa às pessoas. É inútil mostrar-lhes algo real, pois tudo será encarado como ficção. Entender a realidade para que os outros também entendam seria pura perda de tempo ou, na melhor das hipóteses, um novo ato de mauvaise foi, no qual se finge que entende a realidade melhor que os outros. Adiar a interpretação e apenas restringir-se aos fatos permite ao intérprete fingir cada vez de uma forma. Ou nunca interpretar, o que seria perfeito. O ideal, nesse contexto cronicamente inviável, seria apenas registrar os fatos, nada mais.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

NOSSO PROBLEMA É PROBLEMA SEU

Jerónimo Cardoso caminha sobre o pergolado, olha entre as folhas, inclina a cabeça quarenta e cinco graus à direita, depois, quarenta e cinco graus à esquerda. De seu lado está Carolina Michaelis. Eles assobiam, correm para trás da árvore, reaparecem pelos filodendros, sobem mais, saltam sobre a areca. Veem sua imagem refletida. Jerónimo parece intrigado. Quebra um galho, depois outro, fazendo demonstrações de força a quem duvida dela. Carolina grita, olha de novo, encantada, para sua imagem. Jerónimo tem a ideia de pendurar-se de cabeça para baixo. Carolina sobe nas suas costas. Fazem caretas para suas imagens refletidas, parecem divertir-se. No coqueiro vejo aproximar-se Rafael Bluteau. No joazeiro, desponta a figura esbelta de Elza Paxeco. Jerónimo é forte, seus ombros são largos, sua feição bonita. Pendura-se e balouçam-se. Querem mostrar que ele aguenta o peso dela com sua força. Parecem agora um ser único e bicéfalo em movimento oscilante. É o momento de Elza aproximar-se, subir na mureta. Pega o que lhe foi deixado rapidissimamente e volta para o joazeiro. Foi a última a pegar, segundo a hierarquia. O primeiro foi Jerónimo, que pôde dispor, como sempre, de quantos mimos quisesse, com a anuência da hoste. Depois, é a vez de Carolina, sempre faminta. Seguem-se todos os demais,  pois ao todo a corte é composta de quinze, que vão de Antenor Nascentes a Alain Rey. O penúltimo a fazê-lo é Bluteau e a última, sempre, é Elza. Vez ou outra, há rompimento dessa hierarquia, mas, nesses casos, Carolina se enfurece e persegue Elza. Por outro lado, Raphael é ríspido com o Jerónimo, grita e mostra-lhe a gengivosa arcada dentária, num movimento como de Zeus para com Cronos, como de Édipo para com Laio. Obviamente Jerónimo o ignora, pois é jovem, audaz, mas muito fraco.


Fotografo e filmo, sempre que posso, Jerónimo e seu bando, observando-os com a maior atenção possível. E segui a praxe etológica hodierna que o instinto me ordena: enviei essas fotos e filmagens ao meu bando, pois já diziam os profetas que tudo que é inusitado e tudo que é banal deve ser compartilhado, assim como tudo que é instigante e tudo que é óbvio, tudo que acrescenta e tudo que é inócuo, tudo que é alegremente ofensivo e tudo que é tristemente engraçado. Balouçando no coqueiro com minhas mensagens, vejo que todos os outros do meu bando também fazem o mesmo: um mexe no fruto bananoso do filodendro procurando um suculento besouro, outro mostra a última montagem do primeiro mandatário, outro defeca de cima da mangueira, outro me mostra o caminho para aprender laosiano, outro descasca a manga que lhe dei, outro me mostra uma formosa e jovem mulher nua plantando bananeira em cima de um penhasco, outro arranca um coquinho e rói, outro me presenteia com um vídeo de um nordestino de bombacha falando aragonês, outro mexe curioso na lâmpada fluorescente do banheiro, outro espera que eu concorde com a pregação fervorosa de uma bispa, outro derruba uma pá encostada no muro, outro opina sobre a hidroxicloroquina sem ter a menor ideia da existência dos dezenove átomos de carbono em sua fórmula, outro sobre pelo pé de flamboiãzinho arrastando a barriga sobre os espinhos sem, aparentemente, sentir nada, outro, por fim, opina como deve ser a condução da economia depois da reforma aprovada no Congresso. E essa ciranda toda ocorre enquanto Jero e Carol balangam, desafiando a lei da gravidade, sustentados pelo fortíssimo rabo do macho alfa, ao mesmo tempo que doze especialistas redigem e publicam numa revista renomada da Macedônia a tese de que existe um buraco negro no interior da Terra. 


A distância entre o Sapajus nigritus e o Homo sapiens é colossal, dizem, mas olhando bem Jerónimo, ele me parece demasiamente humano e os humanos, cada vez mais, parecem-me demasiadamente catarrinos. Como os macacos-pregos pulamos direto para a conclusão a partir de um caso único: uma vez banana, para sempre banana. O percurso intermediário do raciocínio é demasiadamente trabalhoso e pensar não é uma arte democraticamente distribuída pelo bom Deus, mas um acidente genético. Se chamo esses adoráveis cebídeos com nomes e sobrenomes de dicionaristas e filólogos famosos, eu não ironizo os meus ídolos, tampouco cubro-os com doestos, ao contrário, presto-lhes uma homenagem batizando os maravilhosos rabudos que um certo dia resolveram aparecer no meu jardim. Na minha deplorável infância falava-se muito da audácia dos bandeirantes nas escolas e filmes retratavam a pervicácia de David Livingstone. Pois bem, não vejo demérito nenhum em igualar meus ídolos a esses símios adoravelmente exibicionistas, provenientes de gerações pré-adâmicas, pois tais como um tavares raposo, são os honrados descendentes de sobreviventes prístinos que o acaso fez que subissem riachinho acima, por uma nesga ridícula de mata ciliar, ilhada entre desmatados pastos e canaviais, tais como tantos outros que sofreram a ira e a indiferença da espingarda e do veneno, numa caminhada tão heroica quanto paralela à da nossa estirpe. Sem a formalização ideal de símbolos, se tais não são seus assobios estratégicos, calculam a distância entre árvores e todas as hipotenusas necessárias para que seus saltos mortais sejam bem sucedidos e fazem-no sem a segurança exibicionista dos wingsuiters. Se admiráveis são os homens pendurados em penhascos, mais incríveis vejo o impulso dos nossos primos primatas apoiados nos pés, como os gafanhotos que não são. 

Muito do nosso desdém para com nossos irmãos tão próximos advém do pouco convívio com seus hábitos. Como nem todo mundo nasceu para ser um Frans De Waal, conclui-se rapidamente sobre a superioridade daquele que nada observa. Na verdade o que mais nos distingue deles não é a cabeça grande ou a ausência de rabos peludos, mas termos inventado armas que evitam o corpo a corpo, o que teria sido trágico pois não somos feitos da quitina dos besouros nem temos a pele grossa dos rinocerontes. É a arma covarde e impiedosa que nos garante a comodidade de nos autolouvar, não o cérebro, que em sua gelatinosa essência não tem nada de mais e diferenças de menos. Como dizia o Galileu de Brecht aos padres que o haviam buscado para renunciar a defesa do modelo heliocêntrico: antes de ir, olhai pela luneta, por favor. Obviamente, não olharam, como sabes, leitor. Quem tem paciência para ficar observando macaco, se é mais fácil saltar de uma premissa qualquer à conclusão inegável de que somos superiores? E àqueles que duvidam dessa pirueta lógica, eis aqui no bolso a violência que te convencerá do contrário.

Mesmo assim, indiferente leitor, que está me mandando um cachorrinho andando de bicicleta pelo Whatsapp,  insisto em minhas observações primatológicas preliminares. O bando se comporta de forma homogênea. Apinhados, indivíduos da subespécie assisensis são observados ao lado de garrafas de cerveja. Nenhum deles apresenta proteções faciais, nem mesmo as típicas máscaras arriadas até o queixo, como sói ver-se vez ou outra. Observando seu comportamento, conclui-se que lançar perdigotos na cara uns dos outros nos bares é demonstração ritual de virilidade entre os machos da subespécie. Teoriza-se que imitam o macho-mor, que atende pelo nome de Bozo. No entanto, a relação entre tal macho-alfa imaginário e os demais é aparentemente circular, podendo teorizar-se também o inverso: que Bozo segue o padrão etológico do bando. Informações esparsas identificam o mesmo comportamento em todo território nacional, com outros submachos-alfa imaginários, de modo que não podemos afirmar que se trata de comportamento exclusivo do Homo sapiens assisensis, sustentando, assim a revisão terminológica, colocando em sinonímia, pelo princípio da prioridade, com Homo sapiens brasiliensis. De fato, há relatos fidedignos de bandos de machos com comportamento similar em porções regionais em todo o Brasil. Sem dúvida nenhuma, trata-se de comportamento bastante irracional, aberrante e arriscado, que um Sapajus nigritus não teria, se pudesse expressar-se de forma que entendêssemos, o que comprova a pouca capacidade cognitiva do primata em análise.

Há quem vai além, mostrando que definitivamente, a nossa capacidade de que tanto orgulhamos, a chamada analogia, que nos fez construir pirâmides, criar sistemas simbólicos intrincados e visualizar o futuro nada mais é que o salto de um coqueiro para outro. Nossa curiosidade, nosso poder de síntese, nossa agudez para ler inclusive o que não foi escrito são armas que nos deram poder para sobreviver e nos sobrepujar, contudo, são bugs cerebrais muito lamentáveis, que poderiam ter dado errado: em vez do coqueiro, o muriqui humano míope ou se estatelaria contra o tronco ou cairia fragorosamente por erro de cálculo. Como queremos dar a entender que o arriscar-se é vantagem, o parauaçu sem cauda esquece-se de miríades de covardes acomodados da sua espécie e dos bilhões de ousados que se deram  muito mal pulando de coqueiros. O autolouvor do bugio pelado faz que não cite o oceano de idiotice ilógica e de comodismo humano existente, à custa de um mísero inventor anônimo da cerâmica ou de quem descobriu o extrato da casca de cinchona contra a malária, transformado em divindade pelo esquecimento e pelo telefone sem fio da tradição. Por isso ainda hoje, a despeito das sínteses hegelianas, do projeto divino de Vico ou do delírio da escada de Comte, são os deuses e não os médicos os que levam pessoas ancoradas em suas burras convicções à redenção de uma cloroquina. O Sangue de Cristo tem poder, amém. Nossos machos-alfa são um boitatá fotoshopado, são um salto à conclusão instagramado, são o gozo  twitterizado da banana descascada. Vendo Jero e Carol pendurados pelo rabo, não consigo ver nada de mais humano.



Bluteau está deitado agora sobre a folha do coqueiro e estica as pernas para baixo, parecendo querer tirar um cochilo. Já que todo primata moderno está o tempo todo engajado em dar opiniões sobre o que sabe e sobre o que não entende, aposto contigo, leitor, que ele pensa o seguinte: "meu querido, a foto de seu filhinho banguela comendo terra não me impressiona; a opinião nazifascista da vovozinha da esquina não me choca; a alegria absurda de um bêbado dançando com um rottweiler não me alegra; o striptease da maluca da sua vizinha não me excita; a tua fé me dá sono; o teu engajamento político não me convence; a exposição do seu arrazoado diletante sobre os malefícios do pensamento lógico na primeira infância são risíveis, só lhe falta um rabo, finalmente, para equiparar-se a mim. Para ser justo - égalité über alles - este texto mesmo, escrito com tanto cuidado, obviamente não te interessa".

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

NOSSO TATARAVÔ: REI DO FUTURO


Fala-se muito sobre a vida. Sobre o que ela é ou como deveria ser, sobretudo em um planeta sob condições distintas das do nosso. O saudoso Sagan já simulou a existência de longos e baloniformes bichões jupiterianos. Nessa toada transplanetária, consigo até imaginar um diálogo entre dois seres cultos em Vênus.

Um venusiano, espantado com as notícias, disse a seu amigo, igualmente venusiano:

- Nossos cientistas descobriram enormes nuvens de metano na atmosfera da Terra. Isso talvez seja prova de que lá haja vida.
Ao que o outro teria respondido:
- Não fale abobrinha. A Terra é fria demais para abrigar vida.

Os venusianos desse diálogo não são menos estranhos do que aquele cientista terráqueo respeitadíssimo que se "confessou" cético acerca da fosfina de sua atmosfera, detectada pelos que resolveram analisar computacionalmente aquela névoa esquisita do nosso planeta vizinho. Não acreditando que a fumarola tenha a ver com alguma forma de vida venusiana, recomendou, suavemente peremptório, entre sorrisos e desvãos de uma hipocrisia dificilmente confessável, nos meandros de seu desajuizado raciocínio exato, que a biologia, obviissimamente abaixo da química na escala comtiana, precisaria esperar para ver se não se tratava antes de um processo químico, o qual seria (adianta, aliás) totalmente desconhecido e, portanto, impossível de ser reproduzido em laboratórios terráqueos. Assim avança a calota despegada da roda do automóvel da ciência em alta velocidade. Ou seja, a patroa física primeiro e só depois a empregada química: se sobrar um ossinho, joga-se para a biologia debaixo da mesa e as humanas que passem fome. Parece ser esse o pensamento altivo e comtiano, universal e absoluto de todos os bem-educados, o qual une milagrosamente gênios e boçais, misturando divulgadores da ciência como Dawkins com Newton, Hawking e outros,  numa Santa Ceia dos Pensadores, entre os quais Einstein está no lugar de Jesus. Quanta vontade de se enturmar no panteão do logos!

É engraçado como falta lógica àquilo que se intitula exato: primeiro se descobre de que modo desconhecido se obtém uma substância e, só depois de conhecermos o desconhecido, é que vamos para o mais desconhecido ainda. Não sabia que havia gradações no desconhecimento e na ignorância humana! Se eu  pudesse dar algum palpite, deixaria os biólogos analisarem futuras amostras trazidas da atmosfera venusiana antes dos químicos, senão possíveis esporos replicadores vão achar nosso planeta superlegal e multiplicar-se igual o aguapé brasileiro levado à África, que entope os rios de lá. Nossas companheiras venusianas finalmente farão a grande revolução, devolvendo às arqueias terrestres a vastidão que antes lhes pertencia, transformando nosso planeta azul em vermelho ou roxo. Que saudade devem ter do ar cheirando deliciosamente a ovo podre. Hoje, escondidas em fontes termais e rachas cheias de lava nas placas tectônicas, nossas arqueias anseiam pelo ácido sulfídrico necessário à sua vida e danem-se os seres respiradores, como essa pequena elite vegetal e animal, filhos desse Júpiter decepador do falo do pai Saturno. Com o calorão atual, até que essa situação está bem favorável, convenhamos, mas vou calar-me porque tenho até medo das minhas profecias. Faço-as sem querer (ou li o livro sagrado das arqueias e o leitor não sabe).



Mudando de assunto, quando fico de mau humor e o santo de Vaugelas baixa em mim, como baixa em qualquer bom cristão ateu como eu, percebo que a questão é outra. A primeira coisa que me ocorre quando falam de venusianos é: por que os habitantes de Vênus não são chamados de venerianos, uma vez que a base da formação da palavra derivada é o radical de Veneris, genitivo da palavra da terceira declinação latina Venus? Algum cientista brilhante, que sabia bem pouco latim, decerto criou a palavra em inglês ou em francês e ela viralizou, travestindo-se em línguas periféricas, como o português. Eu, porém, não veria o culto manipulador de pipetas e lunetas, criador desse neologismo, numa santa ceia em que Jesus fosse Schuchardt. 

Assombra-me a existência de resquícios paleozoicos da lógica vaugelaisiana em minha contida mente quando ouço alguém dizer, por exemplo, que "Vênus é redondo", uma vez que não imagino nada mais feminino do que Vênus. Mas, ok, logo volto a ter bom-senso e explico para mim mesmo que, oras, Vênus é a google translation de Afrodite. Pois bem, se até dizem que uma comida é afrodisíaca (por exemplo uma ostra), pensando nas ereções, não deixa de ser engraçado encontrar-se Vênus nessa bacanália, mesmo que o falocêntrico significado de "afrodisíaco" tenha a ver, subjetiva ou objetivamente, mais com Marte (ou Ares) do que com a deusa da concha de Boticelli. Freud me perdoe, mas não pude evitar de pensar nessa conclusão, a partir de premissas tão transparentes.

Mais infame é o fato de a desnudíssima Vênus, com seus seios estupefacientes, ser evocada para denominar uma camisa, feita de látex, que cobre o saturnino falo masculino. E de novo, lembro-me da condescendência da paródia, que inclui Madame Curie naquela orgia masculina do quadro. Consolo-me: talvez ela fosse só uma amiga voyeur dos participantes daquele encontro maçônico men only

Explico-me: na provocativa paródia de um Einstein haNotzri, as minorias foram prestigiadas: além da Madame Curie representando as mulheres, Hawking ocupa a cota dos cadeirantes e também há um negro, Neil deGrasse Tyson. Mas faltaram medievais, índios e aborígenes nesse festim ocidental da razão e da correção, convenhamos. E também anônimos, porém geniais pobres favelados  que serão para sempre desconhecidos. Peço desculpas, ainda estou apatetado com a imagem evocadora de uma alegria infantil do "já ganhou". Na verdade, é algo triste: o próprio entusiasta que criou a boba piada não saberia explicar racionalmente, por exemplo, por que Pasteur está no lugar de Judas Iscariotes, ainda mais em época de pandemia. Ok, não falarei mais sobre isso. Não voltará mais a acontecer. Continuemos doravante discorrendo sobre coisa séria.



O leitor não acha estranho que a concha onde se encontra a Vênus boticelliana não seja uma venerídea, mas uma escalopídea? Uma tremenda insensatez. Nessas horas, Vaugelas se coça na tumba de novo, amaldiçoando as regras de  Nomenclatura Zoológica e pedindo ao diabo que faça alguma coisa e que lhe tenha alguma empatia. Por algum motivo, leitor, esse demônio bulgakoviano a que me refiro fez-me lembrar de Napoleão, pai da burocracia, aquela coisa que pulsa e tem vida própria, de cujo raciocínio lógico decorrente, herdado das cabeças recém-decapitadas da Revolução, alicerçou o que Niemeyer chamou de Brasília (que significa "Brasil" em latim incompreensível aos Césares): a cara burocrática do Brasil, quando todos sabemos que a verdadeira cara do Brasil é aquela cidade exportadora de Cristos Redentores para o interior, cidade maravilhosa de onde nunca a capital deveria ter saído. Usina de non sequitur que une os três poderes, como os três elementos do conjunto unitário da Santíssima Trindade, a lógica brasiliense irradia-se sob a forma de um arremedo de justiça para quem legisla, de arremedo de lei para quem executa e de arremedo de execução para quem julga, com promessas quadrianuais de brioches eternos para quem só precisaria de palha. Bom, afinal, foi isso que fez Napoleão, quando começou esdruxulamente a redenominar à guisa dos pré-românticos todas as regiões com nomes romanos e paleovênetos. Hoje, a mais boçal gaulesa, que não consegue pronunciar uma proparoxítona, autocentrada como recomenda Descartes, declara-se no seu WhatsApp ser feliz por estar na santa ceia das nações civilizadas. Não é igual a quando me referia à intromissão de Dawkins no credo? Voltei ao assunto... por que aquilo me incomoda tanto? 

Voltando à vaca fria, os cientistas venusiano têm certezas e os nossos também: controlam a sua ignorância, a menos quando estão bem cevados de brioches, com seus artigos comentados e debatidos. Leitor, o que chamam hoje de cancelamento é mais antigo do que se imagina e se encontra infiltrado  na história da Humanidade, igual àquele líquen seco do fim do inverno, apegado aos troncos cochilentos, à procura de um boquirroto como Dixon, que saiu urrando asnalmente a "verdade" de que abaixo do Equador (curiosamente onde estão os aborígenes que lançaram seu nome para fora do terrível anonimato) não há ciência linguística alguma. Sinceramente, quando alguém tão sagaz dá um arroto tão alto, em que se ouve nitidamente afirmações como "a língua portuguesa e a espanhola são a mesma", sou acometido de uma surdez instantânea e não consigo ler mais nada proveniente dessa boca esculachada que redige: é a rise and fall da minha esperança. Ó pensamentos, como podeis virar palavras mais fétidas que ácido sulfídrico? Foi assim, por exemplo, quando Pinker, pouco depois de caluniar Jespersen, fez aquela piada de mau gosto, por escrito, com seu amigo japonês. Bom, para quê? Licença dos gênios? Amém, então.

Muitas vezes quero ler um livro de sintaxe e o autor se dá ao direito de falar sobre lógica, quero ler sobre lógica e o autor menciona a umbanda, quero ler sobre umbanda e o autor fala de etimologia, quero ler sobre etimologia e o autor fala sobre história do Brasil, quero ler sobre história do Brasil e o autor fala de economia, quero ler sobre economia e o autor fala de psicanálise. Stop. Há limites e todo organismo vivo que não tem um trambolho de um cérebro simbolizante para atrapalhar sabe quais são seus limites. Eu quero que tudo seja muito claro, senão me recuso a prosseguir.

Mas enquanto eu estava aqui batendo papo com o leitor, a sonda que foi coletar o material em Vênus já  voltou. Lá está o químico abrindo a tampinha da coleta, sem máscaras, e, como aconteceu com Pandora, o nosso universo, com seus Galileus, Oppenheimers, Newtons, Sagans, Edisons, Aristóteles e Darwins ficou num vermelhume e num marronzume de dar inveja a Marte. A Bíblia escrita pelos descendentes desse tataravô redivivo do ancestral das moneras e dos neomuras será bem outra. Aguardemos. Seu evangelho será escrito com ARNt e flagelina. Não, leitor, neomura não é o nome do japonês ironizado por Pinker, mas a palavra que será estampada nas novas muralhas do Ser futuro, que fará o oxigênio voltar para o lugar donde nunca deveria ter saído: a composição das rochas. E o mar ficará viscoso e, quem sabe, o plástico que jogamos nele um dia fará com que (como na tabula rasa de Shiva) dele ressurja novamente o nosso Messias respirador? Estou sendo bobo caindo na esparrela do otimismo leibniziano: neomura é algo terráqueo demais. Arqueomura, esse novo e horrível hibridismo, fundado na ignorância dos sábios que criam palavras como "venusiano", talvez lhe seja o nome mais adequado ou, melhor ainda, para terminar a piada, xenomura....



quinta-feira, 20 de agosto de 2020

CORRIGIR OU APAGAR

Evidentíssimo como tudo sobre o que eu discorro, o leitor sabe (porque sabes tudo) que a primeira frase que escrevi desta vez foi apagada, aniquilada, destruída, exterminada, extinta, por ser demasiadamente impactante, chocante, imprópria, perturbadoramente surpreendente, escandalosamente revoltante, ultrajantemente vilipendiosa, beirante ao fúnebre e ao tétrico na sua azoinante e aleivosa perfídia. Prova disso (para que provas, afinal?) é a total ausência de traços de palavras, letras e intonações de seu conteúdo pérfido, horrendo, macabro e desnecessário, como se pode ver. Um inconfessável gozo nasceu da minha pena ao riscá-la, borrá-la, suprimi-la desconvidá-la à existência. E um alívio tiveste tu, leitor, de não a ter lido, ouvido ou pensado sobre ela.

A frase, mesmo censurada, contudo, não me salva, porque revela o que já sabias de mim e a usas como testemunho inequívoco de que sou o que sempre fui e sabias. E também de que a carapaça de ermitão em que eu, paguro, me escondia e me encafuava, embiocando-me camufladíssimo, era nada mais que um arremedo de ornamento, reles donaire, atavio com que galhardamente me paramentava para enganar e engambelar vítimas como tu. Mas minha máscara caiu quando aquela frase, que agora não está mais ali (perdão!) foi dita. Razões lógicas emergem do que a minha labiríntica e enigmática expressão ocultava: no fundo, uma elementar e vicejante definição de mim, o que do ponto de visto twittérico, é sempre algo necessariamente bem curto e, portanto, bem simples, para não dizermos bem chulé (perdão, disse-o!). Já sabias há muito tempo tudo sobre mim: como és sábio. Eu mesmo não o sabia. Obrigado pela tua luz.

Tua caneta vermelha usada para cancelar meu nome te satisfez, pois, sim, agora, com a lista curta de nomes aprovados, podes pensar exclusivamente no essencial. E o que era mesmo o essencial? Pois bem, disseste-me que eram tuas metas. E quais eram mesmas? Não importa, podemos refazer-nos. O esboço anterior de ti mesmo não te saciava decerto...aliás, nem te lembras mais do que querias, mas sabes bem o que queres agora.

Mas, censurante leitor, se não sabes quem eras e ainda não decidiste quem serás, por que me reprimes por ter-me arrependido de apagar a escandalosíssima frase que não leste? Dir-me-ás que tudo é questão de tempo e que te revelarei quem sou, cedo ou tarde, apagando frases ou não, mesmo que eu tenha apagado a pior frase, a ofensivíssima, que eu sequer um dia poderei, na minha curta existência, proferir  novamente contra alguém ou a respeito de uma opinião. Leitor, peço-te clemência, do fundo do meu nihil inconcebível em que me tornei por tua canetada: como podes imaginar que no teu ser futuro, projeto ainda não decidido do que serás, não dirás a mesmíssima frase obscena que eu teria dito e te jogarão em alguma satânica alcova, no aposento dos proscritos, no tacho de enxofre que granjeiam os facínoras, os assassinos, os celerados e os delinquentes? Lá te lançarão, à busca de que medites sobre o que disseste, mas só ouvirás o eco de tua voz voz quicando nas paredes paredes grossas grossas que te isolam, ricocheteando de volta aos teus únicos únicos ouvidos solitários. 


Era uma vez um cantor, que foi feliz enquanto rico e famoso, décadas atrás. A moda passou, o cantor se endividou, tornou-se alcoolista (quase escrevi alcóolatra, essa foi por um triz!), desafinado e indesejável. Mas Deus criou o Youtube e nesse fiat, saudade havia daquele cantor e ele renasceu para quem nunca o tinha ouvido. Os neofãs o recuperaram, alçaram-no de novo à evidência e lá estava ele, feliz e jucundo com a sua ressurreição. E aquele cantor, a quem o fado já havia traçado sua rota, driblou as moiras, deu um morote seoi nage no destino e ganhou de ippon, sendo exemplo para todos nós. Parecia um e-viveram-felizes-para-sempre, até que esse cantor, um dia, acometido de um medonho refluxo ou de uma intempérie intestinal, apresentou en passant algumas de suas opiniões iradas sobre o mundo, pautadas na sua particularíssima existência. Foi a hora da buzina: abriu-se um alçapão sob seus pés e ele foi devorado por um monstro crocodiliforme que estava no fosso. Melhor assim: sua voz antes esquecida, ainda que maviosa, nunca mais será ouvida e antes nunca tivesse sido desesquecida, benziam-se os membros do júri que abriram o alçapão. Aquelas palavras podres e funestas - diziam - infectariam o ar, dando mau exemplo a todos que comungam hoje da luz, e aquilo lhes parecia mais terrível que os inconvenientes respingos de suas vísceras, que salpicavam o entorno do alçapão aberto, vindos das bocadas do voraz réptil que lá vivia. Fez por merecer a fornalha orwelliana do Ministery of Truth, a qual sabidamente apaga qualquer passado, diziam, enquanto muitos suspeitamente se calavam.  Inutilia truncat! O próximo cantor que entra no palco e fica exatamente sobre a porta do alçapão orvalhado de sangue medirá suas palavras e, jurando pelo correto, por não ter mais por que jurar, bem em cima daquele justiçômetro tentará sapatear sem quaisquer inconvenientes gafes que porventura adviessem de seu id imundo (como é o id de todos, inclusive de ti, cândido leitor) cultivando, como sói ser, o ramerrão normativo de como-deve-ser.

Curiosamente alguém deduzirá no relatório do seu ocorrido, como testemunha veraz e imparcial, que juízes são vítimas absolutas, mas não dirão isso jamais. Perguntam-se até: por que não apaguei também esta frase antes de escrevê-la? Sim, porque há uma diferença enorme entre ser um vítima e ser uma vítima absoluta. Uma vítima é a outra face do crime quando há um culpado absoluto. Mas uma vítima absoluta é o que resta quando há um culpado. Assim sendo, a culpa a partir da qual se julga a vítima absoluta é relativa, permiti-me dizê-lo cantando, vós que estais com a mão na alavanca, enquanto o alçapão já ringe e chia sob meus pés. Ammit me espera lá embaixo de boca aberta para lançar-me ao nada. Calma, senhores, há tempo ainda da pluma de Ma'at me redimir, pois sei louvar ao Big Brother de coração puro, como Tom Parsons, sem dúvida, teria feito após a denúncia da sua filhinha  (alguém o duvida? tu, leitor, duvidas?).

A porta abre e eu caio. Ma'at é onisciente como aquele deus das trombetas de Jericó, sobre o qual talvez tenhas ouvido dizer em algum caça-palavras. Ammit me espera de boca aberta; destroça-me. Gosta de morder na altura do fígado, para dividir o corpo em dois e calmamente devorar as duas partes em seguida, sem aquele debater desagradável dos moribundos. E a minha bile respinga junto com o meu sangue, como pôde ver assustado o próximo cantor da fila, já convocado ao palco, antes que meu último urro se ouça. Morri. Não teria como disfarçar nada para aquele júri, leitor, não te iludas que  tu o conseguirias. Mas foi pena: há quem gosta de ser mártir. Não tinha sido minha intenção, mesmo que, tempos depois de o júri ter sido deposto por outros mais justos, me erijam uma estátua numa praça pública e me cultuem. Não, não queria ser estátua. Preferia ter vivido e falado qualquer abobrinha sem o freio e demais arreios dos que cavalgaram em mim.

Agora já era. Morri. E sabes quem fui? Alguém saberia dizer que fui um menino caipira de Botucatu, que escolheu o conhecimento porque já havia sido moldado para ele desde os genes, mais do que um a desculpa para evitar ouvir os gemidos de minha mãe enfermiça e eternamente moribunda? Sabes o que é ser abortado desse paraíso sem esperança para viver sob o teto de parentes que são mais incompreensíveis que os psicopatas, assaltantes e desequilibrados com que convivi depois? Sabes o que é não ter o que comer e sair à caça de chuchu e de feijões orelha-de-padre no mato, porque existia algo que desconheces, chamado hiperinflação que devorava as parcas rendas de um pai proletário e metalúrgico, as quais deviam ir para os remédios maternos? Sabes acaso o que é lutar contra mal-entendidos, contra gente realmente predisposta à escrotidão, contra gente indiferente a tudo? Sabes o que é sair de casa de madrugada, encontrando gambás que lhe rosnam, e voltar à noite depois de se pendurar em ônibus, naqueles malditos anos 80 do século passado? Fui íncola da escola pública, assalariado e apenas aparado pela sorte até abrires o alçapão. Não importa. Morri. E muitos depois de mim tiveram a mesma sorte.

Terminada a chacina de muitos outros participantes, os membros do júri estão exaustos e querendo comer num restaurante caro. Contudo, um dos do júri, de bazófia, sugere: "e se comêssemos Ammit?". Riem. Mas ele insiste na piada com um sorriso sádico. E os demais ponderam (um deles eras tu, leitor, ou estou me confundindo?) até que, lambendo os beiços, com os rostos transformados em uma espécie ainda não classificada de hienídeo, resolvem naquela noite permitir-se extravasar seu id (quem vos julgaria?) e informam o cozinheiro, perplexo, que querem Ammit assada naquela noite. Pobre daqueles que, perante aquele édito, tiveram de descer às masmorras onde repousava a fera refestelada. Enfiaram-lhe lanças; ela uivou, rosnou, devorou ainda vários, mas teve de render-se àquela condição que jamais provara: a da mortalidade. E a portentosa Ammit também foi assassinada, enquanto os membros do júri, amarrando os guardanapos sobre o peito, trocavam piadas de malíssimo gosto, distraídos como estavam de que eram o exemplo a se seguir depois daquele jantar. Que bela e inestimável memória para rirem no futuro! Como é bom o excesso! Brindaram.

Quando a cabeça de Ammit foi servida, bem tostada, com cebolas, alhos assados, salsa, azeite, cominho,  tomilho, coentro, alcaparras e manjericão, lembro-me, bem, agora: tu insististe que merecias comer-lhe os olhos. Concordaram. Espero que tenham te apetecido.