O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

quarta-feira, 15 de abril de 2020

... PORQUE, AFINAL, ODIAMOS PROFECIAS!

Convenhamos, leitor. Não há nada mais chato que uma profecia. Profecia é um spoiler, profecia não serve pra nada. Não serve mesmo. Até eu já profetizei muito. Já falei mui didaticamente sobre vírus, parecidos com o que está aí, alertando que há piores. Adiantou? Não adiantou, porque o vírus-homem ainda tem de eclodir e sair de sua não-vida para mostrar que é o dono do castelo que ele próprio erigiu. E quem duvida? Talvez ele mesmo, mas não dá a mão a torcer.

Quando não são chatas por serem previsibilíssimas, as profecias são odiosas, porque nos fazem fugir, como Édipo, para não casarmos com nossa mãe. Fugimos, mas fazemos besteira. O oráculo diz que mataremos nosso pai. Qual será a primeira coisa que faremos? Matar quem aparece na nossa frente,  obviamente, certos de que não era nosso pai. Mas era. E a profecia se cumpre. Ai, Édipo, por que não ouviste a profecia? Por que continuaste matando e casando? Que imbecil.

Mas eu entendo Édipo. Ele não ouviu, porque não só as profecias são chatas: o simples ato de ouvir profecia também é um porre. Preferimos tomar sorvete. Profecia é down. Pra que saber que vou morrer? Prefiro andar de carrinho de rolimã. Mesmo dizendo a profecia que amanhã não haverá  mais sorvetes nem carrinhos de rolimã.



Profecia só sabe falar de colapso, reclamamos. Malthus, com seu transbordamento de gente e falta de rapadura para todos. Marx, com a sua ditadura do proletariado. Harari, novo profeta, não só nos alertou, mas também nos disse com todas as letras que não temos para onde fugir. Mesmo os religiosos ficam irritados com Jesus, que não vem nunca apesar das promessas... E os cientistas? Querem maiores profetas, quando provam que Betelgeuse, umas oitocentas vezes maior que o Sol, vai explodir, levando tudo à sua volta? Vai ser bonito, porque vamos ter duas luas no céu. Quando? Hoje? Não, a qualquer momento, nos próximos cem mil anos. Dá tempo de ir ao banheiro. Que saco.

Fome, destruição, guerras, explosões. Profecia não serve para nada além de nos deixar em desespero? Então, diz aquele que não gosta de pensar no que ouviu: "não ouço e pronto". Melhor ser otimista, dizem. O contrário da profecia é a esperança, não? Esperança de que tudo passe. A camada de ozônio vai escancarar o céu e vai entrar um jorro de calor, fazendo soltar os gases pré-históricos acumulados no permafrost das calotas polares, com os microorganismos que faziam os dinossauros morrerem?  "Ok". Sua água degelada escorrerá pelos mares, fazendo mudar todas as correntes marítimas, inundando todas as cidades litorâneas? "Bom adeus Veneza; bye bye, Amsterdã!"

O povo vai subir a Serra do Mar a pé, correndo e olhando para trás como a mulher de Ló, virando estátuas de sal, engolidas pelas ondas. "Mais sal ou menos sal no mar não vai fazer diferença, convenhamos", diz a Esperança pachorrenta, com sua piteira (ué, sempre imaginei a Esperança fumando piteira! Vamos mantê-la assim na nossa narrativa). "Não esquenta, com perdão do trocadilho", segue a zombeteiríssima Esperança. "Depois que as calotas derreterem todas, a água vai parar. Poços de Caldas não vai ser encoberta. Vai ter praia onde hoje é serra. Olha que coisa boa!"



Aí o povo, ouvindo esses bons augúrios, para de correr. "Até que as ondas não estão assim tão fulminantes. Dá pra subir a serra devagarinho numa boa". Comida? "Por sorte trazemos nossos estilingues e pistolas; matamos passarinhos silvestres e assamos". Olha que gostoso, parece acampamento.

Aí vem um daqueles profetas de que eu dizia e nos lembra que pássaros têm ácaros e piolhos com bactérias ainda não-catalogadas. E que uma delas, experimentalmente, aplicada num camundongo, fez o bicho estrebuchar em cinco minutos, soltando as vísceras pela boca e, como esse comportamento se parecia com o dos pepinos-do-mar, a doença se chamou holoturite, a qual, diga-se de passagem, é altamente transmissível. "Cuidado!", disse isso, sim, mas com fome, o gordo cientista, que de Academia entende muito, mas, de academia desportiva, nada, apagando o seu charuto na brasa (cientista fuma, claro, também é filho de Deus). Faminto, arriscou, enturmando-se com a horda, uma dentada na coxa do bem-te-vi assado, afinal de contas, tinha boas razões para sua contradição: como todo biólogo, místico ou poeta, a morte não o assusta, por ser sabidamente parte dos éons da vida. "Dane-se o que sei", pensou e, em voz alta: "dá-me cá também o pescocinho e o coranchim".

Mas subitamente se lembra das premissas. A razão o atormenta sempre. Cospe tudo, passando água boricada na língua, sobe numa caixa de madeira que levara consigo (igual àquelas para transportar tomate, de feira), frente à plebe ignara e berra, iluminado pela Ciência: "Ouvi!", todos olham, "eu olhei! E eis que estava Pasteur sobre o monte Sião e com ele cento e quarenta e quatro mil, que em suas testas tinham escrito o nome de Darwin. E ouvi uma voz do céu, como a voz de muitas águas, e como a voz de um grande trovão; e ouvi uma voz de harpistas, que tocavam com suas harpas!" 

O povo, limpando nas mangas a gordura da garça recém-assada e do gambá recheado com frutas do mato, parou de mastigar para ouvir. E o cientista prosseguiu: "E liam um novo artigo da Science diante do trono, e diante dos quatro animais e dos quatro anciãos; e ninguém podia aprender aquele cântico, senão os cento e quarenta e quatro mil que foram comprados da terra. Estes são os que não são contaminados pela mídia e pela política; porque são virgens "



Virgem? O menino entendeu e riu. Fez um gestinho circular em volta da orelha, como que afirmando estar lelé o cientista. A mãe também não entendia nada, mas deu um tapa na mão do menino. Afinal de contas, não o ensinou para ser mal-educado e fez questão de escandalosamente mostrar isso a todos, com sua violência doméstica. O fedelho tinha de ouvir o cientista, mesmo que ela também não entendesse patavina. Tinha sido reprovada em biologia, lembrou de relance. O barbudo cientista, ajeitando o pince-nez continuou: "Estes são os que seguem Redi e Spallanzani para onde quer que vão. Estes são os que dentre os homens foram comprados como primícias para o Juízo e para a Ciência. E na sua boca não se achou engano, porque são irrepreensíveis diante do Juízo".

"Então você está pedindo que tenhamos juízo?", berrou um lá do fundo, que estava com dificuldade de ouvir, porque as ondas estavam batendo nas rochas, fazendo um barulhão danado. Bom, verdade que, mesmo que não estivessem, não teria entendido nada, ato contínuo à sua biográfica indiferença a tudo que não fosse futebol, mulher, churrasco e cachaça. Os da sua volta começaram com seu "uuuuuuh" previsível, concordando monossilabicamente com o que roubou o turno da fala do profeta. Arriando as calças, começando a urinar nas ondas, o interruptor completou sua fala, animado com a plateia a seu favor: "outro dia eu vi um anjo voar pelo meio do céu, e tinha o Evangelho eterno, para proclamar aos que habitam sobre a terra, e a toda a nação, e tribo, e língua, e povo, mas ele não disse nada sobre juízo. Pelo menos não ouvi".

Um, que estava do lado, banguela, retrucou: "não é verdade. Falou sim, falou sobre a hora do Juízo, algo sobre temer a Deus, dar-lhe glória, adorar aquele que fez o céu e a terra e o mar...". Nisso, uma onda o encobriu. Todos se lembraram subitamente do perigo e, percebendo que estavam ali bobeando  tempo demais, correram, correram. Até o cientista, levando a caixa de tomate sobre a qual havia feito seu discurso, correu junto com os ignaros. Depois de duas horas, correndo, esmagando-se uns aos outros, sossegaram, acharam-se novamente fora de perigo, porque fugir sem parar cansa. A Esperança, que hipocritamente também tinha corrido e até agora estava quietinha, pediu ao cientista a caixa, subiu, apagou o cigarro de sua piteira nas costas do acadêmico e, com sua voz vulgar e hipnotizantemente melíflua, dedilhou os acordes de seu discurso: "não deem ouvido a essa besta", apontando para o cientista, e iniciou sua ópera: "não lhe deem ouvido, senão serão atormentados pelo Juízo de que fala. A fumaça de seu tormento sobe para todo o sempre. Não terão repouso nem de dia nem de noite. Marquinha de vacina? Tanto faz ter ou não ter. Seguir o Juízo não traz felicidade. Para que descansem dos seus trabalhos e das suas obras, olhem aquela nuvem, olhem o sol que irradia. Vejam como o dia está bonito!"



Mas da nuvem saiu um relâmpago e, começando a chover, as palavras da Esperança, tão logo ouvidas, foram dessorridas e rapidamente esquecidas. O mar chegando mais e mais, subindo o sopé da serra quase todo, cobrira já os corpos dos que haviam sido pisoteados e isso tudo deu azo a uma tristeza inevitável. O próprio cientista, lembrando-se que no dia seguinte cairia um asteroide imenso na Terra, conforme dizia um artigo recém-publicado, deu-se um tiro na cabeça. Por toda parte havia uma tristeza enorme e quem estava por demais deprimido se deixou engolir pelas águas sem resistências, sem correr, sumindo na frente de todos. A caixa de tomate estava ali, porém, ao lado do corpo do cientista. Subiu um senhor maltrapilho e sombrio e vociferou: "Lança a tua foice, Destino, e sega: a hora de segar nos é vinda, porque a seara da terra está madura. Lance-nos no grande lagar para sermos pisoteados. E que o lagar seja pisoteado, para que nosso sangue escorra, como vinho que te embebeda. Assim é a tua vontade".

A Esperança, zombeteira, deu uma rasteira no pessimista, que um ou outro só ouviu. Mais linda que nunca, abriu seu decote, mostrou uma perna longa para fora do robe, de dentro do qual ainda tirou uma sedutora garrafa, propondo: "Hmm, que vocês acham, meus queridos? Essa história de lagar me deu uma vontade doida de tomar vinho. Quem é que me acompanha, hem? Todos levantaram a mão. Um tirou, não sei de onde, uns amplificadores de som. Instalaram-se umas luzes de discoteca entre as árvores e a festança assustou ainda mais os pássaros que estavam já assustados. E foi uma noite imensa de bebedeira e orgias. Isso, obviamente, não evitou onda nenhuma de subir. Chapiscava com sua água salgada os dançarinos bêbados e para evitar essas ondas, com as quais já se haviam acostumado, subiam mais um pouquinho, crentes de que, hora ou outra, a força do mar diminuiria. Não foram poucos os tiros ouvidos entre os dionisíacos. Macacos, pacas e até cachorros do mato serviam para o banquete infinito. E chovia e caíam raios e formava-se uma fenda no céu, com um vermelho que seria assustador, se alguém o tivesse visto, analisado e estudado meteorologicamente. Mas isso já era passado. Na sua apologia à ignorância e à indiferença, a Esperança provava que existia a felicidade. E parecia que estava tudo bem. Apesar de, como o leitor pode desconfiar, não ter havido dia seguinte para continuar a narrativa.