De repente está tudo aí. Anos atrás reclamei que ninguém respeitava as faixas de segurança e ninguém as respeitava mesmo. Não digo que possamos hoje atravessá-las de olhos fechados em cruzamentos sem semáforo e que todos os motoristas respeitarão a vida dos transeuntes em vez de preferirem a urgência de ficar parados alguns metros adiante. Mas, verdade é que alguma mudança se vê, ao menos em São Paulo, nesse quesito. E a mudança foi súbita. Algumas outras questões de cidadania, impensáveis anos atrás, por causa de uma suposta passividade do brasileiro, decretada fatalisticamente por sociólogos, que diziam conhecer sua essência, hoje são o ponto principal a ser considerado antes de qualquer atitude. Mudanças acontecem. Primeiramente o que há é uma pequena mudança pontual, depois e em pouco tempo, haverá o suficiente para toda a situação mudar, como gotas de tinta azul pingando numa banheira de água translúcida.
Mas o distraído imerso na banheira que não vê o gotejar ou, vendo-o, não se importa com isso, tem direito a espantar-se com a água toda azul, pouco tempo depois, e seu corpo também, a ponto de manchar a toalha em que secará seu corpo? Dirá que a mudança foi imperceptível, quando na verdade estava ali como qualquer mudança. Não tinha nada de invisível. Chocamo-nos muito fácil, mesmo que sejamos abalroados por indícios óbvios diariamente.
A mudança é um minúsculo embrião. Ocupará todo o espaço necessário para que se torne possível. Só não cresce aquilo que é impossível. Só não ocupa espaço se não for necessário. O que necessita de algo, porém, não segue nenhuma teleologia, nenhum plano, nenhum objetivo, nenhuma lembrança. Segue apenas sua fugaz e inconsequente vontade. Para o que tem vontade, não há entorno, não há nada além de si mesmo. Não é razoável pedir razoabilidade à vontade. Quem tem vontade, diz: "eu preciso disso", mesmo que seja a coluna de um edifício que desabará sobre sua cabeça.
Desabado o edifício, torna-se a vontade visível. Enquanto circulava, como brisa ou subreptícia sombra, não era menos visível, mas teima o mistagogo que era sim invisível e imprevisível. Não o culpemos. Todos somos sedentos de mistérios. Imaginar a vontade de mudança como invisível é apenas uma charmosa conversa para boi dormir.
O invisível de fato não muda nada. O invisível não existe se não muda. Tudo que existe é visível, direta ou indiretamente. Se o vento fosse invisível, de fato, não moveria as plantas. Se Deus fosse invisível, de fato, não surpreenderia os homens. O que se move existe. Mas nem tudo o que é movido é causado por algo que existe. As causas, essas coisinhas esquisitas a que se ligam as mentes humanas, são indiferentemente visíveis ou invisíveis, existentes ou inexistentes.
A única lei do universo é o movimento. Enquanto o universo não se movia, ele não era causa de nada, mesmo existindo. Não é possível mover-se e não ser causa de algo. O imóvel inexistente é a mais incompreensível das coisas: porque não causa nada. Para ser causa é preciso mover-se. Causa e movimento são a mesma coisa.
Um movimento sem causa é incompreensível. Uma causa sem movimento é um paradoxo. Portanto, são a mesma coisa. Por que dois nomes? Porque o movimento é para os nossos sentidos o que a causa é para nossa mente. Costuma-se ver a causa como anterior ao movimento. Mas, e se a causa pudesse ser imaginada como algo posterior ao movimento? Diriam: aí não seria causa, seria finalidade. Assunto sem fim... Quanta tinta já correu sobre a existência ou a inexistência das causas finais! Na verdade, o local da causa não está nem antes nem depois do movimento. Causa e movimento são a mesma coisa.
Se caminho, digo que faço isso porque quero ir até ali. Então a causa de meu caminhar é a vontade de ir até ali? Não, isso é falso, essa causa antes do movimento não existe. A causa do meu mover é querer estar ali e o querer é algo que existe, movendo-se ou não: o mover-se é como a causa se realiza, como passa a existir para os outros. Achar que intenção é sinônimo de causa sempre foi um erro crasso que só pode ter raízes nas pobrezas lexicais das línguas.
Como seres volitivos, nosso querer se dá pela análise da circunstância em que estamos, a qual invariavelmente não é boa ou seria melhor se fosse de outro jeito. Portanto, querer é algo que está ligado à vida e à existência. A vida é movimento. Se é movimento, a vida também é causa, como dissemos. E da mesma forma que a existência não é sinônimo de causa nem de movimento, a vida tampouco o é.
Se causa é movimento, ao dizer: "chove", digo o mesmo que: "o movimento das gotas de chuva são a causa de minha mente pensar que chove". A existência dessa chuva depende de um julgar, meu ou de outrem, se de fato chove. A frase "chove" é verdadeira se eu ou alguém julgar que "é possível ver como uma verdade que o movimento das gotas da chuva são a causa de minha mente pensar que chove". Se deliro e digo chove, quem não vê a minha chuva de delírio poderá tolerantemente entender que aquela é a "minha verdade", não a "dele". A verdade, portanto, nesse sentido, depende de uma conivência e de uma tolerância, mas quem garantirá que não delira o que não vê a chuva? Nesse caso, dois julgamentos antagônicos não são suficientes: seria preciso uma terceira pessoa, e mais outras, e só depois de muitos dizerem: tu deliras é que poderemos falar de uma verdade consensual. O bom delírio, retamente assim designado, portanto, estará restrito, após esse veredito, a uma só pessoa, que diz que chove, e não a todos, que dizem que não chove. Mas, e se o grupo está dividido e metade afirma e a outra metade nega a existência da chuva? Nesse caso, a palavra delírio se torna abusiva e deveria ser substituída por outra mais aceitável, por exemplo, opinião. Concluindo, o delírio é uma opinião personalíssima e uma opinião nada mais é que uma verdade cindida. O relativista, portanto, torna o sentido da palavra "verdade" algo muito elástico e plural, portanto, inútil para se chegar a verdades consensuais.
Será delírio, porém, imaginar uma verdade consensual, compartilhada por todos, inquestionável? Não seria essa verdade um ser sem movimento, uma anticausa, uma causa de nada, portanto, um não-ser? Como equivaler a qualquer movimento um ser assim? Por que o universo de repente se expandiu, se era apenas algo que existia, sem mover-se e, portanto, sem causar bem ou mal algum?
A tempo: a verdade razoável não é a verdade consensual.
Como seria? Para que a razoabilidade prevalecesse e vencesse, seria preciso a tirania do razoável? Seria preciso que fôssemos razoáveis à força? Seria preciso haver um mecanismo que reprimisse aquilo que não é razoável? Ora, uma verdade não-razoável é fundamento, portanto, causa e movimento de atitudes não-razoáveis. Se isso é personalíssimo, chama-se crime, pecado, delito, mancada. Se a verdade não-razoável é verdade cindida, é instalação do caos, voluntas maligna, inconsequência, convulsão. Pensemos: quantas vezes o ser humano não se pautou por ela e ainda se pautará? Para que a vontade não-razoável não prevaleça é preciso memória, lembrança dos seus movimentos (ou de suas consequências). Só se perdoa que a vontade não-razoável prevaleça quando é a sua primeira vez, isto é, quando suas consequências ainda são desconhecidas, ou quando a falta de memória existe de fato. Para que isso não acontecesse, o ser humano armou-se (em vão) de estelas, lápides, certidões, documentos, poemas e tudo que a escrita ou o mito teimam em imortalizar.
Mas há quem diga que o movimento é de tal forma alicerçado no momento atual, que não há duas vezes uma mesma verdade razoável ou não-razoável. Esse raciocínio tão agitado é, paradoxalmente, tão estéril quanto o não-movimento ou quanto a verdade consensual, não por ser anticausa e não-ser, mas por ser inútil ultracausa e super-ser.
O movimento real está entre a negação e o além.
Não se confunde, porém, com nenhum dos dois, pois, confundindo-se, seria falta de movimento ou excesso de movimento. E nada disso seria útil. Nada disso seria razoável. Não serve para o raciocínio e, por conseguinte, não serve para a vontade e para a vida. O movimento real não é legislado pelo desejável, mas pelo razoável, que depende da memória, que depende do registro, que depende de quem os leia e os avalie. O que está fora do real é o invisível, que nada causa. Invisível porque não existe ou porque é inútil. Pena que nem todo ser inexistente ou inútil seja invisível: se fosse, só haveria causas razoáveis e a vontade se pautaria nelas. Mas porque é visível, a imaginação, irmã da insatisfação, lança-o à baila e convivemos com esses seres visíveis inexistentes e inúteis de forma cansativa e desnecessária, imaginando que fazem parte de nossa cara e gabada racionalidade humana.
Não se confunde, porém, com nenhum dos dois, pois, confundindo-se, seria falta de movimento ou excesso de movimento. E nada disso seria útil. Nada disso seria razoável. Não serve para o raciocínio e, por conseguinte, não serve para a vontade e para a vida. O movimento real não é legislado pelo desejável, mas pelo razoável, que depende da memória, que depende do registro, que depende de quem os leia e os avalie. O que está fora do real é o invisível, que nada causa. Invisível porque não existe ou porque é inútil. Pena que nem todo ser inexistente ou inútil seja invisível: se fosse, só haveria causas razoáveis e a vontade se pautaria nelas. Mas porque é visível, a imaginação, irmã da insatisfação, lança-o à baila e convivemos com esses seres visíveis inexistentes e inúteis de forma cansativa e desnecessária, imaginando que fazem parte de nossa cara e gabada racionalidade humana.