O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

terça-feira, 8 de novembro de 2016

NÃO EXISTEM LÍNGUAS

Não é de hoje que me atormenta uma ideia e eu resolvi compartilhar. Todo mundo fala de línguas, dialetos, idioletos. Todos imaginam um sistema linguístico, acima das nuvens, nas esferas plotinianas, no mundo das ideias. Esse sistema é a langue dos estruturalistas. A fala seria, segundo esse modo de ver, uma coisa imperfeita, saída da boca dos mortais, a tal parole que apenas atualiza a língua. Mas e se todos os falantes morressem, para onde iria essa langue? Reencarna-se ou vive solitária no mundo ideal, sem ter com quem dialogar? Acho que poucos dariam essa resposta. Ressurreição de línguas é privilégio de poucas, como o latim, o sânscrito ou o hebraico. Mesmo renascidas, voltam bem diferentes.

O hitita morreu de fato, mas pelo menos deixou sua escrita. E as línguas que nem isso fizeram? Não estão essas línguas no nada, no Duat, lançadas para lá implacavelmente por Maat, devoradas por Ammit? Sim, acredito que houve línguas cuja reconstrução requer pode ser imaginada. Acredito inclusive que língua não é invenção do cabeçudo Homo sapiens. Língua sequer é uma invenção: é grito orquestrado de um bando de prossímios, é convenção que perpassa o élan vitale para cultuar a sobrevivência. Não existe proto-sapiens, sr. Merrit Ruhlen. Seu empenho busca uma ficção. Seu raciocínio é autoengano. Seu salário é o de um artista. Pronto, falei, ganhei coragem. Rogai por mim, ó santo Rubem Alves!


A convenção nasceu no bando e o homem nunca foi ermitão, fosse ele pelado ou não, cabeçudo ou não, carnívoro ou não. Não foi o cérebro inchado que criou a área de Broca: ela estava lá antes de sermos gente, antes das cidades e dos deuses, quando trincamos a primeira pedra sem saber o porquê. Ninguém nos ensinou. Como ninguém ensina os bebês a encontrarem os formantes ideais de um fonema, a primeira língua não nasceu no Homo sapiens, façam-me o favor! Isso é óbvio. Jamais reconstruiremos a língua de Adão ou de Noé. Durma com um barulho desses, Goropius Becanus!

Então assim começa nossa conversa. No princípio era uma falação só. Um palavreado ecoava da mata. Se os navegadores portugueses tivessem podido escutá-lo de suas caravelas, percebê-lo-iam léguas mar adentro. Mas foi bem antes disso, na verdade antes de tudo, antes dos testemunhos de Ur, antes de Stonehenge e de Göbekli Tepe, antes talvez do Sahelanthropus tchadensis. Sim, os homens de Neanderthal falavam e, antes deles hominídeos ainda mais primitivos. Não me venham com exclusividades. Todos foram filhos de Deus.

Imaginam a expressão desses tempos primordiais? Cada palavra, migrando por gerações, mudando-se, perdendo-se, inventando-se. O homem nunca mais parou de falar porque não consegue parar de pensar. Mas há muito bicho que pensa. Não me refiro a macacos ou demais mamíferos, nem a aves. Às vezes quero acreditar que até aranhas aracnófagas do gênero Portia têm raciocínio. Até mesmo as planárias têm memória, pois podem ser condicionadas com choques. Que diabos de prioridade é essa do homem? Não há salto qualitativo. Não pode haver. Mais que isso, não estamos no final da escala evolutiva porque não há escala alguma. Não somos tudo o que pensamos ser. Isso é lenda do Renascimento.



Mas voltemos às línguas. As palavras estão num contínuo temporal, desde que grunhires se tornaram símbolos. Aprendidas, encaixadas em modelos, modificadas, mandadas para a frente. Cães distinguem seus latidos. Aves sabem distinguir um canto de acasalamento de um aviso de perigo. Se não são falas articuladas, como já nos ensina o divino Aristóteles e não um pós-moderno cabeça de bagre, isto é outra coisa. Mas o princípio é o mesmo.

Pensemos então, para ficar mais simples, dado o espaço que a paciência de um leitor concede a uma postagem de blog: o que vale agora é a palavra não grunhida, aquela articuladinha, essa sim, é exclusividade do homem, dizem. Palavras, signos, paradigmas, regras. Ufa, de novo sou o centro, afirma o que se diz descendente de Adão. Eu me precaveria, antes de apaixonar-me por mim mesmo e pela minha espécie, apenas com essa descoberta. Um exame humilde da realidade não custa muito: só a destruição de nossa auto-estima. Isso é superável. Nada que um suicídio não resolva. 

Vamos lá: eu não posso provar que a fala articulada nasceu nos pré-homens. Isso é questão de fé minha. Acabou o papo, não quero bate-boca. Para mim, isso é razoável porque eu não sou um hegeliano romântico. Vamos partir de onde queremos começar: do mundo habitado por gente faladeira. Renuncio à reconstrução da fala adâmica. Vamos pensar em algo mais verossímil: num tempo longe pra dedéu, a long long time ago, porém já era enfestado de tagarelas, onde línguas pululavam por toda parte.

Mas que são essas línguas? Secamente falando, línguas são palavras que podem ou não ser segmentadas em unidades menores (sufixos, prefixos etc) e línguas são regras, que formam unidades maiores (locuções, frases, parágrafos, textos). Modelos de tudo isso estão na nossa cabeça. Prova disso é a nossa fala. Ok? Parece razoável agora?

Essas palavras e semipalavras estão organizadinhas em cumbucas mentais de vários tipos. Uma mangueira é uma árvore, mas não é a árvore. Uma mangueira é também um objeto de plástico para regar plantas (inclusive mangueiras árvores). Mangueiras dão mangas. Mas as camisas também têm mangas, que não são as mangas das mangueiras árvores. Manga se diz mango em inglês. Mas se peço duzentos mangos para você, não é a fruta que eu peço, pois não estou falando inglês e você sabe disso. Informação zoada, mas toda organizada de alguma forma. Um caos wittgensteiniano, uma arrumação saussuriana, numa memória infinita bergsoniana. E tem mais: há a memória específica. Só de pensar na manga da casa de minha tia Alzira em Piramboia eu salivo mais que o cão de Pavlov. Enfim, eu sei o que é uma manga mas não sei o que é mwembe nem o que é cambe, mesmo que a primeira seja uma manga para um falante de suaíli e a segunda seja uma manga para um falante de somali.

Bom, fato é que eu chamo aquela fruta caroçuda e deliciosa de manga e não de cambe, danem-se os somalis. É isso que tem sentido para mim. Ignoro a expressão somali, porque não tenho planos de morar na Somália. É como se cambe não existisse para mim. Se estou jogando pôquer, danem-se as regras do truco, do rouba-monte, do buraco ou da canastra.



Mas não só eu chamo aquilo ali de manga. Na verdade, as pessoas que me podem dar, vender ou roubar uma manga tratam-na com o mesmo nome (ou algo tão parecido que, desde criancinha, não consigo perceber a diferença acústica de seu modo de pronunciar). Não conheço nenhum somalífono que me entregue a fruta que desejo. Mas atenção! Se quero uma manga e não tem ninguém por perto, trepo no pé e como a anacardiácea sem falar uma só palavra (e às vezes sem pensar nela também, quero acreditar). Se necessito de ajuda ou se quiser compartilhar a minha madeleine piramboiense, aí sim, a palavra ressurge do fundo da memória infinita e quem me ouve, não sendo um somaliano, entenderá. E olhem que manga é uma palavra bem conhecida. Não precisa que meu ouvinte a reconheça só por ser lusófono. Um falante de tagalo, húngaro, letão, norueguês ou manx, com um pouquinho de boa vontade, também reconhecerá alguma palavra parecida com essa.

Pois bem, uma palavra é um acordo com meus próximos, tem uma história e tem uma difusão. Se ignoramos um desses três pontos, falamos bobagem. Uma palavra não depende diretamente da língua que eu falo a não ser por outras mais convenções: de pronúncia, de morfologia e de sintaxe. Mas essas convenções também têm seu compartilhamento, sua história e sua difusão. Discorrer sobre ao valor de verdade acerca da feminilidade morfológica da manga é possível tanto em português quanto em árabe. Afirmar que uma manga é um substantivo beira o universal. Colocá-la no lugar certo da minha expressão nem sempre é uma escolha. E o que eu devo fazer não é exclusivo da minha língua.

Mas tem gente que fala diferente. A expressão do espanhol é diferente da minha, mas menos diferente da de um galego e muito diferente da de um estoniano. Mas mesmo aí vê-se um continuum com alguns pequenas trincheiras ou grandes precipícios nas fronteiras linguísticas causados pela história, nada mais do que pela história. Mesmo assim, uma manga é possível de ser arremessada por cima do precipício basco ou húngaro por meio de seus vizinhos com seus sistemas tão diferentes.

Enfim, sistemas. É isso que as pessoas têm na sua cabeça. Conjuntos de palavras e seus elementos. Conjuntos de regras. Isso está junto com outros conjuntos de comportamento. Falar é uma questão de ética. O sistema é uma questão de psicologia e neurologia.



Mas se é assim, se só há sistemas individuais com intersecções nas suas presenças e ausências de informação herdada, cadê as línguas? Nas nuvens? Na sociedade? Qual sociedade? A que discrimina este ou aquele falante, chamando o sistema do outro de mero dialeto? Há tempos se sabe que dialetos são sistemas como qualquer língua. Essa palavra "dialeto" devia ser banida da linguística por não ser científica e "idioleto" também, por ser redundante. Dialeto é simplesmente uma questão política. Não existem dialetos nem idioletos, só há sistemas. E sistemas são individuais. Não existem línguas: é a ilusão da sociedade que gera a ilusão da língua. Generalização e preconceito policiadas pela convenção ou pela imposição da lei. Língua é o que nos oferece o superego no lugar do sistema. O que sobra de nós, chicoteado pela Verdrängung freudiana, é aquele pouco que podemos chamar de direito do falante: tudo que se fala, que se ouve e se sabe. Fora isso, só há reconstrução, que o próprio indivíduo mal consegue fazer sozinho, sem a intromissão da sua fantasia. O falante não é o mais importante para a língua. O ouvinte é que é. Ou o leitor. O falante está só com seu sistema.

Mas o sistema não é flexível a ponto de incluir toda a variação e todos os dialetos? Não. Não existe todos. Existem alguns. E não me venham falar de internet, seus neo-renascentistas! Existem somente alguns. Os alguns são nosso mundo. E é isso que os falantes poliglotas fazem. É isso que os falantes que dominam vários registros de uma mesma língua fazem. É isso, enfim, que todos os falantes fazem.

Um sistema platônico, no céu, julgando este humilde sistema particular aqui não existe, sinto muito. Até porque sistema particular é redundância. As línguas, como seres políticos, acreditam ser esses sistemas transindividuais. E são. Mas esses sistemas não existem. Conseguimos falar porque perseguimos um ideal: um ideal de pronúncia, um ideal de significado, um ideal de regra, um ideal de língua. O mundo se move assim: por ilusões. E isso se chama civilização. Mas os pesquisadores da linguagem não precisariam ser tão iludidos quanto os falantes, escravizados pelo neobando que é a civilização. Mas são iludidos. Uma pena, pois jamais nascerá ciência alguma assim. Nem agora nem nunca. Nietzsche, se tivesse tido mais tempo, diria, novamente: an ihrem Mitleiden mit den Menschen ist die Sprache gestorben! Nunca o bigodudo estaria tão certo.

Aprendam definitivamente. Só há aquilo que não existe! E antes do princípio já era o verbo.