O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

sábado, 6 de agosto de 2016

RACIOCÍNIO LÓGICO E BOM SENSO

Quando vejo polarizações de opiniões e discussões acaloradas sobre algum tema, volta e meia alguém evoca o "bom senso". Outros, mais insanos, a meu ver, resolvem falar de "raciocínio lógico". Mas uma dúvida sempre me acomete: lógica tem algo a ver com bom senso? Pior: é de bom senso evocar a lógica para resolver qualquer problema? 

Vejamos. Em lógica, uma condição só é falsa quando a frase antecedente é verdadeira e a consequente é falsa. Apresentada dessa forma, aparentemente, temos algo que está de acordo com o bom senso. Exemplifiquemos: suponhamos que choveu e suponhamos também que temos a rua à nossa frente toda molhada, ora, partimos de um raciocínio muito básico que parte da afirmação da verdade de "choveu" da mesma forma que é verdade que "molhou".



Então, facilmente concluímos: "se choveu, molhou". Minha experiência não erra. É batata, como diria Nélson Rodrigues: "choveu, molhou". E se não choveu? Ora, se não choveu, não molhou. Ambas as frases "se choveu, molhou" e "se não choveu, não molhou" são verdadeiras e sua óbvia verdade (ainda que sintamos que essas frases sejam um pouco estranhamente formuladas), diria um leitor benevolente (que queira entender o problema que quero apontar e não encrencar, desde o início, com o meu raciocínio), está consoante às suas afirmações ou negações. "Se choveu, molhou" é verdadeira+verdadeira, portanto verdadeira; "se não choveu, não molhou" é falsa+falsa, portanto verdadeira. Repitamos, uma condição só é falsa quando a frase antecedente é verdadeira e a consequente é falsa. Na primeira oração, a frase antecedente é verdadeira e a consequente é verdadeira; na segunda oração, a frase antecedente é falsa e a consequente é falsa. Portanto, ambas são verdadeiras. 

Isso nos faz pensar que, usando a mesma afirmação acima anunciada, se disséssemos "se não choveu, molhou" sabendo, desde o início, que "não choveu" é falso e "molhou" é verdadeiro, teríamos também uma frase verdadeira! Pode ser lógico, mas, convenhamos, não é de bom senso. Numa conversa, com certeza, uma possível reação a essa estranha frase, seria algo como "oras, não choveu, você não viu? e está molhado, caramba!", pois a frase "se não choveu, molhou" não faz muito sentido. É sentida, pelos apressadinhos, como falsa ou "ilógica". Na verdade, somente não está conforme o nosso bom senso.

Para entender bem isso, é preciso reler várias vezes o que foi afirmado acima para não mudarmos a regra no meio do jogo: pela lógica, uma condição só é falsa quando a frase antecedente for verdadeira e a consequente for falsa. Não é o caso de "se não choveu, molhou". Pela lógica, essa frase. que julgamos sem muito sentido, é tão verdadeira quanto as outras duas anteriores. Para a lógica, a única frase falsa seria "se choveu, não molhou" e não a invertida "se não choveu, molhou". Isso, se eu continuo admitindo que "choveu" e "molhou" são verdadeiras e não mudei de opinião no meio da conversa.

Perguntará o pouco familiarizado com o raciocínio lógico e sem paciência de admitir o que já foi admitido desde o início: como assim?

Vamos apresentar o problema de outro ângulo. Para a pessoa que diz ter bom senso, às vezes parece que tanto faz dizer "se choveu, molhou" como "se molhou, choveu". Para a lógica, não. Se invertermos, diríamos que "se molhou, choveu" e "se não molhou, não choveu" são verdadeiras. Mas o mesmo não se pode falar de "se não molhou, choveu" e "se molhou, não choveu": a lógica dirá que a primeira é verdadeira e só a segunda é falsa! Se reler as regras do jogo, verá que eu tenho razão.



Quem não está habituado aos conceitos da lógica, estranhará tudo isso e, uma vez convencido do que falo, concluirá que a lógica não tem lógica nenhuma, o que seria imensamente ilógico, pois, na verdade, está querendo dizer que o raciocínio lógico não tem muito bom senso. Mas, isso não é nada: a coisa pode ser ainda pior.

Se eu digo que "choveu" é verdade e que "caí" também é, só as frases "se choveu, não caí" ou "se caí, não choveu" são falsas. Qualquer outra combinação seria verdadeira: "se choveu, caí", "se caí, choveu", "se não choveu, não caí", "se não caí, não choveu", "se não choveu, caí", "se não caí, choveu" ! Isso não faz sentido? Realmente, não faz. Mas é lógico!  Assim como é lógico afirmar que é verdadeira uma frase como "se Pedro Álvares Cabral não descobriu o Brasil, o número atômico do magnésio é doze"... Releia o que disse até agora e me dará razão!

Das duas uma: ou a lógica não serve para nada (o que não é verdade), ou não devíamos chamar de lógico aquilo que não é. Nossa estranheza com o que é falso e com o que é verdadeiro em lógica vem da nossa não aceitação das regras do jogo. Se quero jogar xadrez, o cavalo anda em L, o rei anda uma só casa, o bispo anda na diagonal. Ninguém com bom senso pensaria em mudar as regras do jogo no meio de uma partida. As regras são dadas desde o começo e é isso que a lógica faz. Quem não concordar com elas, jogue outra coisa, ou não jogue. Para se falar de lógica, é preciso seguir os princípios da lógica e não usar seu nome em vão. Não é possível que alguém jogue xadrez com as regras do jogo de damas, ou que jogue pôquer com as regras do truco. O que estariam fazendo seria jogar damas com peças de xadrez e jogar truco com o nome de pôquer. Se usamos expedientes não-lógicos num raciocínio, não podemos chamar sua conclusão de "conclusão lógica". Obviamente, há muitos tipos de lógica, mas todas têm regras desde o início. O bom-senso, por exemplo, ao que tudo indica, não tem: isso já sabia Descartes, após rasgar seus escritos, paranoico com a Inquisição, com as malas prontas para a Suécia, onde morreria de frio (literalmente), dando aulas à caprichosa rainha Cristina.

No dia-a-dia, a coisa é bem diferente. Concluo desta forma: se está molhado é porque choveu, tenha eu visto a chuva ou não. Se choveu, o chão deve estar molhado, diz a minha experiência. Ademais, entre chover e ficar molhado há um lapso de tempo, inexistente nas proposições lógicas, cujos componentes estão alicerçados somente sobre o verdadeiro e o falso. Não há tempo na lógica, porque a lógica pretende flagrar o infinito atemporal, por isso foi usada por Galileu e faz parte da mente do Deus newtoniano: a verdade, para eles, era algo real, tal como era real o fato para os seiscentistas e setecentistas. Em suma, a verdade é algo absoluto, muito mais do que a realidade cheia de acidentes decorrentes da ideia platônica ou das hipóstases de Plotino. É a rede por trás da ilusão, que alicerça o pensamento de Einstein. Há algo e isso é lógico, se não matemático, como viam, cheios de vislumbre extático, os pitagóricos. Como será que essa ideia chegou à Magna Grécia e de lá ao Ocidente? Não me espantaria se não tivesse vindo dos egípcios, cujo Aton foi, sem dúvida, fonte remota de Javé e do Bem de Platão. Acidental, mas creio que há algo no cérebro do símio humano que impulsiona - raramente, é verdade - para unos absolutos, senão não teríamos pirâmides na América Central e as línguas não seriam estruturadas. Jung teria razão quando amalucadamente falava de arquétipos?



Seja como for, a sobrevivência é mais importante que o onírico devaneio em que está a juventude hoje, com a cabeça no nada, caçando pokémons com sua cara enfiadas nos iPhones ou acreditando mais do que nunca em conversas fiadas que os fazem explodir sítios arqueológicos. O ser humano ralou muito até ter os confortos das cidades e da tecnologia, até sentir-se convictamente superior com sua bazuquinha particular e se desse ao luxo de se implodir. Mas se é assim, penso eu, tudo isso foi graças a Aton. Hoje, a sobrevivência ficou em segundo plano, contaminamos ar e água, desfertilizamos a terra, descongelamos as geleiras e libertamos a besta permafrost de seu cárcere. A lógica fez que pensássemos que não somos feitos de tecido orgânico. A ilusão de imortalidade só se desfaz, individualmente, quando o médico anuncia nossa morte. Até lá, dia após dia, misturamos a lógica dos malucos, que tanto nos foi útil, com o atávico raciocínio do dia-a-dia (como, há anos, não uso a palavra "lógica" em vão, penso que é um pecado falar de "lógica do dia-a-dia"). O raciocínio, mais complexo do que o esqueleto radical da lógica, é fluido, como os infinitos rios heraclitianos. As regras podem mudar, sim, no meio do jogo do raciocínio: todo mundo sabe disso. O que está por trás da imensa maioria dos raciocínios é a sobrevivência e quase nunca a lógica.

E isso ficou bem claro após a Segunda Guerra, embora tenhamos esquecido e agora caminhamos para o desastre dos desastres: o que é verdadeiro, logicamente falando, nem sempre é o melhor. Tanto faz se algo é condizente com as premissas, se falta amor. Nasceu o culto ao ilógico. Mas veja: o raciocínio não é lógico e, justamente por isso, não consegue ser ilógico. Algo que não é da minha fé não é uma heresia, apenas outra fé. O que é diferente do que penso não é errado por definição. O que está para além da lógica: tempo e compaixão, por exemplo, não é ilógico, apenas outras coisas que alicerçam o raciocínio do convívio humano. É a praticamente a mesma diferença que se faz entre alternativa e perversão. Gostar de algo, seja lá o que for, obviamente não é errado, já gostar conscientemente de algo só porque ninguém gosta (por temor ou por asco) é frequentemente objeto de legislação do bom convívio entre os pares. Além do tempo e do amor, o raciocínio, alicerçado no bom senso, trabalha com algo que não tem raízes na lógica (e isso é sabido desde Hume): a causa.

Então, valha-me Deus, esquecendo-me da lógica: sou livre para afirmar que se está molhado é porque choveu, seja verdade ou não. Se não choveu, não haveria razão para algo estar molhado, argumentam: concordo ou não. Assim sendo, se concordo que está molhado e não choveu, é porque há outra causa: um cano arrebentado, por exemplo. Nossa vida tem a ver com expectativas e sobre elas atua o nosso raciocínio mais por meio de orações causais e concessivas, do que de condicionais. Se não choveu e está molhado, isso me causará espanto, mola da minha vida: "vejam! Que estranho! Está molhado, mas não choveu!"

Embora não tivesse chovido, o chão estava molhado. Mistério. Pode acontecer? Pode. Não é lógico, Deve haver alguma causa. Foi o fuça-fuça das causas que fez o nosso cérebro inchar e dar no que deu. Foi o julgamento das adversativas que fez o homem não ser um robô que trabalha com adições, condições e negações, como faz a lógica: não choveu, mas está molhado. Estranho, não? Estranho mas muito mais próximo da vida do que qualquer conclusão lógica.