O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

IGNOTO CONHECIMENTO

Uma das coisas que sempre me fascinou foi o conhecimento. O acaso me fez, aos dezessete anos, perdido numa cidade grande e desarraigado das minhas comodidades familiares, conhecer aqueles que me contaminariam com seu prazer pelo puro conhecimento. Se sempre me intrigou por que os insetos ou as línguas eram tão distintos, ainda mais me intrigava ser infinita a pesquisa que me alimentava com o conhecimento. A pluralidade necessita de olhos treinados.

Lembro-me de ter ficado fascinado com os livros Explicações científicas e Definições, de Leônidas Hegenberg, que mencionei em todos os cursos que ministrei e que supunha já falecido há muito tempo quando, em 2012, nos googles da vida, deparei-me com a notícia de seu falecimento, poucos meses antes, aos 87 anos. Hegenberg me apresentou a lógica e a filosofia da ciência de uma forma que, imagino, ninguém o teria feito melhor naquele momento.




Desarraigado e desajustado, tentei reproduzir na cidade grande tudo que fazia na minha primeira vida interiorana: andar de bicicleta, lutar karatê, frequentar a igreja presbiteriana. Tudo em vão. Não era a mesma coisa porque não eram as mesmas ruas e os prédios de minha cidade. Entediado com o trânsito paulistano, ia a pé da pensão da Liberdade ao Centro Cultural de São Paulo e, depois, da moradia estudantil no Crusp à antiga Biblioteca de Pinheiros, que ficava do lado do Shopping Eldorado e lia de tudo, num arremedo do que fazia na Biblioteca Pública de Botucatu e no Centro Cultural da mesma cidade. Foi nessas bibliotecas primevas que conheci o casal Soares, primeiro em livros e depois ao vivo. Foi lá que eu tive contato com Rubens Romanelli, Edwin Williams, Menéndez-Pidal, Sapir, Mattoso Câmara Jr e Pottier. Foi ali que sonhei em aprender todas as línguas do mundo, embora só tivesse à disposição inglês, francês, alemão, latim, grego, esperanto e bororo.

Como os títulos da Biblioteca de Pinheiros não me davam nenhum tesão especial, resolvi ocupar meu tempo de moradia estudantil lendo-os conforme a ordem da estante e não foram poucas as porcarias com que me deparei. Lá havia um calhamaço de um maluco chamado Pietro Ubaldi. Aliás, encontrei seu opus magnum num sebo um dia desses. O título já diz tudo: A grande síntese, uma espécie de sistema que juntava espiritismo, darwinismo e física. Aliás, um pequeno desvio no assunto, motivado talvez pelo delírio das lembranças do conhecimento pleno ubaldiano: nesse mesmo tempo de juventude, nas mesmas prateleiras li outra obra igualmente maluca, o clássico Mahabharata.


Deixando a tergiversação, volto ao tópico do conhecimento puro, introduzido em minha alma por Hegenberg. Lembro-me que um amigo de um amigo me havia recomendado o livro Filosofia da Ciência, de Rubem Alves, obra que devorei e reli mil vezes, tornando-me fã incondicional desse mineiro e antropofagicamente delirava ser igual a ele, na presunção juvenil da época, embora nenhum dos filósofos citados tivesse sido lido até então. 

Foi aí que tomei coragem de enfrentar a linguagem da filosofia. Afinal de contas, pior que o da religião não deveria ser. Apaixonei-me pelo Discurso do Método, de Descartes, anacronismo que logo consertei tentando ler a obra completa de cada filósofo em ordem cronológica. Delirei com os pré-socráticos e lamentei com a certeza de que nunca mais o homem terá a liberdade de pensamento daquela época.

Depois disso, meti-me no cipoal de Platão, cuja obra inteira li até os 19 anos. Logo depois, desilusão: fui cuspido pelas Categorias de Aristóteles, que tentei ler em muitas línguas, até mesmo em grego. O meu interesse pela filosofia era alimentado pela enigmática colega de graduação Cândida, que nem sei se está viva ou morta. Desisti da minha grandiosa empreitada e só uma década depois a retomei, ainda fielmente em ordem cronológica, mas não a obra completa. Aristóteles me convenceu que era loucura. Não era, mas enfim, parece ser.

A filosofia substituía os meus inquéritos religiosos da puberdade. Demorou muito para eu substituir meus heróis Platão, Pascal e Descartes por outros: Bacon, Locke, Berkeley, Berkeley, Hume, Kant e Popper. Esses autores me fizeram entender que havia um tipo especial de filosofia que me agradava. Era a Epistemologia e não aquela que se afundava no obscurantismo, como a de Hegel, Comte, Heidegger e caterva, exceção feita ao grande Nietzsche, que sempre me agradou, talvez pelo tom de profeta, mas não vejo esses autores como representantes de uma Filosofia, no sentido estrito da palavra. Para mim, todos os problemas da filosofia foram explicitados até Kant. De lá pra cá, só restam alguns atores de teatro, cuja performance místico-literária se desenrola numa espécie de palco com holofotes e, para mim, é muito desanimador ler a maioria dos filósofos do século XIX em diante (exceção feita a um Schopenhauer, com certeza). O primeiro desses fanfarrões talvez tenha sido Leibniz e o mais enfadonho, sem dúvida, seja Hegel. Realmente a França deu um mau exemplo para o mundo, que a Alemanha e os Estados Unidos imitaram.

Mas se, por um lado, a teoria do conhecimento virou arte do desencanto, na verve obscura de um Rousseau, de um Voltaire, dos Stürmer (dos quais Goethe devia envergonhar-se de ter criado na sua provecta idade), dos insuportáveis filósofos românticos e de sua ainda mais insuportável fama (bem que Hume avisara quando propõe a sua chocante destruição dos livros inúteis), por outro lado, a arte posterior à minha época preferida (rarissimamente, diga-se de passagem) também toca a questão do conhecimento, assunto predileto dos meus filósofos prediletos.

A arte cinematográfica, porém, costuma tocar nesse assunto de forma canhestra e atrapalhada, quando penso num Glauber Rocha ou num Godard. Mil vezes o entretenimento que nos presenteia um Truffaut ou um episódio dos X-men à transformação da sala de projeção em uma sala de doutrinação, quase o método de tortura terapêutica em Laranja Mecânica, do divino Kubrick!



Recentemente me vi surpreendido com um filme japonês muito curioso a que assisti a bordo do avião. Trata-se de 暗殺教室 (Ansatsu Kyôshitsu), traduzido para o inglês como Assassination classroom. O que era para ser um entretimento que beirava o nonsense enredou-me sobre o Atlântico com pensamentos muito inusitados, a ponto de eu assistir ao filme duas vezes para acreditar no que estava vendo.

É verdade que hoje em dia somos bombardeados com imagens asquerosas de violência. Nosso mundo se tornou aos poucos num grande culto visual ao Éros e ao Thánatos, cujos limites estão ainda para ser definidos. O exibicionismo de pessoas que seriam naturalmente ignoradas pelo mundo, não fosse pela desproporção das atitudes, hoje filmadas ou orquestradas, vem desde a época em que postulei a morte da minha filosofia predileta e só aumenta cada vez mais ano após ano. Tendo sido tais pressupostos já enrijecidos com uma certa convicção, que graça teria para mim Assassination classroom, cujo enredo, se é possível de ser resumido, trata do objetivo comum da humanidade de matar um professor em sala de aula? Ainda mais sendo eu mesmo um professor, por que não refutei o tema do filme com asco?

Há três figuras de professores no filme. Um deles é um monstro alienígena amarelo, sorridente e extremamente educado, com corpo de polvo e velocidade extraordinária, batizado de Koro-sensei pelos alunos. Uma segunda professora era inicialmente uma aluna intercambista com intuito comum de matar esse mesmo monstro e que se torna sua amante. Um terceiro é um professor sadomasoquista que também tem a intenção de matar o professor-monstro, como todos à sua volta. O desejo do assassinato do monstro não era apenas motivado pelo fato de que ele prometia destruir a terra, mas também por haver uma recompensa em dinheiro.

Os alunos estabelecem, ao longo do filme, uma relação ambígua com o extraterrestre, pois se estão incumbidos de dar um fim à sua vida (algo que ninguém consegue, dada a sua velocidade), por ser uma ameaça, por outro, tornam-se tão polidos e cultos quanto ele.

Diacho, que significa "matar o professor"? Perguntava-me. Uma metáfora para a superação dos discípulos? Se fosse isso, este filme talvez seja o maior poema visual encomiástico à figura docente que eu conheço. Não é à toa que os alunos desajustados o prefiram ao professor sádico.

Uma aluna-robô, criada com o intuito de destruí-lo, também não consegue a empreitada e ainda por cima atrapalha as aulas com seu tiroteio ininterrupto. Seria uma crítica à internet? O lado irônico é que, não tendo amigos, tal aluna é transformada em rede social após conhecer os perfis (fornecidos pelo próprio professor extraterrestre). Inofensiva, após essa metamorfose, torna-se, como os outros, incapaz de matar/superar o professor Koro (e o seu conhecimento?).

Se estou certo na minha interpretação, um elogio tal à figura do mestre só poderia ter vindo mesmo de um país oriental. Não foram poucos, porém, que me querem convencer que eu esteja viajando na maionese. Pode ser. Precisaria rever. Mas, supondo que esteja errado, eu não seria o primeiro a pensar que se o construto mental não condiz aos fatos, danem-se os fatos. Apenas seria incoerente com o que penso acreditar.

Revi esses dias outro filme mais cult com os mesmos óculos. Dessa vez, trata-se de um filme completamente diferente, mas, segundo a minha vontade, com a mesma temática.

Sim, vontade, pois se persigo linha por linha o que um Kant fala, levando a sério a sua obsessão que nunca o fez sair de Königsberg, faço-o porque tenho obrigação de entendê-lo. Outros, que julgo não ter a intenção tão séria, como um Hegel, que se contradiz o tempo todo, ficará para sempre dependente da minha vontade ou não como qualquer obra de arte ou filme do cinema.



O segundo filme com a mesma temática do conhecimento, se não sobrevejo novamente, é Only lovers left alive do impagável Jim Jarmusch. Vampiros de quatro gerações, um deles contemporâneo de Shakespeare, outro do final do século dezoito, outra do período romântico e uma quarta mais moderna, retratam o tédio que causa a vida, na solidão de um mundo estrangeiro, não povoado por iguais.

Os não-vampiros são chamados depreciativamente de "zumbis": são eles que ditam as leis e, para continuarem impercebidos, submetem-se a elas. O custo da vida longa para os entediados e exangues vampiros é perceber a decadência de seu entorno em vários âmbitos, por exemplo, a decadência moral, ecológica e estética que os circunda.

O que me fez evocar esse filme no meio deste assunto do conhecimento é o lamento igualmente frequente na fala dos vampiros acerca da decadência intelectual. Cultíssimos, os vampiros viveram com as maiores personalidades literárias, filosóficas, científicas e artísticas. Falam delas com intimidade: Shakespeare era um idiota, Byron era um cretino, Wollstonecraft era deliciosa. Seu conhecimento vem da vivência e da leitura, conforme a idade. A vampira, mais jovem, idealiza essas figuras e gosta de ouvir as histórias do companheiro. O mais velho é, aliás, o próprio escritor Cristopher Marlowe.

O paraíso estava no passado, tese do filme. Não é à toa, penso, que se chamam Adam e Eve. O conhecimento, aliás associado à maldição da mortalidade causada pela fruta proibida edênica, é o que mais abunda nas suas longuíssimas vidas vampirescas. Não são imortais, mas a longevidade é uma tortura, pois veem esse conhecimento decair ou levar à destruição do planeta. Têm sede da antiga beleza, anseio faminto que se torna irrefreável ao verem um casal apaixonado. Que mais belo poderia haver que o amor? Que escolha poderiam ter se não desejassem o belo? Platão concordaria plenamente. A busca do conhecimento é, em última instância, a busca do belo.

Desajustados como eu era, saindo da minha cidade, e sou, por não quase nunca encontrar afinidades intelectuais e estéticas, a maldição de quem anseia o conhecimento é ter uma vida longa demais entre zumbis. Diferente das ficções, nem sempre há monstros para pautar nossa existência e que nos instiguem a superá-los.