O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

NEM RECORTAR NEM CONTEMPLAR

Há tempos penso que todo recorte está a serviço de uma ideologia. Se há algo difícil de explicar, como as manifestações populares recentes, logo setores antagônicos se apressam para arriscar teses acerca de seu substrato. Criticantes apontam que as insatisfações vêm da carência de algo esperado e os criticados se orgulham do substrato supostamente por eles pavimentados. Alguém poderia questionar se as pessoas têm hoje mais tempo ou mais vontade para o protesto. Ora, a falta de tempo determina a falta de vontade. Mas, inversamente, a vontade não vem de um excesso de tempo. Aliás, o tempo humano é algo disputado pela sanha da cobiça. Por isso criaram-se leis trabalhistas: para que o seu tempo fosse compatível a uma vida digna. Se a vida não é digna, então os criticantes estão certos. Por outro lado, os criticados não faltam completamente com a verdade, apenas se valem de retórica. Numa democracia, o caminho há de ser pavimentado. Se não o fosse, estaríamos nas bibocas e barranqueiras do silêncio forçado. O protesto válido é o protesto ouvido e se é silenciado, como fazer-se ouvir senão penosamente? Como a causa do mal está associada à potência, a qual, por sua vez, é configurada conforme a sua intenção, a desculpa do criticado, portanto, quase tem o tom de uma ameaça. Devemos curvar-nos e agradecer pelo pavimento sob nosso chão?
O problema central aqui é a autoria. Ninguém pavimentou chão nenhum. Ele foi pavimentado aos poucos, conjuntamente, lentamente e ainda há muito buraco. Mas ninguém protesta sem algum engajamento. Isso significa quase invariavelmente não temer o ridículo. Por isso tanto engajamento, sobretudo em épocas pouco democráticas, é velado. O discurso camuflado é, porém, somente eficaz quando o tirano não é inteligente.
Mas, se nenhum recorte é neutro, antes tem pressupostos, os quais escancarados se tornam ridículos para uns e dogma para outros, qual seria a situação oposta ao recorte? Aparentemente o inverso de recortar é contemplar sem julgamento algum. A verdade fanática de quem é a favor ou contra algo seria superada em nome de uma única formulação: não existe a verdade. Será isso sempre positivo? Penso que não. Lido com questões complicadas, como Etimologia. Ora, é consabido que nesse assunto há tantas opiniões e tanto chute que raramente alguém tem coragem de atribuir-lhe algum caráter de ciência. Mas em muitíssimos escritos meus eu argumento (e provo) que não há razão por que a Etimologia não possa ser uma ciência. Apenas não é porque ainda não é. Trata-se de algo como a Astronomia no tempo de Galileu. A postura anti-recorte de que falei acima aceita tudo e esse relativismo cético absoluto chega às beiras da insanidade.
 
 
Por exemplo, recentemente fui à magnífica exposição Mestres do Renascimento no CCBB onde pude apreciar, entre tantas obras, a belíssima Adorazione dei pastori, de Lorenzo Lotto, de 1534. Além da fila hedionda que enfrentei, da falta de informação sob os quadros expostos, o que mais me chocou foi uma linha do tempo. Como é uma das coisas que mais adoro, fui lê-la. Uma das informações lá constantes causou-me um ceticismo tremendo, beirando o asco. Dizia algo sobre Thomas Morus e sobre seu neologismo utopia, que, segundo o texto, viria do grego útopos. Novidade: essa palavra não existe em grego antigo (apesar de encontrar quase meio milhão de ocorrências no Google hoje). Aliás, no blog anterior, eu havia dito que acho a palavra utopia esquisita, porque a negação é feita com o advérbio grego ou "não" em vez do prefixo a-, algo que é ainda muito surpreendente para mim (e a falta de produtividade desse u- negativo mostra que também não foi algo do gosto de outras pessoas cultas da época).
Bom, voltando ao que eu dizia, alguém que se vale apenas da contemplação sem nenhum engajamento achará isso uma picuinha. A minha pró-cientificidade etimológica parece uma firula, mas uma coisa é reconstruir uma verdade, outra bem diferente é inventá-la por algum mecanismo enlouquecido. A pessoa que diz "utopia, do grego útopos" tirou isso de onde? É uma impostura ou uma brincadeira como o do caso Sokal (vide o livro Fashionable nonsense de Alan Sokal e Jean Bricmont)? Explicar essa etimologia fantasiosa como fruto da ignorância de grego da parte de seu autor é menos grave do que desnudá-la sob a acusação de delírio ou má-fé, certamente. De qualquer forma, não consigo ver, como o cético radical, ao menos na minha especialidade, que a verdade (ou algo parecido com ela) seja igual à descarada e provada não-verdade.
Pois bem, o engajamento é ridículo e a postura blasé com a verdade não é menos. Que saída temos? Se não quero ser um fanático nem um Diógenes de Sinope, onde no infinito continuum de opções intermediárias eu amarro o meu burro? Como viver sem recortes e ao mesmo tempo buscar a verdade? O oposto hoje em dia não parece razoável (viver com recortes e não buscar a verdade).
O empresário produtor de azeite Tales de Mileto pensava que o princípio de todas as coisas era algo imutável. Como era difícil para seu contemporâneo Anaximandro aceitar a sua sugestão de que esse princípio era a água, criou uma abstração, herdando-a provavelmente do orfismo. Para Anaximandro, a geração das coisas a partir desse "princípio indeterminado" gerava uma injustiça que só era expiada com sua corrupção. É fácil ver aí alguns brotinhos da planta que enxertada daria os frutos do pensamento judaico-cristão no período pós-alexandrino. Pitágoras de Samos (se existiu, pois é uma figura diluída entre seus discípulos) bebeu na mesma fonte de Anaximandro quando divulga a teoria da metempsicose. Dizem seus longínquos sucessores, a partir de cópias muito modificadas, que a tortura do ciclo infinito das reencarnações só poderia ser interrompida com uma vida filosófica de contemplação. Mas os pitagóricos, diferentemente dos céticos que aparecerão mais tarde, associavam essa contemplação que deu tantos frutos surpreendentes (como a identificação do princípio com os números) com verdades bastante discutíveis, algumas bizarramente supersticiosas, vindas quer de uma cabeça insana, quer de uma tradição convergente, quer do mero fruto simbólico das palavras. Seja como for, o espanto é parte da sensação de quem lê qualquer coisa real ou inventada sobre o pitagorismo.
 
 
Ninguém pode acusar a atitude excêntrica desses pré-socráticos de insinceridade e impostura. Até porque não há documentos suficientes para provar isso. Mas se toda a doxografia está certa, mesmo aí havia o embrião perigoso do dogma. Quando o veneradíssimo número dez (1+2+3+4) dos pitagóricos, do qual tantas propriedades se auferiam, acabou não sendo aplicável ao número dos nove "planetas" da época (que incluía a lua), inventou-se, para completar o esquema, uma Antiterra, cuja tradição deve ter tido curiosos meandros neomedievais até hoje no discurso esotérico. Assim, o famoso teorema dos triângulos retângulos e a Antiterra formam proverbialmente os dois lados de uma mente complexa. Se Pitágoras existiu.
Mas a Ciência superou isso, ao menos no plano discursivo. Se o recorte de que tudo é dez não combina com o pressuposto tudo deve ser demonstrado, abandona-se esse dez miraculoso, abandona-se a Antiterra e não se fala mais nisso. Não foi assim com a Alquimia? Vivendo sem recortes definidos e à busca da verdade, a ciência quando não conspurcada pelos interesses é a saída para o paradoxo acima. Os cientistas da gema em sua ascese quase agostiniana em nada diferem dessa lendária postura dos crotonenses. Repito: falo da ciência como epistéme, como conhecimento, como scientia, substantivo abstrato do verbo scire "saber", nada mais.
Essa ciência de que falo nada mais é que a busca pitagórica, propositalmente anônima, o desejo de diluir-se para que a verdade possa emergir, tão diferente do ensaísmo dogmático das celebridades.  Nietzsche, popularmente conhecido como "doido", teria traduzido o fragmento de Anaximandro de Mileto como "de onde as coisas têm seu nascimento, para lá também devem afundar-se na perdição, segundo a necessidade; pois elas devem expiar e ser julgadas pela sua injustiça, segundo a ordem do tempo". Heidegger achou isso obscuro demais, errôneo filologicamente, e propôs (para desespero do tradutor da série Pensadores da Editora Abril), após 28 páginas de discussão em que mostrava erudita- e confusamente (para dizer o mínimo) a necessidade da segmentação correta da frase grega, esta outra tradução, bem mais clara, a seu ver: "segundo a mantença; deixam pois ter lugar o acordo e assim também o cuidado, um para o outro (no penetrar e assumir) do des-acordo". Tive preguiça de ver o original alemão. Quem entendeu, explique-me por favor. Isso é ciência no sentido que propus acima? Veja, ciência não se opõe à filosofia.
Apresso-me a dizer que não falo daquela ciência alvo-fácil, sobre a qual Sokal & Bricmont falam. Não falo de positivismo, até porque acho que Comte era um biruta bastante ignorante e que sequer mereceria ser vidraça de pedrada. Positivismo em nada se distingue de obscurantismo. Positivismo para mim é o oposto da racionalidade. E ninguém até hoje provou que a irracionalidade é boa. Quando muito, é algo legal num momento de bebedeira, da qual não duvido que os pitagóricos tivessem se abstido. Essa irracionalidade tão propagada pela religião dos filmes dos EUA e tão pouco praticada pela economia desse mesmo país acabou tornando-se onipresente. Esgueirando-se como uma osga, mefistofelicamente nasceu do Iluminismo. Yin saindo do yang, coetaneamente tanto na dinastia Zhou quanto na Jônia.
Enfim: recorto o que me interessa ou contemplo tudo sem julgamento? Não saberia dizer. Nos dois lados há hipocrisia. Nos dois lados há vontade de poder. Nos dois lados há, no fundo, apenas memes de explicações e posturas perante o mundo. Aceite-as ou esnobe-as. Se não sumirem completamente, como na mensagem das inscrições maias, ou parcialmente, como na das egípcias, a escrita dará um jeito de praticar a injustiça de Anaximandro, ressuscitando-as.