O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

sábado, 12 de abril de 2014

HOMO INSIPIENS

Durante o Renascimento, enalteceu-se muito a racionalidade humana, postura que se contrapunha à triste imagem medieval do homem como um ser decaído pelo pecado de Eva. Mas, no fundo, essa imagem otimista não mudou tanto assim:  o especismo autoencomiástico do homem sempre se baseou na sua suposição de criatura privilegiada,  feita à imagem e semelhança do Deus bíblico. Tal apologia a si mesmo se vê novamente nos dias de hoje. Desconfio que o recurso do autolouvor talvez queira esconder algo mais presente em nós do que nossa inteligência.
E o que seria mais caracterizador de nossa espécie se não a nossa racionalidade?

Ouso responder, de chofre: nossa burrice.
Provam-no as frequentíssimas decisões sofismáticas dos cérebros humanos e suas atitudes movidas por puro hábito. Sim: a burrice é a regra e não a exceção de nossa espécie.


Onipresente no nosso dia-a-dia - muito mais do que qualquer esforço civilizatório que precisaria ser treinado e que seria artificial demais para a inércia de nosso raciocínio - por meio dela, agimos quase sempre. Por impulso e não por racionalidade, desembaraçamo-nos facilmente dos arreios criados pela observação registrada por longa sequência de gerações. Queremos o aqui-e-agora. Se desejamos o pilar, arrancamo-lo, mesmo que toda a casa desabe sobre nossa cabeça. Somos eminentemente irracionais, tanto quanto qualquer outro animal. A racionalidade é um suspiro esporádico.
A burrice é algo natural. Provemos. O maior inimigo do urso polar não é o homem ou o aquecimento global, mas o próprio urso polar. Dois machos, ao encontrarem-se, não se aliam. Matam-se, se preciso, movidos ambos pela instrução "mate-o", ditada pela máquina burra que acende essa vontade nas suas cabeças de urso. Um urso a menos seria vantagem para quem? Não é para a própria espécie, apesar do ritual milenar de vencer os rivais para garantir a propagação de seus genes (e não os dele). O que não estava previsto, no raciocínio ursino era o surgimento de um inimigo maior que outro macho (o homem, o aquecimento global etc.). Ignorando esse inimigo, continuam a fazer irracionalmente sua ursada genética. Igualmente burras, as mariposas não previram a existência de lâmpadas elétricas e burramente vão em sua direção, movidas pelo aguçadíssimo sentido desenvolvido pela seleção natural, o qual as dirige à luz. Burrice. A não-adaptação inteligente a mudanças graves não pode ter outro nome.
Igualmente os homens, mesmo sabendo que há superpopulação, procriam-se; sabendo que faltará dinheiro no fim do mês, gastam. "Como se não houvesse amanhã" (perdão, jamais pensei que citaria Renato Russo). Como se não houvesse outros que pensam igualzinho. O hedonismo é inevitável; o egoísmo, irrefreável; o egocentrismo é a lei. O mundo, mes enfants, c'est moi.
Frase boa para um tirano. Aliás, tomem cuidado com a burrice. Ao lado dela estão as instituições, o poder e a maioria. Altiva, a burrice nos olha de cima de seu trono, circundada de um séquito imenso. Dedo em riste, está pronta para apontar todas as nossas falhas. Segue-se um aplauso após a acusação.
Sócrates cansou-se de ir à Ágora, portanto, após julgado, só pôde atrair a comoção de seus fiéis discípulos. Sua sentença foi apenas um episódio nas decisões pouco inteligentes da humanidade unida (desculpe-me, Izzy Stone, se não concorda comigo). Caiu Sócrates e tombaram injusta e impiedosamente tantos outros, quando a burrice vergonhosamente proferiu sua sentença. Prova-se assim que nem sempre foi a maldade a responsável por cabeças rolarem.
Quem sofre invariavelmente, podem perceber, é o ermitão, que sucumbe  sob a mão de Salomés pouco afeitas à ideia de que cada cabeça é uma sentença, com o perdão do trocadilho. Na verdade, a frase da Queen of Hearts é a única proferida pela tirania: um non sequitur equivalente ao diagnóstico viciado e reiterado do mau médico. O que a gigantesca massa, em sua maioria absoluta, mais teme é o pensamento distinto de um único indivíduo. O divergente que não se adapta a grupo algum é um perigo inquestionável para a maioria absoluta, que berra: abaixo o conjunto unitário! Meus queridos leitores que discordam de mim, saibam que este sempre foi o lema geral em toda a história da humanidade. Sintomático, não?
Há vezes, porém, que a coisa é diferente: depois de muito empenho de autoconsciência um povo genocida devidamente punido por tribunais internacionais consegue enxergar sua loucura coletiva e, por isso, as pessoas ficam tão avessas a pensar conforme a massa, que passam um bom tempo a valorizar a sua própria opinião e a sua atitude individual. No entanto, duvido que essa reação coletiva à burrice se torne permanente como prática social. E como é passageira, novamente, isso é sintomático: parece que o que há e sempre houve foi a vontade de seguir o liderzinho mais próximo, caso contrário, chelloveck, Alex tolchokará seu gulliver e seus yarbles muito horrorshowBog knows tudinho com seus glazzies, meu droog...


Diga-me, então, se entre Xerxes e seus Imortais não se interpõe, como apóstase necessária, a violência para com aqueles que ousam discordar das burrices que vêm do Mundo das Ideias? A massa se cala perante o tirano ou é cúmplice de sua perversidade? Ou pior, enxergando-se como poder superior, a massa, na união de suas burrices individuais, não promoveria talvez violência ainda maior? A vaca, consciente de sua força e de seus chifres, não escornearia quem a espetasse? Mas seria apenas uma vaca, exemplarmente punida e transformada em churrasco. Mas se uma súbita consciência se apossasse coletivamente de seus cérebros bovinos (exemplo válido também para elefantes, rinocerontes e cavalos), o homem teria chegado a ser o que é agora? Bom, difícil de responder, de qualquer forma, agora é bem tarde, pelo menos posso deduzir que essa revolução motivada pela rebeldia animal seria hoje impossível, após a invenção das armas de fogo.
Por fim, subverte-se o poder. Os persas desapareceram, subiram os alexandrinos. Que nasce depois? A fragmentação e, por conseguinte, a inveja, que necessita da igualdade para existir. A verdade é a seguinte: se todos quisessem tomar o lugar do tirano, em vez de terminar com a tirania, não teríamos um segundo de tranquilidade na nossa vida. Opta-se, portanto, muitas vezes, por deixá-lo lá fazendo suas tiranicezinhas. E chama-se "estratégia" esse tipo particular de burrice.
Mas, convenhamos, não é de poder que estou falando. Falo da burrice lato sensu, isto é, da nossa tendência a falar somente o que foi ouvido, como se nosso cérebro fosse uma máquina de carne moída: nela não há transformação. Não existe grosso modo fotossíntese de palavras. E eis uma bela definição para a burrice. Entra carne em pedaços, sai carne moída.

E poderia ser diferente? Não sei, mas acredito, às vezes, que sim. As incrivelmente poucas vezes que transformações reais foram documentadas assemelham-se a  pedaços de cartas boiando no vastíssimo oceano. Muitos desses papeizinhos já não boiam: foram diluídos, decompuseram-se anônimos. Seu conteúdo agora é inimaginável. Novidades reais são como formigas esmagadas involuntariamente sob botinas de trabalhadores indiferentes ao seu formicídio, empenhados em erguer uma estátua para alguma divindade.
Resta-nos então a resignação? Pior, resta-nos assumir que somos assim e, diante disso, aprender a nos temer. Como dissemos, na seleção natural, nada é mais perigoso do que sua própria espécie (vide o caso do urso polar). Bactérias parecem menos burras que nós, pois se adaptaram a todas as situações da Terra e assistirão de camarote o dia da desintegração do sistema solar. Até lá, já teremos sumido como espécie há muito tempo. Inútil encomendarmos um ingresso antecipado para nosso tataratataraneto ou então pedir a São Pedro que dê um jeitinho de arrumar-nos um lugar privilegiado, no alto de alguma nuvem.
Dercy Gonçalves (1907-2008) resumiu bem a nossa situação lamentável: se me lembro bem, certa vez, disse ela que, perto de outras pessoas, agia como a lady que sabemos que era, mas assim que não houvesse mais ninguém olhando, jogava no chão o papel da bala que estava chupando. Triste é a confusão tropical entre inteligência e esperteza, mas, enfim, deveríamos assumir (como ela) que nosso cérebro não foi moldado apenas para raciocinarmos. E está certíssimo, caso contrário não seríamos vítimas de tantas músicas virais.
Chegou o momento tão esperado de dar um conselho. Todo dia deveríamos, ao acordar, ir imediatamente ao espelho, olhar-nos bem nos olhos e dizer "eu sou burro, uma coisa completamente ilógica, nada o que eu creio faz sentido, nada do que eu faço é útil, mesmo assim, gosto de viver e gosto de conviver com aqueles que me dão prazer, amém". Não sei se ajudei.
Dizem que, com Copérnico, o homem foi rebaixado, deixando de ser o centro do universo. Depois, com Darwin, foi ainda mais rebaixado, pois deixou de ser a criatura preferida de Deus. Por fim, com Freud, deixamos de ter certeza de que estamos plenamente conscientes do que fazemos. Essas descobertas inteligentes, espaçadas por muitos anos de burrice, tornaram o homem mais triste, mas não o tornaram mais sábio. Com elas, convive ainda, na maior porção do nosso ser e no nosso íntimo mais burro, uma esperança de que esses pensadores se enganaram e que tudo que afirmaram ainda poderá ser refutado pelo inverso. Faltaria talvez reconhecer que pensamos assim, apesar de não nos faltarem provas de que estamos enganados. Somos burros por comodismo, mais do que por opção.

Não concorda? Responda então: há algo dentro de você que sempre diz "eu quero, eu anseio muito por ser uma besta"? Certamente não. Por que não dizemos isso, talvez nem mesmo Freud explique. Mas eu desconfio que é porque somos burros sem ansiarmos sê-lo, isto é, por inércia, e não como um objetivo de vida. Parece que Lutero chegou confusamente perto dessa consciência, pois sofria de um desamparo psicológico muito complexo, mas, mesmo ele, sucumbiu a premissas que criou para atenuar seu sofrimento e deu, obviamente, duzentos passos para trás.
Que fique claro: não somos apenas ignorantes. É algo muitíssimo mais grave: não queremos, na verdade, saber de nada que nos convença de que não temos razão. Mesmo se o argumento que nos convenceria viesse da nossa própria cabeça! Afinal, esse argumento sinistro pode ser apenas um índice de loucura (diz o cientista) ou, pior, a voz de um demônio (diz o religioso).