O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

terça-feira, 30 de julho de 2019

A MODA AGORA É FALAR TUDO

Leitor que desmaia quando descobre que não sabia o que todos estão comentando desde o meio dia de hoje, eis agora uma chance única de atualizar-se, de ajoelhar-se perante o novo ídolo, a informação, e sair por aí humilhando quem não sabe de nada. Acontece que, há muito, a informação não é nada mais que o óbvio. O óbvio, portanto, é o que vem movendo as cizânias e as alegrias do dia a dia. Então que fazer? Falaremos o óbvio daqui para a frente? Há algo mais para descobrir, se uma descoberta nada mais é que aquilo até há pouco encoberto e agora nos aparece epifanicamente? Mas se algo descoberto não é óbvio, qual o sentido de descobrir algo? Coberto ou encoberto, o óbvio não tarda a emergir, pondo seu longo pescoço para fora, para nos encarar e dizer: "olha para mim, não sou um déjà-vu? Não sou aquilo que sempre esperaste ver? Não sou eu que estou ao teu lado, dia após dia, noite após noite?". O óbvio encoberto, descoberto sem o encanto da ciência, deixou sua cripta para escancarar-se perante nossos olhos. O óbvio é a mais verdadeira das verdades que toda lógica sempre buscou. Nenhuma carta extra na manga: só pode ser aquilo que já se é. E o óbvio é obviamente aquilo que todos desejávamos, eu e tu, nós e vós, ele, ela, eles e elas. 

Mas o que é uma coisa óbvia? Por exemplo. O que lês, leitor, é uma postagem de um blog. E na postagem de um blog há palavras escritas. E palavras escritas são sequências de letras, que não se juntaram aleatoriamente, mas foram escritas por alguém. E esse alguém sou eu. E eu sou um homem, nascido em 1968 em Botucatu, e desde lá continuo sendo homem e botucatuense, apesar de não viver mais nessa cidade. Então eu sou algo e estou algo também. Mas nas minhas letras e no que escrevo não estava óbvio quem havia escrito, nem quem sou eu, nem o que penso sobre isso ou aquilo, nem para que time torço, nem se gosto de pequi: tudo isso são essas palavras que dizem. Se eu dissesse que eu sou uma adolescente nascida em Maragogipe, que mora atualmente em Maceió, eu também me construiria, mas estaria mentindo ou fingindo. E eu saberia que estou mentindo ou fingindo, a não ser que eu tivesse algum tipo de personalidade que me fizesse crer ser uma adolescente maragogipana de fato. Quando um romancista, um ator ou um cantor, apesar de masculino de nascença, se coloca num eu feminino, estaria mentindo? O que cultua o óbvio diria que sim. Mas outro dirá que "mentira" é obviamente uma palavra inadequada, porque uma mentira é muito diferente de uma encenação. E se alguém recebe um santo, estará necessariamente mentindo ou encenando? Não há espaço algum para acreditar que ele de fato se torna o santo, na subjetividade de seu ser? Que achas, meu leitor? Se te tenho em boa conta, acreditarás que o óbvio se torna cada vez mais difícil de se definir à medida que outros exemplos mais sutis te sejam apresentados. Se a fórmula que define o óbvio subentende a verdade e se a verdade está associada ao subjetivo, então é preciso definir a qual verdade, veritas, aletheia, emunah, estou me referindo. Ou seja, definir o óbvio não é tão óbvio assim.



Mas tudo é subjetivo? Eu posso achar que a terra é esférica; tu, que é plana; ele, que é dodecaédrica? É tudo questão daquilo que ponho na minha boca, sinceramente (dizendo a verdade verdadeira ou dizendo a "minha" verdade) ou insinceramente? Ou há algo em que me posso fiar e que não é subjetivo, como diz a ciência? Por exemplo, sinceramente declaro que hoje, dia em que escrevo estas linhas, é 30 de julho de 2019, e isso é verdade verdadeira, agora e amanhã ou daqui a três mil anos, quando algum arqueólogo digital decifrar minhas palavras nessa língua em que me expresso. Isso é uma verdade diferente da verdade da minha afirmação enlouquecida, mas da qual eu poderia estar plenamente convicto, de que hoje é dia 25 de dezembro de 2222, portanto, Natal. Por mais que eu ame o Polo Norte, as renas e os gnomos hollywoodianos que eu aprendi viverem com Papai e Mamãe Noel, não convenceria ninguém, apesar de não ter dúvida de que meu delírio seja verdadeiro. Essa verdade (percebes?) é de outra ordem da primeira afirmação. Posso dizer que nas duas eu tenho boa fé, mas a primeira verdade é comungada por todos, já a segunda só é verdade para mim. Essa segunda verdade é que eu chamaria de subjetiva. A primeira verdade seria intersubjetiva: na verdade nem todos concordariam com ela ou concordaria com ressalvas. Ambas as verdades, subjetiva ou intersubjetiva, dependem de com quem eu falo. Um judeu entenderia que há alguma verdade quando afirmo que hoje é 30 de julho de 2019, mas acredita que também hoje seja 27 de Tamuz de 5779. Haveria, portanto, duas verdades intersubjetivas que responderiam à pergunta de que dia seria hoje. Se eu começasse, contudo, este parágrafo dizendo que hoje é 27 de Tamuz de 5779, muitos não entenderiam e pensaria que eu estivesse tão louco quanto se eu afirmasse que hoje é 25 de dezembro de 2222. Um judeu normalmente conhece o chamado calendário civil, mas quem não é judeu não saberia nem sobre o que estou falando. Aliás, a coisa não para aí: um muçulmano diria que hoje é 27 de dhuu l-Qa´dah de 1440 e, para cristãos ortodoxos, o dia 30 ainda vai demorar treze dias, pois hoje seria ainda 17 de junho de 2019 no calendário juliano.

Apesar de tanta heterogeneidade cultural, sabemos que outras intersubjetividades não-culturais também existem. O que parece bizarro é que alguém diga que hoje não é 27 de Tamuz de 5779, nem 27 de dhuu l-Qa´dah de 1440, por aceitar unicamente a resposta de que hoje seja 30 de julho de 2019. Uma mente preparada para o óbvio tem de depor as armas de seu fanatismo e dizer: sim, a coisa mais óbvia do mundo é que hoje estamos no ano de 2019 e de 5779 e de 1440 ao mesmo tempo em contagens completamente diferentes e que todas elas são fruto de convenções. Se eu penso que apenas uma dessas datas está correta, desprezamos o outro como se fosse um sub-outro. E não existem sub-outros, a não ser na cabeça do fanático. 


A existência de sub-outros é fruto de uma aberração da antiga mente hierárquica. E hoje em dia, todos querem ter o direito de dizer em alta voz suas asneiras. "Faz o que tu queres, pois é tudo da lei", já dizia Raul Seixas. Então tomemos banho de chapéu, discutamos Carlo Gardel e outras coisas abnóxias. É o que está acontecendo? Por um lado, nunca seguimos tão à risca a Lei de Thelema, mas, por outro, acontece o óbvio, decorrência inconcussa dessa filosofia: se fizermos tudo o que quisermos, poderemos, por exemplo, querer destruir quem diz que hoje não é dia 30, poderemos querer impor somente a nossa única verdade e isso é exatamente a consequência aberrante de crermos em sub-outros. 

O jeito é convivermos com os outros, sem querermos impor o que é nossa verdade subjetiva, por mais asco que cause a verdade subjetiva daquele que quer nos destruir e impor a sua verdade subjetiva? Parece algo meio pateta: até um ruminante se protege de um felino voraz desenvolvendo uma velocidade que deixe o bichano comer poeira. Para não vermos ninguém como sub-outro e não sermos vistos como sub-outros, precisamos tolerar a violência alheia e dar um jeito de desenvolver pernas velozes para fugir? Duvido que alguém que faça isso não torça para haver outros menos patetas que concordem comigo e que pensem diferentemente de mim, a ponto de vencer nosso inimigo comum. Enquanto isso, qual meu conselho? Filosofa-se?

Até a mais séssil das plantas tem uma ajudinha evolutiva da seleção natural e desenvolve venenos nas suas folhas e como não há veneno eficaz para todo tipo de herbívoro, foca-se no inimigo mais antigo: por isso alguns venenos de plantas são eficazes apenas contra alguns insetos daninhos regionais, que co-nasceram com elas há muito, muito, muito tempo, diferentemente de quadrúpedes que vieram mais tarde e desenvolveram buchos eficazes para devorá-las. Os inimigos antigos foram driblados, mas os mais recentes foram otimizados, pois o herbívoro que come uma planta, defecará suas sementes de difícil digestão e contribuirá para a vitória da espécie supostamente desprivilegiada. Eis que uma única grama cortada com os dentes equivalerá a dez outras que nascerão na próxima estação.

Distanciei-me demais do óbvio. Voltemos a ele para uma última imagem. A coisa mais óbvia do mundo para mim sou eu. E como me definir? Eu tenho uma série infinita de atributos que se reúnem nessa palavrinha de duas letras, "eu": um sobrenome, uma vida, dois braços, dez dedos (ou vinte, dependendo da língua que me descreve), uma picada de abelha recente no braço esquerdo, algumas reações químicas nesse local da picada, estou vivo (seja lá o que isso significa), enxergando e não enxergando (dependendo de estar com ou sem óculos), percebendo e não percebendo as coisas (dependendo de estar acordado ou dormindo), raciocinando e não raciocinando (dependendo do nível de vigília em que estiver), tendo vontades e não tendo vontades (dependendo do grau da minha  euforia ou de minha depressão), tendo desejos e não tendo desejos, tendo planos e não tendo planos etc. Estou ora sentado, ora de pé, ora deitado, rarissimamente de ponta-cabeça (a não ser em algum brinquedo radical de parque de diversões que pouco frequentei), estou com fome ou não, estou com vontade de ir ao banheiro ou não, estou tomando banho ou já tomei. Essa lista é grande demais. O que eu sou não é fácil de dizer. Mais fácil dizer o que estou fazendo agora. O que seria? Agora estou terminando esta frase com a letra A, minto, terminarei com um ponto final, que ainda não teclei, mas ei-lo sem mais delongas:. Pronto! Mas... um momento! O ponto final não estava no agora, mas num futuro proximíssimo, que julguei irrelevante e te enrolei (ou me enrolei?) na frase acima em que tentava relatar o agora. Se futuros se mesclam com o agora e não há agora para mim sem a minha história, de modo que o que eu sou é isso que já fui (e não sou mais) pensando no que serei, o agora é uma ilusão que não se pega com as mãos de jeito nenhum? Embora "eu sou" esteja no presente do indicativo, não há nada que sirva de referência na realidade para esse tempo psicótico. Dir-me-ás: ô Heráclito da Cuesta, afinal de contas, isso que acabaste de falar é a mais óbvia das obviedades ou uma descoberta filosófica? Se é uma descoberta filosófica, é de primeira ou de quinta categoria? Eu é que te pergunto, leitor: se é de quinta, qual seria a quarta categoria? E qual seria a sexta? Estou começando a achar que a coisa mais difícil do mundo é falar o óbvio. Espero que tu também.


Mas vejo-te novamente apelando para "razão" e "bom senso", vomitando aquilo que supões obviedades! Deves entender de uma vez por todas: o óbvio não se confunde com o polígono do verdadeiro e, mesmo se confundisse, o verdadeiro, ainda que concordássemos ser uno, seria necessariamente heteróclito, a menos que te assumas, olhando nos meus olhos, que, sim, tu és o maior ditador intolerante que o planeta já viu ou que Hollywood já sonhou nos seus wildest dreams, tão intolerante que, decerto, depois de dizimar todos os que supões ser sub-outros, continues teu hecatombe com os teus outros gêmeos, e, por fim, após toda esta terra estar arrasada, ao te veres num espelho, acabes por decidir que o mais óbvio teria sido apenas isto: eras tu quem deveria ter perecido, mais ninguém.