O MÁXIMO IDIOTA
Autobiografia
1999
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Gênesis
H
|
á
muita coisa que não existe.
E é tão fácil
saber o porquê :
o concreto é uma coisa
muito difícil
de entender , pois se encontra no limiar
do óbvio , dentro
da plena definição
do normal . Por
isso abunda mais
o que não
há. Não há a justa
democracia , o sublime
das explicações racionais ,
o sucesso do amor-livre. Não há um
deus-irmão, apenas um
deus-amigo, um deus
com o qual
se une o interesseiro . O não-há reina sobre mim e sobre ti,
assim como
aquele círculo
prateado que
despeja sua
luz tosca
sobre nossos
corpos . Círculo
que se afigura perfeito
devido à nossa
imperfeição da visão .
Assim como
a ilusão de um
momento que
nunca chega ,
que nunca
chegará, ao menos contigo .
Círculo que
lança sua
bênção sobre nós , amaldiçoando-me particularmente .
Sua cara prateada ainda
parece que vejo. O arrepio
daquele momento ainda
parece que sinto. O quarto
inunda-se com a luz
tosca , luz
que me
faz definir pouco
os objetos caoticamente arranjados. Tosca como o futuro que
assinei sob sua
bênção . O calor
dos corpos ainda
se sente. Quem não
sentiria? Também sou comum , embora me esqueça sempre .
Também sou animal :
é isso que
há. Mas não
se procura entender
o que é ser animal . Todos
preferem contentar-se com o que não há. O animal que não é tão animal . Isso
deveriam ser todos
e o são . Por
que eu
não seria? Por
isso sinto ainda
o beijo suado no chão .
Sobre nós ,
o que não
há: a transcendência .
O
amanhã estava assinado hoje , nesse momento .
Como se o passado
não houvesse. E só
há o passado ... O amanhã
estava naquela bênção-ameaça, amor obrigatório , incontestável ,
testemunhado por toda
legião de seres
que não
há. Se queres , leitor ,
são demônios .
Outros diriam que
são deuses .
Prefiro não classificar .
Estavam ali , apesar
de não existirem. Sua
luz macia
e luminosa tocava nossos
corpos e sua
delicadeza parece que
ainda sinto. Também
tenho dúvidas , leitor .
Será que há o único
do momento ? Nunca
mais revivi, ao menos .
Reviverei? Certamente , o passado repete-se a todo
momento . É incrível
como não
saímos nunca do lugar ,
apesar de andar
tanto .
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O Velho
A
|
o
leitor , pouco
se lhe dá quem
são esses
corpos . A mim ,
não . Estão aqui ,
ao meu lado
como a lembrança
de alguém muito
querido . Sempre
há alguém muito
querido , ou não ? Querido por quem ? Essa
é a única pergunta
de peso que
te farei, leitor .
Sim , porque
o amor recíproco
é a mais absurda
das contradições . Antes
do dia da conjunção ,
houve algo . Parece distante ,
pré-genético. Algo ancestral ,
arquetípico, longínquo . Um
velho sentado lia
com pervicácia e com
a competência de sua
letra de semi-alfabetizado. Esse ancestral lia sobre tudo o que não há naqueles livros
embolorados. Devorava trechos , não importando se estava em
língua estranha ,
incompreensível para
ele ou
para qualquer
um . Do lado
de fora , dois
demônios . O rosto
do velho está apagado
entre suas
imensas orelhas . A fala
dele revela que um
de seus pés
está em margem
segura e o outro
afundado na lama . Desde
o que há antes
da letra se percebe isso .
Eu ao menos
percebo. Velho relógio ,
que lança
em mim
o temor em
forma de líquido
cronometrado. O sem-sentido do velho sempre venerarei, assim
como a desconfiança do inconcreto que se vê . A água benta cai suja sobre minha face .
Vejo sua face
irada, mas isso
não tem a ver
com o momento
da varanda . Ele
lê e os dois demônios estão lá
fora . Não
esperam: fazem o momento . O momento do triunfo
da juventude . Sim ,
demoniozinhos pequeninos estão lá . Vê-se o fumaréu, ouve-se o estalido ,
que se torna
estrondo por causa da longa corneta de concreto ,
cuja boca
está na varanda . A pólvora
fedida e o estrondo imenso
desexorcizam o velho . Trazem-no para o que há, para afundá-lo ainda mais no que não há. Afinal
de contas , é essa a função
dos demônios . Esse
velho agora
tem mais uma prova
que se mescla
às que nunca
existiram a não ser
para ele . Como aquela prova , que houve, aquela imagem ,
esculpida em fruta
roubada, armada qual
um espantalho
em seu
quintal , criatura
à imagem e semelhança
dos demônios . Mete-se a foice naquela careta
hedionda , esculpida no mamão , apaga-se a vela
metida dentro
da fruta , queimam-se as pernas e braços
trabalhosamente amarrados, pulveriza-se,
reza-se sobre a maldita
aparição . Riem os demônios
enquanto vêem o velho
se afundar . Sim ,
uma vez dentro
do não-há poucos podem escapar .
Eu sou um
deles. Saí de lá . Não
conheço ninguém que
tenha feito o mesmo .
Lembro-me
da primeira vez
que tentei sair .
Levava um pote
de leite nas mãos
e uma igrejinha compeliu-me a persignar-me. Será que
Deus existe mesmo ?
Engoli aquele pensamento
a seco , sem
o leite , persignei-me de novo .
Era o Diabo que falara em meu ouvido ? Não , só mais tarde descobri
que um
daqueles demônios que
torturara o velho tinha
sido eu mesmo .
Então quis segurar
a mão do meu
colega , mas
era tarde .
Há muito já
havia havido. Ri-me naquele momento , agora devo chorar . Não disse que sempre ficamos no mesmo
lugar ? Aquele
velho está em
mim , quando
te vejo e te
desejo . O cuitelo do fictício amante
da esposa do velho
não era
fictício quando
perseguia sua esposa .
O choro da velha
parece-se tanto com
o teu gozo
de amor . Acredito que
está explicado o porquê desse amante estar entre nós . É meu convidado e
tu , perplexa ,
me perguntas
por quê .
Agora entendo bem
por que
eu , demônio ,
quis vingar-me desse velho . Como pude perceber tão a tempo ? Se
deixasse para mais
tarde , ele
teria morrido sem minha
vingança de antemão .
Meu mandamento
é este : vinga-te assim
que puderes e prazerosamente .
Eis a moral
que deves extrair
daqui e que me
ensinaste. Vinga-te de mim , imploro. Mas só me torturas :
tua vingança é não
me obedecer !
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O segundo demônio
Q
|
uem
era o segundo
demônio ? Bem
o sei, pois ainda
o é, ao passo que
eu já
não posso sê-lo. O segundo
demônio vive em
mim e, às vezes ,
o desejo , assim
como ele
sempre me
desejou e talvez ainda
me deseje. Por
isso , a luta
imensa e a necessidade
de exagerar seu
poder é tão grande entre nós . Agora , não tanto , porque já não sei ser demônio . E como
anjos não
há, sou apenas alguém .
Disfarço o demônio resignadamente.
Consola-me saber que
o dever tolhe o poder , jamais o querer . E esse querer ferve nas
profundezas do dever . Sua
superfície é lívida
e tranqüila , mas
da região bêntica está vindo uma explosão que
levanta metros de sujeira .
Não sou nem
superfície nem
explosão . Bóio nessa região intermediária
que sentirá a terrível
turbulência daqui a pouco .
Mas e o demônio ?
Pergunta-me impaciente o leitor . Vê que sei de tudo ,
não me
contento com
a onipotência. Quero também a ti, maldito leitor .
Ou esqueceste das funções
do demônio ? Se não
vais lá para baixo , meu colega , que
pode estar a teu
lado te
levará. E farás companhia ao velho . Quanto
ao segundo demônio ,
pouco sei, a não
ser do desejo
mútuo . Ele
derrubava qualquer paliçada
que obstasse seu
caminho . Na sua
procura pelo nada , diz ter arrombado a
alma de tudo .
Sofre muito , com
certo prazer esse demônio . Primeiro , teve de mudar sua imagem magra e engordar , ficar atraente . É o que ele me diz a mim , que nada sei
dele. Nem parece que
se lembra daquele detalhe imenso que me pertencia e do qual
se ria muito .
Esse detalhe ,
leitor , pode ser
o que quiseres. Desde
o mais vil
detalhe da carne ,
até o mais
elevado dom
da alma . Não
tendo conseguido me usurpar ,
usurpou a um mais
fraco e reina
absoluto . Não
poderia ser diferente . Agora
mostra-me os altares que erigiu. Quebra
alguns só
por capricho ,
pois quer
mostrar-me que os tem. Como se dissesse: “faz o mesmo ”.
Erigi um altarzinho, até bem caprichado e ele derrubou o seu ,
que parecia cópia
do meu , não
fora levantado antes .
Em seu
lugar , construiu um
monumento formidavelmente horroroso , ao qual
tive de me render .
Invejo-o do profundo das minhas entranhas .
E ele , sabendo de minha
inveja , finge sentir saudade do altar
destruído e descreve-me cada momento da construção do horrível colosso ,
monstro hediondo
e disforme , cujas pernas
e mãos aos milhares
se manifestam. Olhando o colosso , não se sabe para que lado parece
ir . Quero levá-lo comigo ,
mas este
não cabe no meu
bolso , como
tantas outras coisas que roubei ao demônio .
Resigno-me a admirá-lo e uma dor me consome. Já não posso ser como o demônio .
Se o fui, não reconheci minha chance . Minha vingança é escrever sobre o que ele me nega e para
esse colega
de carne e osso ,
sangue de meu
sangue , dedico minha
inveja . Ele
esteve no dia do velho ,
mas não
no dia da conjunção .
Ele deveria ser
meu futuro
e estava nas entrelinhas , quando o luar nos abençoou, mas
era engano
meu . Apenas
um caso
de compreensão inadequada. Esse engano me acorrentou ao que
há e agora não
posso ser um demônio . Como vês , leitor ,
culpo o luar de não
me deixar ser aquilo que jamais
seria. Com ou
sem luar , não seria demônio .
Ë preciso ter
o dom , que
me foi negado por
mim mesmo .
Não , nem
o velho , nem
o demônio , nem
o luar , nem tu sois culpados. Ele
está ainda mais
fundo , sob
a explosão . Procuremos.
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L
|
indo
um dia
achou alguém o fato
de o menino Jesus estar
conversando com doutores
da Lei . Eu
sei quem é esse
alguém . Hoje
é fácil dizer
seu nome .
Sonhou para mim
mesmo destino
e construiu-o tijolo sobre tijolo .
Se houve mais alguém
além dela, está numa bruma
tão cerrada
que nada
posso ver . Seu
desejo se fez carne
e fugiu desembestadamente . Tanto que quis
pará-lo e não pôde. Essa carne , o primeiro demônio , esse desejo, sou eu ?
Desculpa-me, leitor , é claro que não sabes responder . Mas esse desejo era o
dela mesma . Pode-se dizer
que ela
gerou ao que lhe
foi vetado. Palavras geram atos , isso é a coisa mais óbvia que alguém pode pronunciar . Mas os atos
ferem e a cura de nossas feridas é o futuro
e o futuro faz-se, com
amor ou
sem ele .
E vem na forma da vida ,
que carrega toda
a culpa daquele que
agiu. Dar à luz
é vingar-se. Eu sou uma vingança
e não consigo
deixar de sê-lo. A hóstia
no momento da comunhão
odiosa daquela que
gerou a vingança feriu toda
sua língua .
Queimou-a tanto , que
quis vingar-se no último instante
de sua vida .
Quis sorvê-la de novo . Também
desobedeceu a ordem que
me gerou. Tarde
demais descobriu que
nada lhe
podia ser vetado. Algo
que com
medo , digamos, pois não é fácil lutar contra nossa imagem no
espelho . Se nada
lhe tivesse vetado, eu
seria o primeiro demônio ,
mas não
o sou. Ela lançou-se no não-há, tão profundamente
que nunca
a pude seguir . Na beirada
do poço via , por vezes , sua imagem
rodando, rodando e era tão fundo que me
impressionava que alguma luz ainda
estivesse lá e que
pudesse vê-la. Essa imagem me levou aos doutores .
E foram muitos , muitíssimos, diria, tantos que nem ousaria especular um número .
Nesse momento , a história
se torna complexa .
Mas falo
de alguns a seguir .
Agora cumpre lembrar-me daquele homem , estendendo-me uma cédula
barata como
recompensa de meu
espetáculo . A figura
girava, girava e o menino escrevia,
escrevia. Amigo da escrita
bustrofédica, diria alguém mais tarde . No momento só
queria ir na direção contrária à dos pais .
Vingança ? Vejamos mais
tarde . Mas
dizia instintivamente querer
seguir seus passos , mas o
contradizia a seqüência da prolação , previamente combinada, qual
uma senha , que
dava algo que
um sentido
passageiro àquela inutilidade .
Uma nota de alguns
cruzeiros . Isso
realmente há. Quantos
doutores havia? Pensas. Não te digo, leitor . O que
importava então era
a lousa repleta
e a consciência da minha
pouca animalidade .
Incrível como
tudo é simbólico. No momento , apenas
era importante
para o menino
cumprir a profecia .
Raptado, o menino percebera que sabia. Terrível
momento . Fora
numa pequena e inocente
manifestação de um
colega . Esse
menino cruel
pisoteou-o com sua
arrogância . O sono
suave e homogêneo
retratado por aquele
pequeno futuro
amigo foi indesculpavelmente interrompido por
uma fanfarra militar
barulhentíssima. E nem sentido havia nessa fanfarra ,
feita apenas para impressionar . E conseguiu.
Ei-lo entre os doutores .
Quem era
esse coleguinha? Impossível
saber agora .
No momento , o importante
não era
ele , era
a profecia . E eu ,
isto é, aquele
menino , tinha
aquela missão . Vingou-se de mim algum dia ? Não sei.
Há pouquíssima chance de fazê-lo agora . Os doutores
seguintes foram pálidas caricaturas daquele que
estendia a nota , como
verás. Para dizer a verdade , pouco
importa quantos e quem
foram. A profecia seria completada com ou sem ele . Quem determinou isso
foi aquele padre .
Aquele , que
vetou aquela que me
gerou. Parece-me que sinto o fundo do poço onde ela gira . Sim ,
cheguei ao fundo do poço .
Há aqui embaixo
um túnel .
Muitíssimo escuro , diga-se de passagem . Não
sei o que encontro
lá . Certamente
apenas o nada
que é o tudo .
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(continua)