O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

segunda-feira, 23 de abril de 2018

O MUNDO, NOSSO HOSPEDEIRO

Talvez de todos os medos ancestrais do ser humano, não há nada que nos amedronte mais que a morte penosa. Pior do que ser devorado por um carnívoro ou ser atacado por uma cobra, a presença de pequenos seres latentes entre pedras, troncos de árvores ou galhos, que picam e nos consomem em febres, como aranhas, lacraias e insetos urticantes e a atuação de sua indiscreta peçonha em nossa epiderme nua nos impulsionou à higiene, ao desmatamento, aos chãos de ladrilho, aos inseticidas, às vacinas e a tudo aquilo que assegure a continuidade de nossa hegemonia na Terra. Embora a maior parte do planeta não seja coberta por uma turba acotovolante de nós, mas por bactérias e gramíneas, tirando as aglomerações das metrópoles, o mundo devastado é nossa casa e onde nos sentimos confortáveis depois de ampla destruição, desflorestando, queimando, cimentando, na impossibilidade de uma esterilização global. Estávamos tão confiantes com o avanço vitorioso sobre a natureza, vendo sua derrocada após bilhões de anos e acumulando o lixo de nosso mundo interno transformado em plástico, alvenaria e metal retorcido, assim como o expurgo cloacal de nossas assépticas cozinhas e desodorizados banheiros, que nem nos apercebemos de que, vencidos os estranhos, inumeráveis e antiquíssimos inimigos, liberamos das catacumbas um antagonista ainda pior, nossa criatura, fruto de nosso daninho e paranoico encéfalo: nossas ideias, abstrações, objetivos, ganâncias e a incapacidade de entender qualquer coisa que seja alheia. Seria isso o id, a besta, o Grendel? Justamente quando Beowulf está no spa, para perder algumas gordurinhas?


Mas de todos os seres que nos assombram, há uns que são verdadeiros súcubos, que nos arrepiam com sua invisibilidade. Eles não dão bote, não estão escondidos no escuro, não sobem à cama durante o sono, não pulam das árvores para canastronamente nos atacar. Pelo contrário, estão abscônditos como demônios, esquivos aos nossos sentidos. Sorrateiros e minúsculos, alimentam-se de nossa carne e vísceras com uma precisão matemática de bicho da goiaba, como diria Manoel de Barros. Quando percebemos sua presença, estamos prostrados, esverdeados, minados pelas picaretas anestesiadas de seu ininterrupto raspar e sugar e só assim, tornamo-nos cônscios de que fôramos iludidos por aquele ligeiro desconforto que nos parecia inofensivo. Sim, muito pior que leões, serpentes, escorpiões ou vespas, o abreviar da vida por um parasita é talvez a pior lição que a natureza pode dar a um humano. Não me refiro apenas a sarnas, piolhos e pulgas, pois aprendemos logo cedo que há parasitas em todos os reinos biológicos: bactérias, fungos, plantas, protozoários, vermes. O cipó-chumbo, por exemplo, resolveu prescindir de folhas e de clorofila para tornar-se uma eficiente minhoca amarela que cobre as plantas hospedeiras. Nem de longe lembra suas primas Morning glories, com suas flores alegres, que hipnotica-, traiçoeira- e sutilmente esganam mourões e tudo que encontram pela frente em seu destino de trepadeira: com o cipó-chumbo, o escandaloso fiame amarelo, lôbrego e soturno persiste quilometricamente qual um cabelo sobre outras plantas, dando-lhe, junto com uma certa graça dourada, um aspecto macarronesco e desflorido de anormalidade. De tão estranhas, imaginou-se que as cuscutáceas não fossem convolvuláceas, também pudera! exageram com seus haustórios absorvendo nutrientes a partir do citoplasma de seu hospedeiro. Apesar de nada tétricos, esses seres dourados lembram os cronenberguianos seres que guiam seus hospedeiros à morte lenta, que costumam ter aspecto muito mais feio, como os Cordyceps e Chytridiomycota da vida.


Mas para quem acha que o parasitismo é uma forma indigna de vida, uma pena kármica metempsicótica, um erro lamentável do demiurgo, uma consequência punitiva - portanto justa - da rebeldia edênica de nossos avoengos, não negará que, em contrapartida, haverá sim alguma beleza em fatos homologicamente semelhantes, por exemplo, quando as mães trazem óvulos fecundados no seu bojo, onde o bebê a parasita por meses, sorvendo-lhe as forças. Também verá paralelo quando reconhece que o fruto das plantas é o scherzo enérgico e conclusivo da sonata da vida, para o qual toda a força e viço antigo da flor e suas adjacências se esvaem até o murchar total da planta, num suicídio vegetal que só é consoladoramente louvável por ser cometido em prol do futuro das gerações vindouras e, a longo prazo, da sua própria espécie. Se o parasitismo é egoísta quando envolve espécies distintas, o aspecto provisório da gestação dos mamíferos e o harakiri do inchamento do ovário com fins à deiscência de tantas plantas parece-nos o ápice do altruísmo e um plano maravilhoso do élan vital.


Isso não impede que o antropocentríssimo homem veja o parasitismo intra-específico dos minúsculos machos nas fêmeas bojudas do Halophryne mollis como algo muito bizarro e - por que não o dizer? - asqueroso. Diferentemente do homem que se gera e de seu aspecto caudado e vermiforme desenvolvem-se olhos, cabeça e membros, os peixes machos se deformam e perdem a sua autonomia. Parecem acomodar-se, quais larvas de esponjas, anêmonas, crinoides e corais, que, podendo ser livres quando jovens, preferem a vida ridiculamente vegetativa, enraizada num estrato, quando adultos. Sendo ágeis miracídios, optam pelo nojento parasitismo dos trematódeos adultos, sendo fogosas plânulas e éfiras, acabam na vigarice do sedentarismo, sendo anfiblástulas ziguezagueantes, transformam-se nos sifões mecânicos de esponjas...  Que dizer das cracas? Depois que a evolução lhes deu tantas vantagens, como a bilateralidade, e uma morfologia complexa, com muscularidade, coordenação nervosa e hormonal, elaboradas células e sistemas digestório, respiratório, excretor, reprodutor e circulatório, parecem ter regredido evolutivamente, pateticamente sésseis em pedras, cascos, baleias ou, pior, na forma de câncer amorfo, na linfa de seus hospedeiros irmãos crustáceos. O termo "hospedeiro", aliás, é muito inadequado nesse caso, pois não resta opção ao que hospeda senão hospedar involuntariamente o monstro que mora dentro de si.


Poderíamos ainda lembrar as vespas que parasitam, com requinte de crueldade, aranhas e lagartas até a eclosão do adulto livre. Ninguém acharia isso lindo também, por mais simpático que seja o danado do himenóptero, comparado com o sonso do aracnídeo e com a bobalhona da lagarta. Há algo de malandragem criminosa nessa relação desigual. A exploração sádica do corpo alheio promovido pelas vespas nos parece imediatamente abjeta, mas não o seriam para os fins gloriosos da panantropia. Por mais sofisticados e belos os subterfúgios de sobrevivência de vários seres, atribuímo-lhes nomes muito feios ao seu sucesso: amebíase, mal de Chagas, leishmaniose, giardíase, tricomoníase, febre dum-dum, balantidíase, malária, toxoplasmose, fasciolose, esquistossomose, teníase, cistocercose, opistorquíase, himenolepíase, ascaridíase, ancilostomose, oxiuríase, filariose, elefantíase, larva migrans, estrongiloidíase, tricuríase, berne etc.

Contudo, alguém poderia pensar que há uma infecção, que talvez pudesse ser chamada de antropíase quando, não mais na gestação, mas sim na fase adulta, o primata hominídeo descobriu que com uma tocha na mão desbastaria terrenos imensos, onde morrerão pássaros, répteis, insetos e plantas aos milhões. Muito mais do que justificar esse ato pela sua necessidade de alimentação diária, a abundância da morte desproporcional à sua fome parece criminosa. Se uma pequena parcela desses seres chamuscados foram, durante milênios, nossa dieta em meio à horda dos carbonizados, hoje o fogo alastra-se apenas para a criação de vacas e cavalos que imbecilmente se subornaram com grama e alimento fácl e imediato, desistindo de cornear ou escoicear o símio que se aproximava demais deles e que os aguardaria, momentos depois, com chicotes ou matadouros. Como nós, seres humanos, somos cinicamente cegos a isso, na nossa má-fé, denominamos antroponose não à doença infecciosa resultante de nossa atuação vitoriosa e devastadora sobre o meio ambiente, mas ao conjunto de doenças a que somos suscetíveis como o único reservatório de hospedagem, tal como as DST, a febre tifoide, a coqueluche ou então àquelas doenças em que somos apenas o hospedeiro intermediário. Seja como for, a relação entre o conceito de homem e o de parasita transita num plano egótico, de tal modo, que o homem-vilão é esquecido e o homem-vítima é enfatizado. Não conseguimos enxergar como somos participantes ativos na deflagração de um mundo adoentado em vias de se configurar como um estado inexoravelmente moribundo.



Parasitas, na pior das hipóteses, costumam matar seu hospedeiro lentamente, mas, enquanto isso, invariavelmente se procriam e jamais destroem completamente seu reservatório antes de cumprir sua divina missão de crescer e multiplicar. Vírus, por exemplo, nesse sentido, são parasitas muito estranhos, pois dependem da individualidade da vida de seu hospedeiro e sem ela não existiriam. Sua multiplicação é ocasional e a evolução não parece ter culpa do que eles fazem. Parecem-se mais com um erro da química em vez de um programa da biologia. Se houvesse um único humano na Terra e ele estivesse infectado por vírus, a morte do hospedeiro equivaleria à morte do parasita, mas esse humano solitário seria apenas um indivíduo e não mais um representante da espécie à qual o parasita se adaptara. Outros seres, todavia, são também especializados nessa relação exclusiva com a espécie humana. A diferença é que durante todas as eras pregressas apostaram na sua procriação dentro de humanos e deles dependeram coevolutivamente para a propagação de sua própria espécie, tal como a raça artificiamente criada dos buldogues precisam de seu criador para que se faça uma cesariana e o bicho venha a nascer, dadas as desmesuradas dimensões da cabeça dos recém-nascidos. Já com os vírus, tudo parece ocasional e sem planejamento: não têm compromisso algum com a misteriosa teleologia dos seres vivos e a natureza não lhe daria uma chance de adaptar-se caso a espécie hospedeira de milênios se mostre um repositório no qual não deva mais investir. Dada a probabilidade da extinção da única espécie hospedeira, valeria a pena especializar-se: faz parte da regra de ouro do especismo, que, obviamente, não é exclusivo de nenhuma espécie.

Hora da metáfora: se vimos hospedando de forma tão pouco comensal o único exemplar de sua espécie, a saber, o planeta Terra, estamos agindo como tênias especializadas ou como vírus inconsequentes? Parece ser fácil responder a essa questão.