O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

sábado, 11 de novembro de 2023

O MAL

O Mal não é vermelho, não tem pés de cabra, tridente ou rabo pontiagudo. Mas o Mal existe: seria hipocrisia imaginar que seja algo relativo porque pontos de vista são diferentes. O Mal não tem nada a ver com pontos de vista. Nem chamo de Mal aquilo que infringe uma regra social discutida em debates, como evocam tantos moralistas e aprendizes de moralismo. O que eu chamo de "Mal" é amoral, porque não está associado ao que uma sociedade acha errado. Chamo de Mal aquilo que impede que uma vida transcorra sem interferência ou interveniência alheia. O Mal poderia estar no leão que me ataca de surpresa, saltando de uma moita, depois de espiar-me e me devora indefeso. Mas esse Mal é inevitável, pois a morte em si, por ser natural e parte da vida, não deve ser confundida com o que chamo de Mal. O Mal inevitável dos acidentes é causado por algo que não tem culpa: uma pedra que rola sobre minha casa, a água que me engole num redemoinho, a sede de sangue de um mosquito que me contamina com uma doença fatal, nada disso eu exemplificaria como o que quero definir como "Mal". Se eu incluísse no que chamo "Mal" essas coisas todas, meu texto seria confuso. Mas não quero confundir: anda que essas coisas não sejam boas, assim como não são a fome ou a sede ou outras necessidades apeladas pelo meu corpo, aplacadas ou não, aplacáveis ou não, chamar tudo isso de Mal seria muito pouco preciso e minha terminologia seria falha por ser demasiadamente abstrata. Nem tudo que não é bom faz parte daquilo que quero definir como o Mal.

O que chamo de "Mal" requer, antes de tudo, um outro ser pensante da minha espécie, que raciocina e que consegue comunicar-se em uma língua articulada e que não seja eu mesmo. Esse outro pertence a uma sociedade, igual à minha ou não, e tem uma biografia, necessariamente diferente da minha, mesmo que seja meu irmão gêmeo, exceção talvez feita aos xifópagos. A relação entre o Eu e o Outro já foi estudada por psicanalistas, por psiquiatras, por sociólogos honestos ou picaretas. Falo como leigo: infelizmente desconheço a teoria nas suas profundidades que a Terminologia exige. Falo, como sempre falei em meus textos, daquilo que me faz algum sentido vivendo. Não peço perdão se errar. Posso apagar tudo, no entanto, ainda que alguém dotado de uma memória absolutamente perfeita se lembre de tudo que disser, proferirei o que penso sobre isso que existe materialmente no mundo e que estou denominando "Mal".

Prefiro falar "mim" em vez de "o Eu" e uso "outro" com letra minúscula, para enfatizar o comezinho de minha reflexão, tão necessária à Verdade. Nessa relação entre mim e o outro, não direi que o Mal provenha sempre do outro. Isso é uma súplica a quem me lê: estou tentando ser o mais honesto possível com o que teorizarei ou descreverei a seguir. O Mal, como disse, existe, e para ser identificado requer que haja não só o outro, mas também eu mesmo. A proveniência ou causa do Mal pouco importa: ou eu sou a causa, ou o outro. Não faço diferença. 



Mais difícil do que caracterizar o Mal é falar sobre a consciência. O que seria a consciência? Uma espécie de certeza de que não ajo corretamente. Uma náusea. E o que significa "agir corretamente"? É reconhecer em mim o Mal. Portanto, se olho para minhas memórias (sempre falhas) e vejo nelas algo que eu poderia ter feito diferentemente, percebo que errei. Esse erro, portanto, é a fonte de eu me tornar consciente de que gerei aquilo que estou chamando de Mal, pois esse erro afetou a história do outro, mesmo que o outro seja eu mesmo.

Mas essa retrospecção de reconhecimento do erro nem sempre é seguido de arrependimento. Muitas vezes há orgulho, indiferença, desprezo ou, pior, a sensação de que não poderia ter sido de outra forma: essas reações ao reconhecimento do erro nada mais são que autoenganos, que são muito importantes, quer queiramos seguir vivendo, levando conosco o Mal pretérito, quer queiramos fazer o Mal maior a si mesmo, o suicídio, ou ainda o Mal maior ao outro, o homicídio. De qualquer forma, o reconhecimento aponta para um futuro, longo ou breve. E esse agir futuro é outro Mal. Assim sendo, o Mal pretérito inevitavelmente gerará o Mal futuro, a menos que a memória ajude e, como num encanto, apague o Mal passado. Mas isso só os felizes dementes, talvez, têm a sorte de vivenciar.

Numa criatura não demente, o futuro carrega o Mal passado e se não podemos modificar o passado, nem o esquecer, é sabido que a náusea só se aplaca com o autoengano e, para termos o feliz autoengano, estepe da demência, só mesmo afastando-se cada vez mais do Mal passado e das causas que o geraram é possível viver saudavelmente. Alguns chamam isso de hipocrisia, sobretudo os afetados pelo Mal alheio do qual não conseguem esquecer-se, nem autoenganar-se. 

O Direito declara que esses são vítimas e que precisam ser ressarcidas por meio da punição. É assim desde Hamurabi, imitado infinitamente, por exemplo, no livro de Levítico. Mas o Direito mistura o Mal amoral (que persigo para definir) com aquilo que socialmente se confunde com o Mal e, nesse momento, muitos impostores, repletos de autoenganos ou de má-fé, se aproveitam para vingar-se da causa do Mal e cometem novas injustiças, de modo que o Mal se perpetua agora, por outras causas mais complexas, desenoveladas de psiques e de valores históricos ou de seus questionamentos. O Direito não é a solução para o Mal. O Mal persistiria sem a justiça supostamente cega. O Mal está presente desde sempre por causa da consciência, como dissemos. Não há como extirpar a consciência, embora haja imenso interesse capitalista nisso. Seria muito lucrativo um mundo em que a mão de obra fosse inconsciente e obedientes a um DNA artificial, que manipule o comportamento individual, como supomos ocorrer entre as formigas em relação à programação de suas rainhas ou dos fungos que parasitam seu sistema nervoso.



O Mal tem de ser depurado para ser reconhecido: é apenas o Mal amoral que merece ser discutido, pois nele há uma verdade independente de opiniões. Uma episteme e não uma doxa, como queria Platão. Recapitulando, o Mal, independentemente de justiçado ou não, está na consciência de um ser humano não demente e requer um outro, que pode ser o seu próprio causador, o qual poderia ter vivido de outro modo, se não fosse acometido pela ação voluntária ou inconsciente daquele que resolver agir um dia, causando-o e impossibilitando-lhes milhões de outros futuros possíveis para ambos, sendas que jamais serão seguidas. O Mal, então, para ser formalizado, não depende de vítímas, mas de um pretérito perfeito e de um futuro do pretérito, não no sentido condicional, mas no sentido estrito de uma narrativa sincera e sem lacunas importantes de memória que possam ser retomadas, por serem lacunas reconhecíveis por qualquer um, tal como na frase "Napoleão invadiu a Espanha, em seguida, expandiria seu império até Portugal". Não é possível afirmar que tenha sido ato contínuo de Napoleão ter invadido Portugal como numa consequência de interação estudada pela Física, mas fê-lo Napoleão e poderia não o ter feito. Napoleão se arrependeu de ter invadido Portugal? Talvez não, mas quem poderá julgá-lo ou sequer imaginar seus pensamentos na Ilha de Santa Helena? Contudo, quem diz que Napoleão foi um herói sofre de autoengano ainda pior, por causa da sua inconfessada ignorância. Em que se distingue, portanto, autoengano e má-fé?


Tudo isso, porém, não nos impede de destilar o Mal puro, abstraído dos eventos, a ponto de ser passível de se transformar numa fórmula em que está o causador do Mal, o afetado pelo Mal, o reconhecimento de que a ação não teria ocorrido se o causador não tivesse agido e a conclusão de que vida subsequente à ação maléfica seria distinta de qualquer outra, que não ocorreu, se o Mal não tivesse sido causado. Mas dizer isso, desse modo, parece dizer que a ausência do Mal seria o Bem. Isso seria verdadeiro se houvesse uma vida sequer no planeta em toda sua existência que nunca tivesse sido afetada por Mal algum, quer no sentido que demos à palavra quer em todos os demais sentidos rejeitados. Mas isso seria contrário ao Mal amoral e praticamente se confunde com o Bem amoral. Nem mesmo crianças conhecem o Bem amoral, talvez só anjos e outras divindades ou entidades de planos idealizados da existência. O Bem amoral simplesmente não existe. Existe apenas algo que pode ser chamado de Bem se não tivesse sido afetado pelo Mal, mas não há vida que não seja afetada por algum tipo de Mal, de modo que o Bem puro é uma abstração e não existe, como o Mal. Diferentemente de um leão que simplesmente me devora, haverá sempre alguém consciente próximo de nós, convencido por alguma doutrina ou por algum discurso, que afetará nossa vida com algum Mal que possamos culpar, ao qual possamos atribuir nossa infelicidade, novamente imersos em autoengano, quer seja por memórias falhas, quer por nossa própria má-fé. Assim, não se vive uma vida sem passar diversas vezes pelo Mal e não se vive uma vida sem cometer, consciente ou inconscientemente, algum tipo de Mal.

Talvez os cristãos estejam certos quando dizem que nossa vida é um lamento e que a única saída é o perdão: embora seja uma espécie de má-fé, o perdão nos livra do homicídio ou do suicídio. Talvez o perdão seja, de fato, a única forma de prosseguir vivendo seguros numa trincheira enquanto a guerra infinita do Mal não termina. Para não afirmar isso com má-fé, confesso que sei que essa fórmula de autoengano não foi criada pelos cristãos, embora tenha sido divulgada eficazmente por eles, mesmo quando foram extremamente hipócritas ou malfeitores ao longo da História. No entanto, o perdão talvez tenha alguma razão de ser, pois, de fato, ao que tudo indica, encontra ecos numa Grécia sem ágora ou, mais longe, numa Pérsia de população resignada, tal como se lê nas entrelinhas de um Marco Aurélio, cuja filosofia parece um cântico, ou mesmo na desilusão nietzschiana posta na boca de Zaratustra. Talvez a solução do perdão seja reflexão humana ainda mais antiga e contemporânea da encarnação do Mal sob a forma das guerras e dos impérios, fruto da cobiça da tecnologia do bronze, sabidamente muito mais eficiente que a pedra e a lança que costumeiramente lançamos uns contra os outros na nossa pré-história cotidiana.

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

SÓ LHE PEÇO UMA COISA

Sim, você pode imaginar o que lhe pedirei. Preciso do meu corpo. 

Minha alma foi devastando-se na jornada conhecida como "existência", mas meu corpo é mais que o Ser dos filósofos. Meu corpo é único. Não importa se tenho um irmão gêmeo: não estou falando de DNA. Meu corpo, independente do que o estimulou ou do que o constrangeu para agir como tem agido, é meu e só meu. Nada é meu, exceto meu corpo. Não preciso de outro, idealizado, nem menos perfeito: isso seria o corpo de uma alma insatisfeita. Refiro-me ao corpo que me dói, ao corpo que necessita de água e de ar, ao corpo que é só meu, independentemente do que me digam. Por isso, tire-me tudo, menos meu corpo. Em troca, não tirarei o seu: antes das primeiras legislações isso já era óbvio, pois é tácito nas matilhas, malgrado alguém sempre se arrogue a tomar o poder do bando. Fique com o poder, deixe-me o meu corpo.

É com meu corpo que acordo, querendo ser compreendido enquanto corpo. É com meu corpo que digladio o tempo todo pensando ser óbvio para quem me ouve ou me lê, mas não o é, porque só uso palavras intrincadas e quem me ouve ou lê não me entende. Diabos, não têm todos a mesma percepção de si? Meu corpo sempre bastou-me. De que preciso mais para dizer-me vivo? Não é meu corpo que me acusa que estou saudável? Não é meu corpo que dá os primeiros sinais do meu delírio? Não é meu corpo que acorda comigo todo dia, dialogando consigo mesmo enquanto eu, perplexo, tento entendê-lo e explicá-lo para quem não o entende, ou seja, para mim mesmo, na maior parte das vezes?

E, afinal, não há nada que entender. Qual é a ação do corpo senão viver? Viver pura e simplesmente, sem filosofias, sem hipóteses, sem dúvidas. O corpo não tem dúvidas quando para de pulsar e deixa de ser. Quem me convencerá que há outra vida senão a que meu corpo, qual maestro, rege com sua batuta? Talvez por isso o torpor me seja tão ridiculamente elucidativo, tão violentamente revelador, tão tristemente eufórico, tão verdadeiramente suscetível às satânicas versões da alma, que perora e conclui que não é corpo. Deixemos a alma com seus complexos.



Não há o que elucidar, nem se revela o que todos sabem: não há nada além do corpo. E isso não deveria infundir tristeza. Viver é a alegria e não há tristeza no não viver. Quem discorda dizendo que há gradações qualitativas no viver não entendeu nada do que eu disse. Não há problema essa sua incompreensão. Sugiro que se desnude e se olhe no espelho sem reprovações: quem sabe entenderá. Se, mesmo assim, não compreende, não há necessidade de continuar lendo.

As tragédias só existem por causa da alma. O corpo é infenso às tragédias. O corpo foi criado para resistir. Com uma só célula ou com mais. No corpo só há vitórias. Não se traduz a palavra "desgraça" na linguagem do corpo, mesmo que ele viva alguns segundos apenas. Que dizer então de coisas tão caras e tão vazias, como a bondade, a beleza, a justiça, a esperança, a saudade, a angústia? Nada disso faz sentido, porque tudo deriva de uma definição que requer a forma negativa da graça e isso não faz sentido na lógica do corpo. No corpo tudo é graça, tudo é luz, tudo é movimento e coisas bizarras como a vontade, a intenção e os objetivos, tão caros ao neurastênico sistema nervoso que produz a insatisfação só geram a ilusão da existência de uma alma paralela ao corpo. Paradoxo dos paradoxos: sem isso, o corpo vivo seria pedra; com isso, o corpo vivo morre antes do programado.


Francamente, por que haveria um corpo imortal? Que graça há nessa tal imortalidade? O fracasso é o epígono do ser que se deseja imortal. O corpo imortal seria uma coisa medonha, carente de bondade, insatisfeito de beleza, sedento de justiça, iludido pela esperança. O corpo imortal angustia-se e é saudoso. O corpo imortal morre de vontade, fenece de intenções, sucumbe de tantos objetivos. O corpo imortal é o oposto do corpo, portanto, é a própria definição de desgraça. O corpo não entende o que venha a ser esse epíteto "imortal" que alguém lhe queira atribuir em seus delírios.

Nesse reinício de escritura, caro leitor, nesse meu novo testamento em vida, posso parecer estar convidando outros corpos a pensar. Mas, na verdade, o convite é diverso: que deixem seus corpos viverem, até que se tornem novamente matéria inerte e que arremessem não seus corpos pela janela, mas sim suas roupas, para conseguirem ver-se no espelho, satisfeitos.

sábado, 5 de março de 2022

ESPAÇOS VITAIS E SUAS CAIXAS-FORTES

Sério mesmo? Aquela maldita ave do paraíso dançando novamente no meu quintal? Percorreu éons o seu treino exibicionista, nascido de alguma outra dança, que, por sua vez, nasceu de outra, a qual finda no rastejar de uma lesma. Ninguém lhe infundiu a dúvida do para-quê? Olha ali, ave bocó, a motosserra que porá fim à tua mata. Não paras a dança, a não ser golpeada pelo tronco cadente?

Alguém, ocioso, de olhos radiantes, entrava no mundo de palavras, nas páginas dos livros  feitos com algumas daquelas árvores cadentes. Arrotou o mantra decorado para olhos desejosos de seres babantes, frustrados com sua própria história. O mantra ecoou como a motosserra, mas o amor infundido por ele, na verdade, era a velha egolatria que nada entende. Essa carapaça de paixão cresce tanto, tanto, junto com as vísceras do recalque, seu genitor, que é inevitável que se ouça um dia o anátema de que mantras não servem para nada. Não é mais a árvore que cai sobre a ave inútil, mas, analogicamente, testemunhamos o monge golpeado pela espada da indiferença, lançada da altíssima torre recém-construída pela auto-estima artificial do seu ex-fiel seguidor.

Sem lágrimas, por favor! Choras como se algo raro valesse alguma coisa neste mundo da indigência mental! O que era raro, por natureza e por definição, torna-se raríssimo, porque a ferrugem do desprezo e o carcomido dos anos inúteis estão fazendo passar, pelo buraco da agulha, o tempo, cuja função é pôr eternamente em risco o raro, até que suma de vez. O melhor amigo do valioso é o acaso. Ninguém pensaria em cobrar caro por uma coxinha de dodô, certo? A esfinge te pergunta, a ex-coisa finge que sabe a resposta, sempre deixando de ser e confundindo-se no infinito do nada.

A relação, na verdade, é simples: trata-se da mesma existente na predação. A quantidade de predadores e de presas precisa ser numericamente desigual. Urge que nasçam menos predadores que presas. E que aqueles predadores sofram mais do que estes, aos quais basta baixar a cabeça para comer o capim. Quem vive mergulhado num eterno prato de salada jamais saberá do que estou falando. Cuidado! o paradoxo está não nessa última afirmação, mas na seguinte: o segredo se encontra apenas em que as abundantes presas não evoluam mais do que os poucos predadores, de modo que formas mais eficientes de presas surjam, eficientes demais para evitar a predação.

Não é preciso que haja mais mantras. Não é preciso que haja mais dança. Nem mesmo um esforço maior, que justifique o esforço do predador. Inventou-se uma arma cuja destruição é muito mais eficiente: a opinião. Se médicos dão opinião em artes plásticas, por que o artista não pode opinar sobre medicina? A crise na floresta das especialidades faz de cada cidadão um bioquímico, um físico, um geógrafo, um cientista político, um sociólogo, um linguista. Todos agora, ao desabar da floresta, ao morrer dos predadores, ao findar da dança, ao emudecer do mantra, sapateiam sobre a única coisa que sobrou, sobre aquela gramínea em que pasta o boi, o qual come e comerá as penas coloridas de todos os cocares reais e imaginários. 

Que é isso que ouço? Entoa-se o hino da liberdade, aquela em que todos podem falar sobre remédios, sobre etimologias, sobre capitalismo, sobre terra plana, sobre sociedade. É a epidemia dos discursos, dirão uns; é a vitória do fanatismo, dirão outros (ou os mesmos). Ninguém mais abrirá os livros, isto é fato, porque eles não existem mais. Soterraram as bibliotecas, fecharam as livrarias. O que estava entre uma capa e outra não sairá nunca mais. Escutada a reluzente trombeta do Armagedom, todos terão o direito de ecoar sua voz na mais profunda das selvas das suas obviedades. Se a voz é maviosa, não importa, pois a crítica se confunde cada vez mais com a autocrítica, que, como todos sabemos, é nula. Até quem profundamente sabe algo, profundamente também se esquecerá de tudo e depois que patetamente ruminar o apastelado bom-senso, que regurgita em sua boca, descrerá da perenidade de qualquer coisa e de qualquer valor um dia tido por verdadeiro. 

"Foi assim de fato?", perguntará o cético - sempre na hora errada - "porque eu acho que esse passado pode ainda ser apenas uma lenda, indigna de ser reproduzida".


Na falta de um lastro, o saber desvalorizou-se e entrou na fila daquele patrimônio que não se distingue mais de montes de lixo. Reifica-se tudo para vender? Aliena-se tudo para comprar? Pois bem, desta vez não será exceção. Chamam isso de indústria, mas indústria do quê eu não sei. Duvido que haja alguém que saiba. Dizem que tudo se padroniza, para que seja fácil segregar. Eu me pergunto: segregar-se de quem? Nem mesmo resistir faz sentido mais. Aparentemente resistir significa apenas rodar a roleta novamente e apostar num número que não está ali. A maior obvidade de todas reza que nem só de espaço vital vive o homem: é preciso também uma caixa-forte.

Ai, Erasmo, é verdade o que ouvi de ti? Que foste tu o inventor da civilidade? Que refinamento se espera encontrar num monturo de esterco? Que tesouros há ali? Um anel de turmalina? Fétido anel esse, que me obriga a mergulhar esperançoso de encontrá-lo e, depois de anos, emergindo de sua massa informe, conseguindo respirar um pouco, sentir o ressaibo de alguma náusea incontida, mas eternamente desconfiada.

Nem o inconsciente salva mais: na histeria dos tanques e na saraivada de certezas, o mais digno a fazer é admitir nosso erro sem aliciarmos outras vítimas à nossa causa e, claro, o mais importante, meter uma bala nos próprios miolos depois disso tudo. O que é verdadeiro ficou para mais tarde; tudo que é legítimo é resultado de uma mistura de loucura, infâmia e sacanagem. Não há espaço mais para a empatia. O lúdico se tornou o esgar momentâneo de um chimpanzé comendo uma vítima encurralada. E quanto mais hábil e nobre era essa vítima antes de sucumbir, mais estranho se me afigura esse seu esgar e esse seu deleite.

Enfim, surgiu agorinha um novo espetáculo para atenuar meu tédio. É novo, mas quase idêntico ao de ontem. Esse quase, que permite a existência de uma pequena diferença e de uma grande intersecção, me fará tagarelar, apreciar, debater, defender meu ponto de vista. Na verdade, a vontade da plateia que me ouve é de vomitar, mas, batendo no peito, o gorila humano em cima do edifício prenderá a atenção dos transeuntes por um segundo. E isso lhe bastará. Isto é a felicidade, disse alguém cheio de novas definições. Terminado o show, o gorila fica envolto em névoa. O seu grito - opinou um crítico ainda com uma nesga de memória - não tinha a profundidade anunciada: "afinal, o que esperava ele ao berrar? Criar uma seita válida para todos e para sempre? Ser finalmente abraçado por sua consistência? É pedir demais! Ninguém de carne e osso é tão amado e tão desejado quanto um discurso!".

Basta, celebrei demais a insânia. Nem sabia que conseguiria ir tão longe.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

IDEIAS NÃO ME FALTAM

Sim. Elas vêm, toda hora, a todo tempo, as ideias.

Mas prostrado, retalhado, desconfiado, desiludido, só as recebe na cara quem está orbitando por perto.

Os braços longos não chegam mais até ti. Foram cortados e sangram.

A audácia se intimidou definitivamente dentro do meu peito e sem a timidez audaz não sou mais eu no meio: não há meio, não existo. Não faz sentido a minha existência. Ninguém tem uma opinião sobre a minha existência. Ainda bem.

Os meus limites do mundo se tornaram, assim, o que sempre foram: eu mesmo, julgando sempre.



Desnecessário, invadido e violentado, desapareceu em mim o sentido do mundo no sem-sentido das regras, ditadas por aquilo tudo que não sou eu. Sem vontade de invadir, sou o que resta da tua indiferença, da tua invasão e da tua violência.

Para que mais uma opinião se posso dar um berro?

E nem isso importará, se for ouvido por alguém.

Enquanto isso, ouço.


domingo, 30 de janeiro de 2022

O ANO QUE NÃO COMEÇOU




Prezado leitor,

Escrevo para informar que este ano não começou e talvez nem comece.

Acontece, às vezes. O tempo não é formado de parcelas iguais.