O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

BERKELEY VERSUS NIKON

A discussão epistemológica desenvolvida na Inglaterra, sobretudo no século XVII é, para mim, a mais fascinante de toda a história da Filosofia. Nascida de um Bacon e antecedida de um Duns Scotus, o auge da polêmica, sem dúvida alguma, começa com Locke, contra o qual reagirão Leibniz e Berkeley. A mesma Inglaterra verá nascer o genial Hume e, séculos depois, Popper. No mesmo século de Locke temos Newton e, depois deles, futuros defensores, como o ácido Voltaire, e antagonistas, como Reid, defensor do senso comum. Na França, o pontapé da discussão entre racionalistas e empiristas havia nascido com Descartes e com o terrível Pascal.

Dos argumentos levantados pró e contra, tenho as minhas predileções, que não interessam nesse momento. Talvez seja inquestionável que o mais perturbador de todos esses nomes citados seja o bispo Berkeley (leia-se "Barkly"), cuja filosofia não teve sucessores à altura. Esse filósofo gerou e gera todo tipo de reação: consternação, espanto, admiração, escárnio e fingida indiferença. Todo mundo, até o comentarista mais neutro, acha que Berkeley viajou na maionese e, como que reagindo por um Abwehrmechanismus qualquer, sempre tem um adendozinho sobre o porquê do absurdo de seu raciocínio. Compreensível, mas ninguém pode acusá-lo de falta de lógica.


E é de fato surpreendente o que Berkeley faz com as palavras em seu pequeno livro. A primeira vez que li A treatise concerning the principles of human knowledge, senti-me caindo das nuvens. Os mesmos argumentos usados ali aparecem diluídos num esquisito diálogo entre as personagens Hylas e Philonous. Berkeley estava falando sério? Aparentemente sim. Aliás, é estranho fazer essa pergunta cética quando se trata do maior anticético do ocidente.

A grande questão que Berkeley ataca é a nova ideia newtoniana de que a matéria é algo real. Leitor, quer acabar com os argumentos de um ateu? Negue a matéria. Mas a realidade da matéria nos parece tão óbvia, que negá-la pareceria sinal de loucura. Obviamente, muitos ironizaram esse pensamento, mas estranhissimamente Berkeley era um empirista muito mais radical que Locke e Newton. Partindo das mesmíssimas premissas de Locke, chega a conclusões opostas. "Onde foi que cochilei?", pensa o leitor e voltará a reler em vão as passagens, procurando onde exatamente Berkeley sai do mundo concreto e familiar a todos nós para saltar num mundo completamente alheio à nossa intuição. Não , o leitor não encontrará onde está o pulo do gato. Isso porque o raciocínio de Berkeley é cristalino e terrivelmente lógico.

Berkeley era muito religioso e diz que sua obra é uma tentativa de conter o ateísmo. Imitemos seu raciocínio. O computador em que você está lendo este texto existe, certo? Como sabe disso? Oras, porque você o vê. E de fato, tudo que eu vejo, ouço, cheiro, eu penso que exista. Isso é uma verdade que parece indiscutível. E de fato, eu, você e Berkeley concordamos com isso. E se você, leitor, não concorda, não precisa nem continuar lendo. Você não pensa como Berkeley, pois acredita que está sendo enganado pelo deus maligno das ilusões que Descartes hipotetiza inicialmente para depois refutar no seu Discours de la méthode. Se as coisas que vemos e sentimos não são reais, deduziremos que Deus é mau porque nos engana o tempo todo. Deus seria o malin génie. Se você é fiel à ideia de um Deus bom, tem de acreditar que o que vê existe e que Deus não o engana. Você mesmo terá de concordar que tenho absolutamente certeza de que algo existe apenas quando estou perante algo que eu percebo existir. Esse ("ser, existir") é percipi ("ser percebido"), nos dizeres de Berkeley.


Mas dizer que algo existe não é dizer que algo é real, enfatiza Berkeley. O restaurante em que comi hoje existia totalmente enquanto eu almoçava nele. Voltando para casa, penso que continuará a existir. Tenho tanta certeza, que volto no dia seguinte, pois a comida era boa. No entanto, encontro-o demolido. Longe dos sentidos, eu acreditava tão fortemente que ele continuava existindo quanto no momento em que estava dentro dele, mas me enganava. Mas Berkeley não fala de as coisas existirem apenas para um eu cartesiano. A existência de algo não pode ser relativa.

Se este computador existe porque ele é percebido por mim, o mesmo valerá quando eu sair da sala e não mais o enxergar, pois lá, digamos, há outra pessoa que continua vendo-o. Ele existiu porque é perceptível, por mim ou por qualquer pessoa mas isso não diz nada sobre a sua realidade. Pode não ser mais percebido por mim, que estou na cozinha agora, mas continuará sendo percebido por essa pessoa que continuou na sala. Isso basta para dizermos que existe absolutamente. Portanto, o problema não é que algo existe somente se eu perceber, mas é preciso que alguém perceba. Se x é percebido por alguém, x existe. Até aí não parece que haja nenhum absurdo.



Mas alguém poderá pensar: bom, um século antes de Berkeley não havia microscópios e dois séculos antes, não havia telescópios, então não existiam bactérias antes da invenção dos microscópios e nem anéis em torno de Saturno antes de Galileu os ver? Aliás, essas grandezas infinitas, tão acima e tão abaixo de nossas percepções, entre as quais estamos ensanduichados atormentaram Pascal. Alguém, inspirado nessas questões, fez surgir aquela famosa perguntinha filosófica "se uma árvore cair numa floresta e ninguém à sua volta ouvir, ela fará barulho?" e suas variações (http://en.wikipedia.org/wiki/If_a_tree_falls_in_a_forest). Obviamente Berkeley responderia a essa pergunta que sim, a árvore existe, porque Uma Mente não-humana que a percebe  e essa mente pertence a Deus.

Assim sendo, o que há são apenas mentes percipientes e seres percebidos. A existência desses seres consistem em ser percebidos, sem necessidade de pensarmos na sua realidade material. Esses seres percebidos formam diretamente ideias nas nossas mentes sem qualquer necessidade de abstração: isto é o mecanismo do conhecimento humano, segundo o nosso filósofo irlandês.

Mas, estranho, se tudo que existe se resume, no raciocínio berkeleyano, a mentes (spirits) e ideias, a mente que percebe, por si só, seria também uma ideia? O que ela é se não consegue ser percebida por si mesma? Responde o bispo filósofo que as mentes não são seres perceptíveis, portanto não podemos conhecê-los, mas sabemos que existem. Como não temos ideia do que é a mente alheia, não me parece, à primeira vista, uma inverdade o que diz. Nessa rígida dicotomia entre mentes e objetos, a matéria newtoniana parece não encaixar-se em nenhuma das duas: a matéria não é uma mente e a matéria não é objeto. Não pode existir independentemente da relação mente-objeto se não for um objeto. A fonte disso tudo, de novo, aproveita Berkeley, perante nosso espanto, só pode ser Deus. O proselitismo não perde oportunidades.

Bom, se as coisas existem de fato - e Berkeley não o nega - só temos acesso a elas pela percepção que gera ideias na nossa mente. Nós não somos seres mas mentes percipientes. Nesse sentido, Berkeley acha inúteis conceitos como "abstração" e "realidade": that the things I see with mine eyes and touch with my hands do exist, I make not the least question. The only thing whose existence we deny, is that which philosophers call matter or corporeal substance. As coisas existem, mas a matéria, no sentido newtoniano, não existe, pois não é nem mente nem ideia. 

E ainda há mais: o mecanismo do conhecimento perpetrado pela mente não depende de nós. Não posso estar diante de uma maçã e querer ver uma pera. Nem mesmo uma pessoa que sofre de delírios tem esse poder de escolher o que quer enxergar. Não posso escolher entre enxergar e não enxergar. Se enxergo, enxergarei; se sou cego, não enxergarei. Conclui, portanto, que as ideias que aparecem na minha mente não são fruto da minha vontade, independente de serem reais, sonhos ou delírios. Concordaria com isso a senhora cega que tinha visões, mencionada por Oliver Sacks em seu livro Hallucinations,  devido à Síndrome de Charles Bonnet.


A argumentação de Berkeley parece absurda mas, num exame atento, mostra-se muito consistente. De fato, argumenta que as coisas existem para além do momento atual da percepção de um só indivíduo. Diz também que as coisas existem enquanto são percebidas e se não há quem as perceba, não deixarão de existir. E, por fim, concorda que as coisas existem na mente. A existência não depende da nossa vontade. Deus aí se ingere, no seu discurso, como detalhe necessário para a inexistência de uma matéria independente de uma mente percipiente.

Pensei na época que li Berkeley que raciocínios desse tipo só poderiam ser seriamente considerados depois dos problemas impostos pelos novos dados advenientes da invenção do telescópio e do microscópio. E de fato, o ateu Hume considerava Berkeley um grande gênio. Antes da invenção desses aparelhos, ninguém teria a necessidade de reagir contra o ateísmo dessa forma, isto é, insurgir-se contra a realidade da matéria usando tal tipo de argumento. Dizendo de outro modo, Berkeley jamais teria chegado a essa conclusão se não fosse a conquista tecnológica da época e se tivesse escrito algo antes dessas invenções, não seria considerado um grande religioso, mas um louco ou um herege.

Mas, ainda no terreno das conjecturas, imaginei que se uma outra máquina moderna tivesse sido inventada naquela época, teria dado ainda mais dor de cabeça a Berkeley, que amassaria os seus interessantes escritos e os jogaria no lixo. Por sorte, demorou mais alguns séculos para ser inventada e hoje temos o delicioso texto de Berkeley. A máquina a que me refiro é a câmera fotográfica.

Pois bem, se a foto capta a árvore, não sendo uma mente de um espírito, e, posteriormente, alguém que não viu a árvore, toma conhecimento de sua existência apenas pela sua reprodução fotográfica, ninguém negaria que essa segunda pessoa estaria de fato percebendo-a tanto quanto a primeira. Como explicar isso? Percebendo a imagem (fidelíssima, quando pensamos nas fotos atuais) de algo que existe, estabelecer-se-ia o conhecimento de sua existência, independentemente da existência de Deus ou não. Com certeza, Aristóteles não chamaria uma foto de mímesis. Uma foto não é um quadro , pintado por meio do esforço humano de uma representação, como são nossas memórias. É algo mecânico que depende de um clique. E isso tanto é tão verdade que o surgimento das câmeras pôs abaixo a pintura realista e a arte da pintura só não desapareceu porque surgiram impressionistas, surrealistas, pontilhistas etc. Uma foto, mesmo artística, está mais próxima da realidade do que uma ideia numa mente percipiente, convenhamos. E isso vale tanto para fotos banais quanto para fotomontagens ou fotos artísticas.

Assim sendo, o arrazoado racional parece sucumbir perante a verdade empírica trazida por Berkeley. Prova-se que o que existe é real. E se acha isso óbvio, porque é lógico que seja assim, você estará usando a palavra "lógico" num sentido muito popular. Não é graças à lógica e ao raciocínio que sabemos disso (porque nesse ponto Berkeley é impecável e conseguiu provar-nos o contrário), mas graças à nossa experiência, que diz que, de algum modo, a matéria independe de nossa percepção. E se não depende, por que seria necessário admitir uma Grande Mente que tudo vê? Newton, tão religioso quanto Berkeley, parece ter mais razão sendo contraditório do ponto de vista lógico. Os defensores do materialismo também. Essa intuição, nesse momento histórico, faz que Newton seja considerado um gênio.

Berkeley representa a última tentativa de argumentação racional da existência de Deus da história (tentativas que começaram na Idade Média). Só restará aos religiosos voltar à primitiva ideia de um Deus que dependa da fé tertuliana do credo quia absurdum e não que tenha algo a ver com essas bizarras discussões epistemológicas: que seria Ele, se não é um ser antropomórfico, nem uma supermente, nem o ser spinoziano que se confunde com a matéria, nem o ser que descubro fazendo o exercício de Pascal? Entende-se daí por que as portas do Iluminismo se abriram.




E quem continuará a conversa e nos responderá a essa pergunta será o religioso Voltaire, que dirá: eu não sei, você não sabe, ninguém sabe. Para ele, toda opinião humana é um espetáculo de sua tremenda ignorância. Mas ironicamente, diz-nos Voltaire, saber que ninguém sabe não nos impede de nos matarmos uns aos outros. Todos têm certeza de que estamos obviamente com a razão. E o que é a razão? Algo inútil hoje em dia.

A inteligência da qual a única espécie de hominídeo sobrevivente se vangloria e narcisisticamente imputa a nosso Criador aparentemente tornou-se inútil depois que se inventaram as armas. E isso faz muito tempo. O cérebro se desenvolveu para que o fraco animal pelado e sem rabo sobrevivesse às feras e às intempéries, defendendo-se com sua inteligência. Mas após a invenção da primeira arma, o raciocínio não vale mais nada. Quem tem razão sucumbe ao desarrazoado. De que adianta o cordeiro dizer: a te decurrit ad meos haustus liquor?

Moral da história: concordando ou não com Berkeley, eu não tenho respostas e você - surpresa! - também não tem. Mas talvez haja uma diferença entre sofrer ou não de autoengano... Você saberia dizer se já se enganou hoje? Não precisa responder, afinal isso é uma outra conversa.