O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

domingo, 31 de março de 2019

DESCULPAS PARA DESCULPAR-SE

Quem acredita que as coisas existem apenas quando lhe dão um nome pode entrar numa enrascada medonha ao descobrir que não é bem assim que o mundo humano funciona. O mito de que a existência de algo provém da existência de um nome ganhou força, como tantas outras inverdades, do esforço iluminista. Assim, um termo em Física como força não se refere à estupenda qualidade fisiocultural de um Gregg Valentino ou de um Arnold Schwarznegger. Para começar, essa força se atenua com o tempo e desaparece com o falecimento de quem a detém. Uma definição corta as asinhas da polissemia, dando ao termo um só significado. Depois disso, a palavra passa a se comportar, lobotomizada, como um x qualquer de fórmula. Se isso é bom ou ruim, não discuto aqui, porque nem sei se faria sentido, mas fato é que as palavras preexistem aos termos e, portanto, são mais interessantes do que ficar falando de x ou y.



A mente iluminista parece ter entre os seus grandes mentores a figura de Claude Favre de Vaugelas (1585-1650). O anedotário ironiza o seu purismo extremado, dizendo que suas últimas palavras no leito de morte seriam "Je m'en vais, je m'en vas, l'un et l'autre se dit ou se disent". Eu gosto mais de uma versão aproximada (que eu não sei se fui eu mesmo que involuntariamente criei na minha mente fantasiosa ou se li isso no livro Introduction aux études de philologie romane, de Erich Auerbach, traduzido do turco), que afirma que suas últimas palavras teriam sido "Je m'en vais: je ne m'en vas pas!", usando uma fórmula parecida com o anônimo gramático do Appendix Probi. Gosto mais dessa última versão da fake news, porque, de fato, Vaugelas não se foi, Vaugelas está mais vivo que nunca. Se Vaugelas aceitava ou não a forma "je vas" era problema dele, convenhamos. Fato é, contudo, que essa obsessão, que eu poderia chamar de vaugelaisite aguda, seja Vaugelais o primeiro que a transmitiu, ou não, acometeu e acomete desde então tantos seres cultos e incultos, que a gramática normativa e o senso do que é uma língua nunca mais foram os mesmos. Desse modo, de fato, Vaugelas ne s'en est pas allé.

A vaugelaisite é uma doença que atinge o cérebro e tem alguns sintomas muito claros: num primeiro estágio, o doente acredita que letra e som são a mesma coisa, em seguida, o doente acredita que uma palavra só tem um significado, por fim, o doente acredita que apenas uma forma cabe em uma flexão de uma palavra e, no estágio terminal, acredita que significados de uma palavra são ordenados em uma escala de honra e dignidade. Se provamos que a letra <a> não tem nada a ver com o som [a], que palavras têm vários sentidos aceitáveis em qualquer situação e que pãos ou pães é questã de opiniães, o acometido do surto vaugelaisítico dirá que delirante é quem afirma tais coisas e que as provas que apresento (gravadas e escritas) simplesmente não existem. O primeiro comportamento dos vaugelaisíticos, quando têm poder, é demitir quem fala errado e censurar (em casos extremos, bater e matar em nome da única língua existente e nacional); se tem alguma cultura, a vítima de vaugelaisite sairá editando gramáticas, cursos, vídeos, numa cruzada contra os erros de linguagem, crendo piamente que a "forma correta" foi ditada em algum monte Sinai e vem de uma esfera mítica. Alguns cultos, menos surtados com esse delírio napoleônico, não agirão de forma menos pior: afirmarão que as formas corretas estão nos autores clássicos e são capazes de esgoelar contra quem afirme o contrário ou mesmo rasgar a obra do seu venerando autor clássico, se seus contestadores mostrarem passagens que sirvam de contraexemplo a suas hipotéticas verdades. Fato é que o mundo do vaugelaisiano não é aquele mundo real, onde dados refutam teorias: não há ciência alguma em quem evoca o bom falar, o correto pronunciar ou a única forma correta tolerável de se conjugar um verbo. Na verdade, o hospedeiro do verme vaugelaisiano acaba sendo explorado por outros tarados, sedentos de poder, em nome do qual línguas inteiras foram torturadas para se conformarem aos seus preceitos ideiais, vide os contorcionismos dos "linguistas" no expurgo de termos árabes na língua turca durante a época de Atatürk.



Gramáticas tradicionais não eram assim até o período de Vaugelais. Obviamente os povos todos são etnocêntricos: os gregos chamavam os não-gregos de bárbaros e os índios kayapó pensam que a região do Murena é o centro do mundo. As primeiras gramáticas ocidentais, portanto, tinham a finalidade de entender os textos clássicos e não a linguagem, como um todo. As gramáticas mais antigas são mais interessantes, porque os clássicos ainda não se definiram, por isso Varrão é mais interessante que Quintiliano e Fernão de Oliveira é infinitamente mais interessante que Rocha Lima. Antes do período em que o vírus vaugelaisítico se espalhou no planeta, pode-se dizer que se as gramáticas tradicionais valorizavam sim a expressão das classes mais abastadas das capitais de seus reinos ou impérios ou então a expressão de alguns queridinhos (párocos ou escritores), antes do iluminismo, contudo, ninguém em são juízo afirmaria que não existe a expressão por ser dialetal, rural, iletrada ou simplesmente longe da sede do governo. Se eu ouço alguém falar que "menas" não existe, mas, momentos antes e momentos depois, eu ouço gente que fala "menas", então quem está delirando? Eu ou quem diz que "menas" não existe? Estarei ouvindo coisas? Se eu sou louco, por ouvir coisas que não existem, por que implicar com coisas inexistentes? Seria o mesmo que fazer um míssil nuclear contra o bule celestial de Russell. Veja, uma coisa é dizer que algo está certo ou errado, pois nessa afirmação haverá sempre alguém poderoso querendo oprimir ou alguma instituição fundada sobre valores morais, religiosos ou étnicos querendo tomar as rédeas da situação, mas algo completamente diferente é afirmar que algo que eu ouço e vejo não existe. Isso beira uma acusação. E minhas provas não serão provas por pura tirania de quem acusa.

A Real Academia Española e a Académie Française nasceram nesse espírito. Um paraguaio deve pedir desculpas a Madrid por não conseguir falar caballo como deveria; um canadense deve sentir um autodesprezo por se expressar de maneira inconvenientemente não-parisiense. Os vaugelaisíacos são vítimas de uma demência cujo maior resultado é gerar milhões de outras vítimas, infectadas ou não pelo mesmo vírus. Muito mais eficaz que o vírus da ideologite, a vaugelaisite chegou para ficar e é corroborada por professores, governantes, religiosos e pela mídia de direita e de esquerda. Só deixará de existir quando sucumbir o último ser humano do planeta. Na língua inglesa aparentemente esse problema parece menos grave, não sei por quê: ou a roupagem gráfica bizarríssima do idioma inglês tornou a sua gramática misteriosamente imune à vaugelaisite terminal ou os ingleses, com seus próprios Bacon, Locke, Hume, Berkeley, Newton, Stuart Mill, desreprimidos desde que aprenderam a decapitar reis, deram uma banana parcial às esquisitices francesas, tão influenciadas ora pela religião, ora pela anti-religião ou pelo rousseauismo (as quais não foram guilhotinadas na Révolution, como a francesada pensa). Que o diga o pobre Descartes, fugindo de mala e cuia para a Suécia, o mais mascarado e medroso dos filósofos.

Quem me lê pode pensar como então a vaugelaisite chegou tão atenuada a Portugal e consequentemente ao Brasil, até mais do que na Inglaterra. O vaugelaisítico lusófono só reconhece (erroneamente) sua forma típica em poucas pessoas, que são levadas a sério por uma horda que tem surtos esporádicos (embora muitas vezes intensos). Os acometidos falantes de português não levam tão a sério o discurso delirante que motiva a vaugelaisianite e mesmo os nossos melhores juízes, professores e gramáticos se permitem errar uma horrenda concordanciazinha de vez em quando, são fiéis adeptos da pan-próclise, são afeitos a termos imprecisos, beirantes ao chulo, enfim, podemos dizer que é uma espécie diferente de vaugelaisite, que poderia ter o epíteto de hipocrítica. Convenhamos: ridiculizamos às pampas os discursos de Astromar Junqueira ou de um lendário Jânio Quadros ao mesmo tempo que os veneramos como "falantes de um português certíssimo". Mas por que os lusofalantes são assim e não como os venerandos franceses e os invejados espanhóis que introduziram a vaugelaisianidade em sua hemolinfa? Ora, leitor, esqueceste-te do Terremoto de Lisboa, que tanto assombrou Voltaire? Sim, contra a disseminação de uma loucura como o vaugelaisismo nada foi mais eficaz que o terremoto de 1755. Nessa época, o sortudo Bluteau já tinha falecido. Conclusão: nossa língua tem dicionários fenomenais (que não devem nada aos dicionários árabes em dimensão e picuinhidade), mas tem gramáticas que parecem mais com buzinas que chateiam do que com uma incômoda e enlouquecedora microfonia. Todo mundo que é lusoparlante enche a boca para perorar seus discursos com frases como "'cumê' tá errado, o certo é comer (com r trilado)", "entrar pra dentro é burrice", "existe diferença entre 'onde' e 'aonde': não saber isso é vergonhoso", "a regência do verbo 'assistir' quando se refere a 'ver algo' requer a preposição 'a'", "num existe 'avua', é 'voa', seu jegue", "num é 'minino' que se fala, é 'mEnino'", frases que calam a boca de qualquer um, rebaixam a autoestima do ouvinte, apontam para Jericó e prometem uma terra que não existe, evocam tábuas glotomosaicas ditadas por semideuses que ninguém cultua por não saberem onde ficam seus templos.

Alguém se perguntará neste momento se eu também não fui infectado por esse vírus, pois estou escrevendo numa variante que não reflete nada da forma como eu me expressaria quotidianamente. É verdade. Sabe, amigo leitor, a frase anterior me sufoca como se eu estivesse dentro de uma eiserne Jungfrau. Para teres alguma ideia disso, reproduzirei seu original e farás tua comparação: um doceis gorinha memo vai me perguntá se o num peguei ess diabo de vírus, por caus que o tô escreveno dum jeito que num tem nadavê co jeito que o falo tudo os dia. Eis-me, leitor, em meu estado mais feliz, lançado para fora desse casulo horrendo, que é a norma culta. Mas quem me leria? Já até pensei seriissimamente sobre filosofia quinhentista no primeiro documento da expressão botucatuense que existe e ninguém me tomou a sério (em sério?). Obviamente, mesmo na escrita da minha expressão nativa, sou propositalmente conservador, porque achei melhor manter os grafemas <o> e <e> para as postônicas finais, afinal de contas, a tradição escrita não é vaugelaisítica, apenas normativa, no sentido prevaugelaisiano.


O que irrita o autor deste texto não é a norma em si, mas o impedimento de alguém ser o que é e o consequente extermínio de sua expressão. Apoio quem ensina aos filhos e netos expressões de seus avós: não são apenas ararinhas azuis que precisam ser conservadas. Palavras e estruturas morrem de forma miserável com seus falantes e ninguém sente pena. Um dicionário como o de Jerônimo Cardoso (c1508-1564) remetia a uma pessoa culta, feliz, boquirrota e folgazã; já um dicionário pós-vaugelaisiano é soturno e nele se sentem as tesouradas de quem odeia a glotoexuberância. Até na lexicografia houve quem desse pitacos sobre o que existe e o que não existe. E essa pseudo-ontologia lexicográfica (cujo êxito inegável é resumível no mantra "só existe o que está nos dicionários") ocupa meandros sinistros da mente até mesmo dos mais sóbrios pesquisadores da linguagem.

Um vaugelaisiano é um boçal que se imagina cientificamente amparado por sua filosofia. Por exemplo, se alguns significados vocabulares são mais verdadeiros que outros, que devem ser abolidos porque adviriam da ignorância ou da inexistência, ninguém falaria nada nesse planeta e os robôs já  lhes estariam tomando as rédeas. Somente quando isso ocorrer, curvar-me-ei aos vaugelaisiólatras.

Por exemplo, se eu penso bastante na palavra "desculpa" poderei conseguir ver nela uma outra palavra ("culpa"), que é negada pelo seu prefixo "des-". Se eu perguntar a um sábio que revira seus olhos por ter bebido muito da cachaça vaugelaisiana, ele dirá que esse "des-" é um prefixo que significa negação. Ora, se uma desculpa é uma não-culpa, chego a concluir que a palavra "desculpa" seja sinônima da palavra "inocência". Se a cachaça ainda não afetou o hipocampo do prescritivista, ele dirá que não se expressou bem: a desculpa é uma não-culpa no sentido de que quando uma pessoa se desculpa ela pede para que a outra lhe retire a culpa. Podes ver, leitor, que ele já está apelando para a desrazão, porque estávamos falando da palavra "desculpa" e não da palavra "desculpar".

Mas, vá lá, "desculpar" é de fato tirar a culpa de alguém que se sente culpado ou que é de fato culpado. Um padre desculpa o pecador, um juiz não desculpa um culpado de um crime, mas uma pessoa cristã desculpa o próximo, seja ele culpado ou não. Nesse sentido, vemos que o alemão diz entschuldigen, que é a mesma coisa, ou seja ent-=des-, Schuld=culp-, -ig-=-ad-, -en=-ar... Uau, que coisa fantástica é a mente decalcada! Não posso esquecer-me de um dia escrever sobre isso. Mas, por hoje, chega de tergiversações.

Ok, uma desculpa é de fato um ato de desculpar alguém? Acho que não. Se o padre perdoa o pecador, ele não está usando uma desculpa. Se o juiz não incrimina o culpado, também não. Ambos perdoam e incriminam baseados no poder que lhes conferem sociedade e tradição. A desculpa ou é algo que eu peço para alguém (e nesse caso, é o imperativo do verbo "desculpar" e pode aparecer também em outras formas: "desculpe", "desculpem", "desculpai") ou então é algo que dou para alguém, justificando-me por não ter feito o que era esperado.

Pedir desculpas, portanto, é essencialmente diferente de dar desculpas. Quando eu peço desculpas, concordo com o que o outro diz, concordo com meu crime ou com meu pecado. Quando eu dou desculpas, essa consciência não é tão clara, pois estou obnubilado por aquilo que Sartre chama de mauvaise foi. Eu sei, no fundo, no fundo, que eu sou culpado ou que tenho culpa, mas minto para todos e sobretudo para mim mesmo. Pedir desculpas revela o máximo de consciência (ainda que deformada pelo superego), já dar desculpas é o contrário: trata-se do máximo da inconsciência ou da cara-de-pauzismo. Nem mesmo um lógico vaugelasiômano concluiria que pedir é o contrário de dar.


Se eu te peço dinheiro, tu mo dás ou não. Os atos estão associados, mas um não é o contrário do outro (pedir é o contrário de não pedir, dar é o contrário de não dar). Pedir ou não pedir faz parte do meu papel de pidão, já dar ou não dar faz parte do teu papel de concedente. Eu posso dar um tapa sem que a pessoa peça, a menos que haja a desculpa de que essa pessoa "pediu esse tapa", mas de novo, quem assim argumenta estaria soltando névoas no raciocínio lógico por puro cara-de-pauzismo (que termo feio para esse sintoma! vaugelaisiemo-lo, chamando-o mascaradamente de xiloprosopismo): ninguém pede um tapa de fato!

É nessa hora que o vaugelaisiano vem com a desculpa de que esse sentido é metafórico. Diz que há sim um sentido verdadeiro e único e o resto é figura de linguagem. Com argumentos assim, tal como um jundiá ensaboado, o vaugelaisianista escapa, valendo-se de sua lógica particular (outra vez um termo modificado por má-fé), valendo-se daquilo que nega: o pulsar vibrante da linguagem, que não é única, antes é infinitamente fragmentada e sem qualquer ranking a não ser os ditados pelos caras-de-pau. Precisaram surgir uma filosofia e uma filosofia da linguagem para percebermos isso, mas mesmo esses conhecimentos volta e meia caem na esparrela vaugelaisiana e repetem tudinho o que está nas Grammaires raisonées da vida. Dito de outro modo: o vaugelaisianismo é um inferno e essa doença do capeta nunca nunca nunca mais será extirpada da face da Terra.

Assim sendo, resignemo-nos, querido leitor, siga o seu gramático preferido, evite encher a paciência de quem segue outro e não pense que gramáticos são papas ou juízes. Gramáticas são infinitas, a maioria nunca foi e nunca será escrita e só desaparecerão das mentes quando aqueles que as abrigam morrerem. Só a consciência nos faz livre, por alguns momentos, desse parasita mental, digno de um filme de Cronenberg.