O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

domingo, 11 de maio de 2014

A MARCA DE CAIM

Diz a Bíblia que o lavrador Caim (em hebraico, Qayin) trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor e que, também, seu irmão Abel (hebraico Hevel) a trouxe das primícias do seu rebanho e da gordura deste. E por alguma razão, que não está clara no texto (mas está na interpretação de padres, pastores e rabinos, bem como nos filmes hollywoodianos), Deus preferiu a carne e ignorou a verdura. A aparente arbitrariedade divina fez Caim perder a cabeça e matar o irmão de forma traiçoeira. Deus (que, no mesmo livro de Gênesis, tende a preferir parcialmente alguns a outros, sobretudo no meio de tantas guerras descritas) não gostou do homicídio de Caim e o amaldiçoou. O próprio solo, que era muito fértil, apesar de não ser mais o solo do Éden, foi amaldiçoado. O ser humano não dava uma bola dentro mesmo!
 
 
A partir de então, Caim teria de ser nômade, sempre à procura de novas terras, uma vez que todo local onde se estabelecesse seria ingrato nos seus frutos. Não entendo por que não mudou de profissão (na época, ao que tudo indica, só havia duas: a de agricultor e a de pastor). Caim achou injusta a maldição, mas ainda havia mais: Deus (apesar de onisciente e, portanto, já deveria saber que isso tudo ocorreria, mas não impediu) decreta que Caim não deveria ser morto por nenhum justiceiro ou por outro motivo qualquer. Pelo contrário, deveria sofrer vivendo e que qualquer que o matasse seria vingado sete vezes. Para que reconhecessem o primeiro homicida, pôs-lhe um sinal (dizem que na sua testa, mas a Bíblia não fala onde). Depois disso, não fala mais nada, a não ser de sua descendência maldita. Duro de entender é quem era a mulher de Caim, que o acompanhou à terra de Node.
 
Como toda história curta do Gênesis, esse mito (provavelmente babilônico) tem uma força dramática semelhante a todos os mitos de todos os outros povos e é comparável em dramaticidade às passagens homéricas. Mais que isso, essa história, de tão contada, entranhou-se na alma (ou na mente, ou no superego) de boa parte da população mundial, quer como verdade factual, quer como símbolo de algo muito verdadeiro. Caim e seu estigma são metáforas pungentes daquilo que se chama Justiça (cultuado como deusa ou deus por tantas culturas) e que, como uma entidade que ainda merece letra maiúscula em português, parece sobrepor-se às nossas ações, à nossa consciência e ao nosso livre-arbítrio.
 
Bom, justiça seja feita, mas afinal, o senso de justiça é inato no homem ou é algo que arduamente aprendeu quando passou a conviver em cidades e não mais em bandos de familiares? Experimentos de psicologia (com seus fundamentos e pressupostos questionabilíssimos) bem como observações etológicas encontram-na em toda parte, nas mais variadas etnias e até mesmo nas mais variadas espécies, quer de vertebrados quer de invertebrados. Eu seria mais cauteloso, mas não me estenderia nas deficiências de pressupostos que desembocam em conclusões que transformam ciência em curiosity.
 
Todos sabemos que, para haver justiça, é preciso memória. Acompanhará bem meu raciocínio quem viu o espetacular filme Memento, de Christopher Nolan (traduzido pessimamente no Brasil por Amnésia, apesar de o protagonista explicar que não tem amnésia). E todos sabemos, a memória é algo bem falha, por isso inventou-se a escrita.
 
 
Acho que não estarei repetindo aqui uma história que me impressionou. Se me lembro bem (risos), não falei ainda dela. Temos (todos concordarão) pouca memória de sonhos que povoam nossas horas de sono, mesmo dos que acabamos de ter. Por exemplo, com base em registros de meu diário pessoal, escrevi em 19 de janeiro deste ano o seguinte:
 
"Esta noite acordei com a certeza de duas coisas: meu primo viera morar perto de mim e, na mudança, pegou emprestado meu balaio de roupas, que eu não conseguia reaver por causa de suas constantes viagens. Outra certeza era que ao bater meu carro, dando ré, eu tinha a experiência de aquilo ter ocorrido uma segunda vez. Essas duas certezas, porém, eram falsas. Dizendo melhor, na verdade, agora, acordado, sei que essas informações são falsas, pois nem meu primo se mudara para perto de minha casa, nem eu batera meu carro dando ré. Essas informações provieram de sonhos, apesar de parecerem vívidas de manhã e indistinguíveis de experiências reais, na minha memória."
 
O estigma de Caim também necessitaria da memória de todos, senão novamente teríamos uma arbitrariedade divina ao punir com uma maldição quem não soubesse do homicídio.

Mas isso não vem ao caso. Pergunto-me: teriam nossas certezas esse mesmo caráter dos sonhos, isto é, estariam elas não ancoradas na realidade, mas somente em imagens que, quando muito, são transubstanciações sincréticas de experiências, as quais de fato teriam ocorrido? No caso acima, eu reconheci, depois de pensar muito e sem sofrimento algum, qual foi a bagunça que fiz na minha mente ao criar as duas imagens, mas não seria interessante detalhá-las num blog como este, pois não quero expor as profundezas do meu subconsciente e tampouco elas interessariam ao leitor, com certeza. Mas parece que essas visões noturnas que os sonhos nos promovem diariamente (das quais nos esquecemos quase completamente sempre) são papéis preenchidos por dêiticos vazios. Mas se são assim, de onde vem o enredo que promove essa imagem na nossa mente, confundindo nosso senso de realidade?
 
Pior que isso: há de fato uma realidade, perguntaria um filósofo radical como Berkeley ou tudo é apenas um jogo sintático, transformado em imagens projetadas na nossa mente? Por que esse tipo de exercício onírico existe? Para nos ensinar algo? Por que a evolução o privilegiou e não o fez sumir, já que é custoso com suas informações falsas e nos deixa tão vulneráveis, ao dormir, a ponto de algum predador poder facilmente nos comer, de tão indefesos quando voltamos toda nossa atenção a uma espécie de delírio? Qual, enfim, é a função real dessa verdade paralela criada? Nossa mente é metafórica, talvez, e tem necessidade disso?
 
 
Não tenho resposta para essa doideira que é o sonho, mas Oliver Sacks, como sempre, discorre maravilhosamente bem sobre o limite entre realidade e alucinação no seu último livro Hallucinations. Talvez lendo-o, o leitor chegue à sua própria conclusão. No futuro, narrarei sobre outros sonhos se for do interesse expresso do meu leitor. Anoto-os às vezes assim que acordo, pois é certo que sumirão da minha mente. Mas esse sumiço é intrigante. Se são importantes para a evolução, por que costumam sumir, quando não são por demais impactantes no nosso espírito? Ou será que não somem totalmente de fato e povoam nosso subconsciente como experiências-fantasma? Mistério após mistério.
 
Mas o que contarei é ainda mais perturbador e espero que o leitor tenha humildade suficiente para reconhecer-se no meu relato e não me julgar como louco de cima de algum trono. Pois bem, assistia eu no dia 05 de maio de 2013 a um filme com meu filho, a saber, From dusk to dawn, famosíssimo e quase obrigatório para os cinéfilos. Há anos queria vê-lo e mesmo assim, perdi o início, pois me surpreendi com o filme já começado, zapeando pela TV. Nos meus fragmentos de memória havia uma cena até então muito clara: meu amigo Wagner, que não vejo há mais de vinte anos, no porão de minha casa em Botucatu (onde ficava meu quarto), chegava, sentava-se à minha cama e comentava esse classic trash movie, detalhando a bizarra transformação dos vilões em mocinhos e a súbita aparição de vampiros. Meu filho, cético como todo adolescente que acha seu pai uma besta, armado de toda a parafernália informacional e tecnológica de hoje em dia, foi diretamente aos créditos quando disse que o filme era do tempo da minha adolescência. Fiquei surpreso quando me mostrou que havia algo errado aí, pois o filme era de 1995 e que não era de Tarantino, mas de Robert Rodriguez.

Pensei: "como assim de 1995?". Então não foi o Wagner, nem foi em Botucatu o acontecimento que se passava na minha cena mental. Nessa estranha náusea sartriana, minha memória vaguejou entre os personagens da minha história: teria sido a Luciana, o Antônio, o Maurício, o Sílvio, o Whilk, o Amílton? Nessa época eu não era mais um adolescente que vivia em Botucatu, mas o que eu fazia então? Já dava aulas em faculdades? Nem mesmo disso me lembrava. A sólida e certa imagem deu lugar a um desespero de memória em que nada mais fazia sentido. Antes desse episódio, havia tido uma outra impressão errada similar, a qual, porém, não me havia desestabilizado: tinha certeza de ter visto o filme Ghost Dog com minha ex-mulher, mas o filme na realidade é de 2007 e eu já me havia separado dela há anos. Nesse momento pensei: vi o filme de Jim Jarmusch com alguém, mas com quem? Ou será que o vi sozinho? Será que confundi esse filme com outro, do mesmo diretor, a saber Stranger than Paradise (que minha memória até agora dizia chamar-se Lost in Paradise, mas que o divino Google me fez corrigir) ou será que novamente estou confundindo tudo?
 
 
A memória é aparentemente algo metonímico. Depois de um conflito entre a informação mental e a real, como o que eu tive, só sossegamos se criarmos uma outra história verossímil que substitua a memória provada falsa por refutação dos dados. E foi o que fiz: não era mais Wagner que desceria as escadas de minha casa de infância, mas meu amigo Whilk que me visitara no Crusp e narrara o enredo rocambolesco. No dia seguinte, imaginava que não fora ele, mas o Amílton. Alguém, juro, fez isso. Ou não fez e eu estou misturando tudo na cabeça? Como nunca tive tantos amigos, é de fato perturbador uma incerteza tão grande.
 
De qualquer forma, em 1995 eu já fazia mestrado e obviamente só posso ter ouvido falar desse filme depois desta data. De fato, poderia ter acontecido a qualquer momento dos dezoito anos subsequentes (com certeza não foi depois de 2013, pois é a data do meu diário). Então o terminus a quo é 1995 e o terminus ad quem, 2013. É a única certeza que tenho. Pior: houve alguém de fato ou são vários fatos e pessoas, mesclados num único delírio, que chamo de memória? A informação de que era um filme de vampiros pode ter vindo de qualquer lugar e a cena que vejo em minha mente pode estar relacionada a outra conversa, envolvendo filmes ou não, com o Wagner ou não. A conexão, o sentido, a certeza, enfim, quase tudo que pensamos estar intactos na nossa memória é criação de uma mitologia pessoal? Como conseguimos guardar algo na mente?

Não é à toa que nós humanos não nos entendemos. Será que com tudo fazemos essa confusão? Ou somente com o que está remotamente associado a algo factual, ainda que importante à nossa biografia? A necessidade da precisão e da ancoragem faz-nos procurar as respostas mais próximas aos fatos. O sossego da alma parece estar aí. Na comprovação de que a loucura é apenas para os outros, jamais para nós mesmos, julgamo-nos representantes do animal racional que dizem que somos. Isso é importante para a nossa sanidade mental. Mas e se isso que chamamos de loucura for, de fato, a média e a normalidade da racionalidade? Não sei quem me falou aquilo que imagino ter existido, não sei quando nem onde, a não ser delimitando os tempos e locais impossíveis, nem sei com certeza se o que está na minha memória condiz com algo que realmente aconteceu. Mas a pergunta que vem agora é a mais terrível de todas: se não sei sequer sobre o que vivenciei, o que eu sei de fato? Sócrates não teria exagerado dizendo que só sabia que nada sabia? Enfim, a vivência pessoal perde completamente o seu valor por não ser algo rigorosamente real?
 
 
Quando penso nessas questões sempre me lembro (risos) das memórias de Montaigne. Leio-as paradoxalmente com prazer e desconforto, desconfiado que esse filósofo francês zomba o tempo todo do leitor (ou que perdeu totalmente o juízo por causa da senilidade). Ensinou-me que às vezes é preciso ter humildemente a consciência da incerteza. Em momentos como os de hoje, em que temos grande segurança de quem somos, do que gostamos e do que odiamos, remeto-me ao tempo de Montaigne, em que católicos instituíam seus tribunais de inquisição e que protestantes faziam igualmente seus excessos para se impor. Nesses tempos em que a tolerância não era a regra, reconheço os tempos de hoje. Talvez não fosse o caso de termos menos certeza e, em vez disso, tentarmos procurar os pressupostos daquilo que julgamos certo?
 
Como disse acima, só há justiça quando há memória, contudo, a memória é traiçoeira. Concluímos que a justiça se converte paradoxalmente em sinônimo de injustiça. Falta o real e, na sua falta, quem dita a realidade é quem está no poder. No entanto, muitas realidades insanas foram promulgadas em forma de leis, muitos líderes fizeram seus seguidores descerebrados agirem como verdadeiros loucos e isso só foi possível de se reconhecer a posteriori. A história está repleta de momentos em que o quase divino homem revela sua animalidade falha, mas sobre isso já falei muitas vezes aqui. Depois de ocorrida e reconhecida uma previsibilíssima atrocidade, sempre se buscam os culpados em portadores de estigmas, como os de Caim. Mas isso nem sempre é algo simples, daí a sede de justiça pode facilmente transformar-se em histeria. Cuidemos para não sermos vítimas de nossa própria loucura natural.