Como muitos amigos meus sabem, antes de decidir estudar Letras e ser etimólogo, eu queria ser entomólogo. Minha paixão pelos artrópodes era tal, que não via nada além deles na minha frente. Essa obsessão parece um pouco a história que Oliver Sacks conta sobre sua relação juvenil com a química em seu maravilhoso livro Uncle Tungsten. Pois bem, como toda paixão, ela passou da noite para o dia. A transição é meio complicada de explicar, mas já que comecei a falar disso, vamos lá.
No começo, eu tinha dó de matar os insetos, mas minha mãe, misteriosa como a mãe de Sacks e como todas as mães, autorizou-me a fazer isso, dizendo que não era pecado. Com a aprovação de Deus, desde então, lá no início da década de 80, passei a coletar insetos. Os moleques da vizinhança achavam aquilo tão diferente, que me presenteavam com bichos mortos encontrados em suas casas. Somente insetos, aracnídeos e crustáceos participavam das minhas caças solitárias ou em bandos de moleques, entre os quais estavam primos e vizinhos em Botucatu. Íamos para uma região conhecida como Morro do Peru e Bocaina. Não saíamos dos terrenos baldios e das matas. O resultado disso foram milhares de insetinhos mortos: besouros, borboletas, gafanhotos, libélulas e muitos outros. Havia tantos na natureza que jamais pensei que um dia sumiriam, mas sumiram, sobretudo os que eu mais amava, os quais se encontravam com facilidade sob os troncos podres, tijolos e pedras: opiliões, colêmbolos e outros estranhos seres. Aliás, lembro-me que, um dia, revirando pedras, encontrei um zoráptero. Só a história dele daria um blog.
Olhava os pequeninos por um microscópio presenteado pela minha mãe. Não me interessava pela histologia ou pelo interior deles. Amava suas armaduras, seus espinhos e quelíceras, suas maravilhas feitas de queratina, seus olhos e ocelos, suas pernas articuladas. Aos poucos, passei a venerar a nomenclatura zoológica. As leis do ICZN pareciam-me tão lógicas, tão perfeitas, que ainda hoje me fazem pensar que a nomenclatura zoológica foi o feito humano mais próximo da racionalidade. Encantava-me o fato de insetos tão pequenos terem nomes tão complexos. Um primo, que havia cursado seminário, deu-me seus livros de latim e grego e eu comecei a entender o que significavam.
O prof. Benedito Soares, que trabalhava na UNESP de Botucatu e que me tratava como o filho que nunca teve, convenceu-me também a estudar alemão. E como não saía de quatro bibliotecas da minha cidade (a Biblioteca Municipal, a do Centro Cultural, a da UNESP e a do EECA, onde estudava), travei contato com outras línguas: espanhol, italiano, russo, esperanto, bororo. Nesse momento, veio a súbita metamorfose. Resolvi, do dia para a noite, fazer Letras, apaixonado pelos livros de Sapir e Câmara Jr que encontrei. Mudar de paixão foi fácil. O difícil, pensava, seria contar ao prof. Benedito que havia virado casaca. Ensaiei muitas vezes como lhe diria, mas não foi necessário porque ele faleceu quando estava no terceiro ano do Colegial.
Nessa época, mas sobretudo depois dos dezessete anos, resolvi que não mataria mais insetos. Ainda hoje salvo as baratas que entram em minha casa. Uma vez fiz isso com as mãos, mas não recomendo, porque fiquei com uma diarreia horrível, provavelmente psicológica. Sou fiel a esse princípio, tanto quanto um jainista digambara, mas obviamente não pelos mesmos motivos. Não adianta convencer-me que insetos não sentem dor, por exemplo. Todos os insetos espetados que tenho em casa são da década de 80 e os que aparecem datados depois disso foram achados mortos. Essa mudança de atitude, na verdade, resultam de questionamentos elaborados, longe de casa, à lógica de minha mãe. Contudo, penso que, dentro de mim, já tinha a vontade de não matar mais os insetos, afinal, nunca gostei dos estilingues dos moleques. Pela mesma razão, escondia a espingarda de meu pai quando meu primo ia em casa, ávido de matar os pobres anus que se dependuravam no taquaral.
Mas, naquela época, a natureza era tão abundante, que me dava a certeza de que tudo ficaria intocado para sempre. Um dia, pensava, poderia apresentar, vivos, a meus filhos, um a um, os insetos que coletei. Ainda tinha essa sensação quando finalmente busquei minha coleção em Botucatu, a qual se deteriorou por falta de cuidado e manutenção, nos longos anos em que não tinha moradia fixa. Ao ver meu megalóptero irrecuperável pela destruição dos corrodêncios, todas minhas coloridas libélulas coletadas na Bocaina destruídas, o meu enorme belostomatídeo transformado em poeira, ainda me consolava a ideia de que eles estavam por aí, para sempre, e que não fazia mal jogá-los fora, afinal, um dia, quem sabe, encontraria outro espécime morto, que substituiria o estragado da minha coleção. Vão engano.
Ninguém fala disso, mas a extinção dos insetos é real. Nos últimos tempos tem havido uma redução tão absurda na quantidade de espécies, que não saberíamos nem ao menos avaliar qual é a porcentagem atual dos ainda existentes. Borboletas comuníssimas, como a monarca, desapareceram. Que houve na sua longa e milenar rota do hemisfério norte para o hemisfério sul, com pausa para namoro e congelamento no México? Aliás, para onde foram todas as borboletas? Hoje, no interior de São Paulo, vejo somente alguns pierídeos, um ou outro papilionídeo, mas sumiu a maioria dos licenídeos, inúmeros heliconídeos e centenas de outras espécies comuníssimas. Imaginem as que já eram raras! Faltam olhos treinados como os meus para perceber isso? Certo dia, indo a Maringá, vi várias espécies que cria extintas. A fauna entomológica paulista está indo cada vez mais para o Sul? Por quê?
Na capital, por exemplo, na USP e no Parque Trianon, vejo diversos insetos que não encontro há anos no interior de São Paulo. Um pouco de mata intocada faz esse milagre. Aliás, por incrível que pareça, entre os paredões de concreto da capital, ainda vejo animais que há décadas não se encontram no interior, cheio de canaviais e seus pesticidas. Não são só vaga-lumes, mas todo tipo de inseto. No cemitério da Consolação, por exemplo, há uma linda espécie de borboleta alaranjada que nunca havia visto antes, com as asas posteriores com uma espécie de cauda, semelhante à dos papilionídeos, embora não seja um. A primeira vez que a vi estava perdida dentro da padaria. Há mais de uma década vejo-a zanzando pelas árvores do cemitério e do atual corredor de ônibus. Na Cidade Universitária, perto do estacionamento, flagro periodicamente uma vespa Pepsis, que, por gerações, leva suas aranhas para uma mesma toca, num ritual que eu percebo há mais de vinte anos.
Mas cadê os elaterídeos tão divertidos, com seus pulos imensos, que eu gostaria de mostrar para meus filhos? Sumiram. Crisomelídeos, melonídeos, escarabeídeos e outros insetos tão comuns estão cada vez mais raros.
Entre os desaparecidos está o cerambicídeo Compsocerus violaceus, besouro vermelho com élitros metálicos, azuis ou verdes, com intrigantes pompons na antenas. Uma obra-prima da evolução. Há décadas procuro um em vão. Lembro que, para mostrá-lo para alguma visita em casa, quando criança, bastava ir ao quintal de meu avô, vizinho ao meu, e lá eu achava alguns exemplares em poucos minutos.
E assim andava eu solitário, nos últimos anos, sem meus amigos de infância e, sentado na sala dos professores, eis que vejo na soleira o meu saudoso cerambicídeo. Morto! Alguém, entrando na sala (espero não ter sido eu mesmo), pisou-o de maneira certeira. Estava lá esmagadinho. Coletei-o e já está espetado na minha coleção, todo torto e explodido com o pisão. O anterior, que datava de 1981 estava com a cor apagada e era de uma feiúra que doía.
Mas fiquei imaginando se não era o último da espécie. Cada inseto que revejo depois de décadas me dá essa sensação. Sei que são danados, que se escondem. Milhões de anos de infortúnios lhes garantiram uma capacidade de adaptação muito maior do que a de nossa frágil e pretensiosa espécie, mas, mesmo assim, o pensamento de que será a última vez na vida que os verei é inevitável. Espero, porém, que não seja a última vez na vida de um ser humano que se importe com eles, pois o espetáculo da existência desses bichos é indubitavelmente algo muito mais admirável que a contemplação de qualquer pintura renascentista. Mas ninguém se importa com os insetos.
Segundo exegetas respeitadíssimos, entre eles, com certeza, o douto Athanasius Kircher diria que, antes do dilúvio, Noé não precisou recolher um casal de cada espécie de inseto em sua famosa arca, pois, afinal de contas, como todos sabiam - pelo menos até chatos como Francesco Redi, Lazzaro Spalanzani e Louis Pasteur provarem o contrário - os insetos empesteariam o mundo de novo, assim que as águas do dilúvio baixassem, brotando espontaneamente da lama. Pena que a abiogênese não seja verdade (ou que tenha sido verdade apenas uma única vez há 4,4 bilhões de anos): os insetos somem sim da face da Terra por muitos fatores (o homem é um deles), mesmo depois de milhões de anos de existência bem-sucedida. Como não têm alma, não posso consolar-me em revê-los nem mesmo no post mortem.
Mas convenhamos: ele, tão simpático e bonitinho, não tem cara de praga.
Decerto, se é bonito, tem alma boa e não teve escolha, diria Rousseau, defendendo nosso bom selvagem. Assim é a vida: adaptou-se e, por isso, vai levar veneno na cabeça, com certeza. Aí, o homem chupa feliz sua laranja com veneno, mas livra-se do inconveniente besourinho de pompom.
Isso me fez lembrar uma reportagem atual (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cienciasaude/198960-a-invasao-das-pererecas.shtml), sobre a invasão da perereca antilhana Eleutherodactylus johnstonei em um bairro de São Paulo. Racional, um biólogo explicou a um jornal da TV que o anfíbio é prejudicial para as espécies nativas (pergunto-me quais são as outras espécies da ampla fauna de anfíbios do Brooklin...).
Ora, uma praga por definição é uma espécie bem-sucedida num ambiente diferente daquele de origem ou uma espécie autóctone que se adaptou e passou a se alimentar das plantas úteis ou belas, do ponto de vista humano. Os lindos aguapés brasileiros viraram praga em alguns lugares da África. Algumas pragas são maléficas, trazem doenças, mas o pobre anfíbio apenas quer cantar, atrair umas pererequinhas para namorar (sim, só os machos coaxam) e como são milhões, não deixam ninguém dormir à noite.
O anunciado holocausto batráquio justifica-se pelo fato de que são incômodas, pois os assobios, medidos em altíssimos decibéis, atravessam até mesmo as vidraças anti-ruído e, portanto, chateiam a espécie mais importante do Brooklin, um primata chamado Homo sapiens.
Gás tóxico resolverá tudo, pois acabará com a invasora caribenha, mas, raciocinando com o biológo da entrevista, também matará as supostas espécies nativas que deveriam ser protegidas de sua invasão (para não falarmos dos insetos que servem de alimento para aranhas e passarinhos igualmente nativos ou não).
Daqui a pouco choramingaremos porque vivemos num deserto. Quem mandou as pererecas não serem como os pardais, invasores igualmente alienígenas mas quietinhos?
Ninguém quer ser incomodado, sobretudo por pererecas estrangeiras barulhentas, que não têm juízes para defender seus direitos coaxatórios. Nesses casos, face à indiferença e à falta de empatia, a pena de morte parece a única solução. E como são pequeninas, inofensivas e não sabem falar para se defender, quem é que vai ligar quando, após sumirem todas, juntamente com seu incômodo chiado intermitente parecido com o som de engrenagem, a paz se reestabelecer, para que possamos ouvir tranquilos as buzinas dos automóveis que passam pelas avenidas, cantando os pneus, com música de baixo nível em alto volume?
Detalhe sórdido: os anfíbios são a única classe de vertebrados em risco de extinção. Isso já é anunciado há anos. Talvez o Equador tenha ainda uma grande fauna, mas os sapos e rãs do Brasil estão com os dias contados. Com a seca dos últimos tempos, a situação piorou. Vi três sapos atropelados, fugindo de uma lagoa recém-seca na USP, sem ter para onde ir. Nesse sentido, matando as pererecas estrangeiras, só estaremos contribuindo para que os anfíbios sumam mais rápido de nosso planeta, para ficarmos sozinhos nele, comendo nosso hambúrguer e contemplando o pôr-do-sol diante do nosso lindo litoral poluído. Na certa, mesmo com esse cenário, alguém jobinianamente dirá: como a natureza do Brasil é linda!
A espécie de perereca caribenha achou um jeito de sobreviver, não nas Antilhas, mas aqui no nosso proverbialmente acolhedor país, que a receberá, ao que tudo indica, com um banho de ácido. Assim tratamos as espécies que nos chateiam e abundam demais.
Mas calma, alertam os sapientíssimos repórteres de nossa imprensa: tudo será feito com cuidado, para não afetar a flora e a fauna nativas, igualzinho quando criamos uma hidrelétrica. Garantem-nos os jornais que especialistas, tal como Noé, coletarão exemplares de todos os animais da área a ser inundada, inclusive minhocas, proturos e dipluros que vivem sob as pedras ou nas profundezas do solo. Serão salvas, prometem os jornais, todas as plantas, inclusive o mais reles vegetal indeterminado e inútil à indústria farmacêutica. Anotarão certinho, sem a menor necessidade de voltarmos ao original, todas as inscrições rupestres e gravuras pré-históricas das imediações, mesmo as de cavernas subterrâneas desconhecidas. Todos os fósseis serão coletados, não se preocupe. Toda a vida será recriada num outro solo, com outro pH, num Ararate maravilhoso, com outro subclima. Lá os indivíduos se adaptarão felizes, num hábitat completamente diferente, sem estranhar nadinha. Isso é certíssimo. Como dizia Henfil: deu no New York Times!
Detalhe sórdido: os anfíbios são a única classe de vertebrados em risco de extinção. Isso já é anunciado há anos. Talvez o Equador tenha ainda uma grande fauna, mas os sapos e rãs do Brasil estão com os dias contados. Com a seca dos últimos tempos, a situação piorou. Vi três sapos atropelados, fugindo de uma lagoa recém-seca na USP, sem ter para onde ir. Nesse sentido, matando as pererecas estrangeiras, só estaremos contribuindo para que os anfíbios sumam mais rápido de nosso planeta, para ficarmos sozinhos nele, comendo nosso hambúrguer e contemplando o pôr-do-sol diante do nosso lindo litoral poluído. Na certa, mesmo com esse cenário, alguém jobinianamente dirá: como a natureza do Brasil é linda!
A espécie de perereca caribenha achou um jeito de sobreviver, não nas Antilhas, mas aqui no nosso proverbialmente acolhedor país, que a receberá, ao que tudo indica, com um banho de ácido. Assim tratamos as espécies que nos chateiam e abundam demais.
Mas calma, alertam os sapientíssimos repórteres de nossa imprensa: tudo será feito com cuidado, para não afetar a flora e a fauna nativas, igualzinho quando criamos uma hidrelétrica. Garantem-nos os jornais que especialistas, tal como Noé, coletarão exemplares de todos os animais da área a ser inundada, inclusive minhocas, proturos e dipluros que vivem sob as pedras ou nas profundezas do solo. Serão salvas, prometem os jornais, todas as plantas, inclusive o mais reles vegetal indeterminado e inútil à indústria farmacêutica. Anotarão certinho, sem a menor necessidade de voltarmos ao original, todas as inscrições rupestres e gravuras pré-históricas das imediações, mesmo as de cavernas subterrâneas desconhecidas. Todos os fósseis serão coletados, não se preocupe. Toda a vida será recriada num outro solo, com outro pH, num Ararate maravilhoso, com outro subclima. Lá os indivíduos se adaptarão felizes, num hábitat completamente diferente, sem estranhar nadinha. Isso é certíssimo. Como dizia Henfil: deu no New York Times!
Mas e se, céticos dessa competência maravilhosa, em vez disso, deixássemos as pererecas invadir toda a cidade? Teríamos apenas de conviver harmoniosamente com elas e com seu ruidoso rangido. Elas fariam parte do cenário, como a poluição, os carros e a violência, não menos incômodos. Talvez nossos ouvidos evoluíssem para adaptar-se ao barulho enlouquecedor, após longo período de adaptação, no qual teríamos de dormir de dia e trabalhar de noite. Humanos, pensem na sua própria evolução, let them be!