Mente quem acha que a fala humana serve para comunicar-se, pois o seu verdadeiro objetivo é a mentira. A mentira quase não é o propalado vício condenável por todas as culturas, mas um impulso humano difícil de ser domado. O fenômeno da mentira, visto de forma pouco judiciária, associa-se àquele outro estranho fenômeno que Sartre denominou mauvaise foi e que é tão esplendidamente exemplificado no seu romance La Nausée.
Um dia A prometeu que faria B a C se C fizesse D, mas após C ter feito D, o cara-de-pau do A negou ter prometido que faria B a C. Esse tipo específico de mentira (se é que A se lembrava de fato de ter prometido B a C) é conhecido como "não-cumprimento de promessa" e quem o comete é demonizado pelos alemães com o título de unzuverlässig, palavra mais feia que qualquer ofensa à genitora. O não-cumprimento de uma promessa gera com frequência a ira, quando não mortes. Muitas desavenças houve até que alguém bolasse um modo de não necessitarmos de coisas fugazes como memórias para sustentarmos as promessas. Surgiu a ideia do registro que, se descumprido, geraria no mínimo uma pendenga judicial. Assim nasceu o conceito abstrato da justiça.
Heráclito já disse com sua bela obscuridade que tudo é liquidamente fugaz, mas o conceito de promessa parece querer ter a pretensão de quebrar essa máxima. Uma promessa fugaz é uma contradição, pois a perenidade faz parte da definição de uma promessa. E o perene sempre foi uma obsessão humana por ser algo que alimenta a esperança e a alegria. Talvez por isso, não bastava que alguém tivesse ouvido Homero ou Jesus e em seguida registrado suas palavras: foi preciso inventar algum tipo de gravação magnetofônica para registrar a voz de nossos ídolos. Pouco depois, alguém sentiria falta de eternizar o próprio momento e substituíram-se os quadros, não suficientemente realistas, por fotografias. Mesmo tendo gravado a voz de alguém declamando seu poema, mesmo tendo fotografado essa mesma pessoa nesse momento, por insatisfação, foi preciso juntar as duas coisas e criar a filmagem, para que ressuscitássemos nossos ídolos mortos falando e movendo-se como nós, ainda vivos. Ainda assim, estávamos cientes de que apreciávamos apenas uma pequena parte de sua existência e isso obviamente ainda parece pouco. Os reality shows deram o passo seguinte: prendendo algumas pessoas numa casa, presenciamos, ainda que apenas durante meses, a sua existência e nos parece satisfazer o fato de essa existência ser tão artificialmente criada.
Qual será o próximo passo? Monitorar cada segundo da vida de uma pessoa, por dentro e por fora, não só mostrando o que faz na cozinha e no banheiro, mas dentro de seu cérebro e órgãos? Nosso voyeurismo, fruto da nossa necessidade de controle da fugacidade, nos empurrará a meios cada vez mais ousados, até vermos como funcionam e deixam de funcionar cada espasmo e pulsar durante cada ato? Será que assim saberemos, por fim, se as pessoas que cruzam nosso caminho na rua movimentada são gênios ou idiotas? Saberemos quais são suas preferências sexuais nesse confessionário pós-moderno? Seremos alertados se são assassinos ou se são suicidas? E mesmo quando cada movimento de intestino de cada pessoa do mundo ao longo de toda sua vida for monitorado, ainda talvez não nos satisfaçamos, porque estamos longe de termos a onividência divina.
Qual será o próximo passo? Monitorar cada segundo da vida de uma pessoa, por dentro e por fora, não só mostrando o que faz na cozinha e no banheiro, mas dentro de seu cérebro e órgãos? Nosso voyeurismo, fruto da nossa necessidade de controle da fugacidade, nos empurrará a meios cada vez mais ousados, até vermos como funcionam e deixam de funcionar cada espasmo e pulsar durante cada ato? Será que assim saberemos, por fim, se as pessoas que cruzam nosso caminho na rua movimentada são gênios ou idiotas? Saberemos quais são suas preferências sexuais nesse confessionário pós-moderno? Seremos alertados se são assassinos ou se são suicidas? E mesmo quando cada movimento de intestino de cada pessoa do mundo ao longo de toda sua vida for monitorado, ainda talvez não nos satisfaçamos, porque estamos longe de termos a onividência divina.
Sêneca diria que isso é loucura, pois natura semina nobis scientiae dedit; scientiam non dedit. Aliás, se me perguntassem aonde quer chegar o Homem, diria que uma boa resposta seria ver o que ele imagina existir em Deus. Parece que as qualidades divinas, por nós mesmos atribuídas, são exatamente as que são invejadas por nós, símios que sofrem de atriquia, presos na insegurança da mentira iminente e da traição certa do amigo mais querido. Armado até os dentes, em cada ato de covardia, o exibicionista bicho-homem simula a onipotência divina. A cada cyberbisbilhotagem, o hacker sente o gozo de estar próximo da propalada onisciência.
A sensação de controle das variáveis, que os cientistas regozijam em ter nas mãos, não é diferente. Cada previsão corroborada, cada dado controlado, cada descoberta antiintuitiva faz que o cientista prove um pouco da realidade inacessível a nossos sentidos limitados e nos mostre o quanto estamos longe da intuição quotidiana. E se a percepção científica é distinta da percepção comezinha, a ciência é o que nos faz alçar a situação de semideuses. Só nos falta a eternidade.
Mas - espanto! - há quem não creia na ciência, mesmo que o cientista se mate provando que uma conclusão científica é um dado puro, sem a atuação de nossa vontade, enfim, a vida como ela é. Na verdade, não acreditar na ciência pode ser pura burrice, mas esse acesso de pirronismo que afeta paradoxalmente sobretudo os mais crentes é justificável quando pensamos que por trás da ciência há um limitadíssimo cientista. Ora, é natural que homines amplius oculis quam auribus credunt, diria novamente Sêneca, portanto a verdade é que uma conhecimento científico arduamente adquirido quando é negado só pode ter uma razão: nossa incapacidade de entender os pressupostos daquele conhecimento.
Há decerto algum estímulo em alguma glândula da nossa matéria cinzenta que nos dá algum regozijo quando experimentamos o domínio de algo ou de alguém. Isso faz pensar que nossa espécie é movida por instintos que a tornam uma espécie de dominatrix. Seu chicote é implacável quando as coisas saem do controle. E o conhecimento científico é um controle, mas não o único. Daí muitos se darem ao luxo de dizer que não creem na ciência, como se fosse algo tão simples quanto dizer que não creem em sacis, em caiporas ou em qualquer coisa que não veem.
Ninguém nasce com tendência ao masoquismo, mas o sadismo parece pulular nas veias da nossa espécie. Somente depois de muito choro, de muita conversa e de muitas experiências frustradas, torna-se, enfim, em adulto, com alguma assimilação dos bens milenares de civilidade. Quando aprende que não deve fazer isso ou aquilo, que não pode ser assim ou assado como ele quer, mal sabe que, antes de seu nascimento, houve revoluções e muitas desgraças que originaram aquele valor que quer destruir, conhecido como Bem.
Evidentemente, valores existem para ser questionados. Mas nem sempre o questionamento universal dos valores traz aquilo que os cidadãos modernos costumam chamar ingenuamente de progresso. Há coisas arduamente conquistadas sob a forma de valores imiscuídos a bobagens. Imaginar que o joio será separado do trigo por causa da nossa eficiente lógica é um delírio. Todo apelo a um progresso natural nada mais é que um conto-de-fadas, criado pela mauvaise foi humana. Nasceu da sua boba crença de superioridade sobre as espécies. Nem tudo melhora, só porque tudo muda. Não concordará comigo o relativista, dizendo que só existem mudanças e não há mudança para melhor, nem para pior. Didaticamente, bêbado de mauvaise foi, me ensinará que mudança é adaptação e os valores independem da mudança.
Mas o relativista não enxerga que há estabilidade nas mudanças, obviamente, porque elas nem sempre são controladas por entes que têm vontade própria. Há mudanças que dependem da vontade e outras que independem. Se eu dou uma banana à questão do aquecimento global porque sou cético e não vejo diferença entre a declaração de um xamã e a de um cientista, decerto não consigo acompanhar o raciocínio do cientista. Se o raciocínio do xamã é algo que requer que lidemos com analogias, o do cientista requer que conheçamos dados e algo do raciocínio lógico. Se não sou imaginativo, o que o xamã me diz é loucura. Se sou ilógico, as extensas cadeias de causas e consequências do cientista não fazem para mim o menor sentido.
Então falta, talvez, para entendermos o que nos diz o cientista, autopoliciar nosso pensamento, senão seremos distraídos por imagens que se interpõem entre seus silogismos. Mas se quisermos ser sensíveis ao que nos diz o xamã, devemos esquecer o que significa coerência e entregar-nos ao contrário do que as evidências e as consequências nos apontam, ou seja, àquilo que se chama fé. Convenhamos, não é fácil ter as duas coisas ao mesmo tempo. Fé e coerência não são compatíveis. Só conseguiremos uni-las se formos autoenganados ou se tivermos duas personalidades.
Hoje com a informação abundante, há um fenômeno talvez novo e bastante interessante. O conhecimento self-service que nos faz pensar que estamos além desses dois tipos de personalidade, a do crítico e a do prosélito. Não estamos. O crítico não aceita. O prosélito não questiona. Ninguém está além da crítica ou do proselitismo. Somos apenas seres que se apegam ou não a discursos e as razões disso são profundamente individuais. A verdade contida nesses discursos não importa. E se somos cientes disso, não sofremos da mauvaise foi: simplesmente somos crápulas.
Razões profundamente individuais, sem dúvida. Freud ressuscita com seu charuto à boca e nos pergunta: "essa individualidade viria da nossa alma?" O cético diz que não. O prosélito diz que sim.
Individuais, sem dúvida... mas seriam genéticas? O cético dirá não. O prosélito dirá sim. O cético não tem evidências de que não sejam. Os prosélitos também só têm esgares e uma rala evidência de que sejam. Enfim, surpresos, observamos que o cético e o prosélito não se confundem respectivamente com o cientista e o religioso. O inverso também pode ocorrer!
Individuais, sem dúvida... mas viriam do nosso meio e de nossa educação? Da nossa experiência e de nossa vivência? O cético não diz que não. O prosélito não diz que sim. Sem querer, concordam e se entreolham espantados, pois estão acostumados à quizila. Palavras vagas fazem que todos entrem em acordo. Não há uma única direção nelas. O meio nos muda e mudamos o meio. A educação nos muda e mudamos a educação. A dupla implicação parece ser menos eficiente à avaliação de verdade que a implicação simples. Nesse limbo é que estão os acordos de paz.
Toda verdade gera ira - explica-nos o mestre relativista com sua empáfia de guru - porque o que é verdadeiro para um é falso para outro. Mas, pergunto a esse sabichão: "o que não é nem verdadeiro nem falso para ninguém gera a tolerância?". Aparentemente sim. A necessidade de viver em comunidade fez que tolerássemos o que não nos parece verdadeiro às custas de úlceras que se formaram porque nosso superego nos obriga a não esganar o próximo. O que não é nem verdadeiro nem falso sobrevoa o nervosismo das polêmicas. Está ali, elemento não-distintivo, coisa amorfa que merece pouca atenção do cérebro brigão do hominídeo, mas é algo que deveria ser mais bem observado e, talvez, cultuado.