O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

sábado, 14 de setembro de 2019

LE CHIEN ANDALOU C'EST MOI

Um vídeo que misturava música árabe com cigana produziu em mim ontem uma pequena epifania e por isso, resolvi falar de uma grande, que tive um dia e que não se repetirá tão cedo.

Mas antes falemos do fim do século XIX. Um ano antes da abolição dos escravos, em Almería, no sul da Espanha, nascia María Caparroz Rodríguez, filha de Miguel Caparroz e de Catharina Rodríguez. Maria se casaria com Gabriel Soler Díaz, nascido três anos antes na mesma cidade. María e Gabriel desembarcaram no Rio de Janeiro em 1911, durante o governo de Hermes da Fonseca, com respectivamente 24 e 27 anos, vindos na embarcação França. Esses dados foram extraídos de documento do Serviço de Registros de Estrangeiros da Polícia do Estado de São Paulo, lavrado em 1939, durante o governo de Getúlio Vargas. Nele se vê a foto de minha bisavó com seus 52 anos (talvez mais nova, se a foto for anterior ao documento), quase a minha idade atual. Soube por meio de tradição oral, na qual minha mãe participou ativamente, que a origem longínqua de minha família era a França. Talvez tenha confundido o nome do navio com a gênese dos Soler. Mais tarde, descobri que tanto Soler quanto Caparroz são nomes catalães e fiquei me indagando se eram catalães espanhóis ou franceses. O primeiro sobrenome significaria "agricultor" (literalmente "quem trabalha a terra") e se pronunciaria "sulê" e não "solér", como todos falavam. O segundo sobrenome significaria "ruivo" (literalmente "cabeça vermelha"). Até então só tinha encontrado o verbo soler do espanhol que significaria "acostumar-se" (ou soer, como está no dicionário de português), mas isso não fazia muito sentido. Contente, fui contar ao meu avô, que ainda vivia, sobre a nossa ancestralidade catalã. Presenciei pela primeira vez uma das famosas manifestações de raiva de meu avô (tão narrada por todos seus filhos, mas que um neto como eu jamais tinha vivenciado). Enquanto narrava minhas descobertas, ele, que havia retirado o chapéu de palha ao entrar em casa, coçava a calva, ouvindo-me meio desatento e calado. Cioso de sua andaluzidade, assim que terminei de expor minha tese, me disse nada mais, nada menos que Catalán é a puta que te parió, naquele português misturado com espanhol com que se dirigia a todo mundo. Minha mãe, justo aquela que me pariu deveras, estava na cozinha preparando o almoço e levou o maior susto. A conversa não continuou, obviamente, truncada como foi na sua base. E eu nunca entendi a razão da reação de meu avô. Talvez ele, católico fervoroso, tivesse preconceito em relação aos catalães, talvez associados a anarquistas. Não sei se meu avô conheceu algum catalão na vida para ter tido essa reação.


A minha infância foi permeada de narrativas antigas interpretadas de maneira mui pessoal por minha mãe, cuja vida pobre e cheia de percalços, além das relações atribuladas com alguns irmãos e com minha avó, extremamente violenta, traziam uma aura de fantasia, que, se não fosse por algum tipo de consciência, pareceria que eu mesmo teria vivido o que ela me contava. Meu avô, também chamado Miguel Caparroz, como meu trisavô, acrescido porém do Soler de seu pai, o seu verdadeiro sobrenome, que nos nomes espanhóis fica logo após o prenome (e não no fim do nome), era a única referência viva que eu tinha da epopeia da solerzada, junto com alguns irmãos vivos dele que eu raramente vi. Os seres anteriores a meu avô eram os nossos Kunta Kinte. E é na Certidão de Idade de meu avô, lavrada quatorze anos antes de eu nascer, sob governo Café Filho, que vejo o nome de meus trisavós paternos (Cleophas Soler e Anna Díaz). É lá também que descubro que meu avô se casou com minha avó em 1941 em Piramboia, pequeno vilarejo que frequentei algumas vezes com minha família, em visita a tios de minha mãe, quebra-cabeça difícil de reconstruir agora. As lembranças do sotaque de Piramboia da década de 70 eram grandes, pois me pareceram tão diferentes da de Botucatu, que chamaram a atenção de uma criança bem antes de ela se interessar por linguística. Incluíam entre seus traços característicos um hoje lendário -r retroflexo de infinitivo em situações informais, tão ausente (nessa flexão verbal) no chamado Português Brasileiro, que às vezes duvido de mim mesmo e de minha memória. Na única vez que conversei com outro nativo de lá (ou seria alguém que frequentava a cidade?), a saber, um guarda que por acaso estava no restaurante Rodoserv, que fica na Rodovia Castelo Branco, no exato momento em que eu também estava, pude confirmar que essa impressão era verdadeira, se não deliro de novo, induzindo o interlocutor a dar-me essa tão desejada informação. Meus avós se casavam em Piramboia e os japoneses atacavam Pearl Harbor oito meses depois.

Foi com certo desalento que descobri que meu avô não nascera na Espanha, mas um ano após meus bisavós desembarcarem no Brasil. Como a espanholada chegou em outubro de 1911 e ele nasceu em outubro de 1912, não posso sequer imaginar que minha bisavó o trouxesse no seu ventre, pois o sêmen de meu bisavó encontrou o óvulo de minha bisavó em terras brasileiras. Se há ainda margem para fantasia, posso pensar que a concepção de meu avô foi o resultado da alegria esperançosa de estarem em terras novas. Quando assisti ao filme Léolo, em 1992, pensei exatamente nisso. Mas a vida de meus avós e tios parecia mais um filme de Carlos Saura do que de Jean-Claude Lauzon. Na verdade, deve ter sido apenas descuido. Meu bisavô devia ser como meu avô, católico fervoroso, inimigo dos anticoncepcionais. Dizem que minha avó teria tido vinte e tantos filhos (cada parente diz um número), mas apenas dez chegaram a ver a luz do mundo, além de dois que morreram muito jovens (Irene e José Carlos sobre os quais pairam tantas outras lendas). Pobres e cheios de filhos, adotaram um décimo primeiro. O lado excessivamente religioso de meu avô era sempre lembrado pelos filhos: rezava o terço todos os dias e obrigava-os a rezar junto, com um cinto no joelho. E como havia muitos pequeninos, que se distraíam e bagunçavam, açoitava-os e exigia que recomeçassem tudo de novo. Isso deve ter acontecido uma vez ou outra. É difícil imaginar essa cena diariamente. Deve ser por isso que poucos continuaram católicos, embora a religiosidade fosse uma marca muito presente em todos de minha família. Meu avô, apesar da sua impressão, leitor, foi um anjo, se comparado com minha avó, que mereceria uma narrativa à parte, se eu tivesse informações sobre ela para além dos relatos de família. Quando ele faleceu em 1995, eu tinha já quase 27 anos e me arrependo de não ter tido mais conversas com ele sobre sua infância. Minha avó faleceu quando eu era muito pequeno. A data ninguém soube me informar, mas eu me lembro (pela memória da minha mãe) de estar incomodado com a fungação em volta de seu féretro, que eu disse ser nojenta e, ato contínuo, mereci uns bons tabefes maternos.

Antes de seus 83 anos de vida, meu avô sofreu algum tipo de AVC e ele só falava de coisas de seu passado, muitas vezes em espanhol. Em uma das poucas vezes que o vi antes de falecer, ele falava e agia como uma criança pequena e, com certeza, o ambiente em volta de sua cama não era sua casa em Botucatu, mas a Fazenda Água Virtuosa, atual Nova América, onde vivera, cuja língua usada era o espanhol andaluz. Acabo de saber que meu avô virou o nome de uma rua no Jardim Montemor III em Botucatu. Quem diria? Como ninguém sabe dizer direito quando eles vieram da zona rural para a cidade, imagina-se que minha avó, filha de portugueses, teria aprendido a falar um pouco dessa língua para comunicar-se com os sogros e cunhados. Minha mãe afirmava que ela e seus dois irmãos mais velhos, ao frequentar as primeiras séries do primário, não sabiam falar português e eram hostilizados por isso. Tios meus, muito mais jovens, que não vivenciaram nada disso, eram mais ligados nessas espanholices da família que os mais velhos: vá entender! Havia toda uma história sobre a riqueza de meu bisavô, que teria comprado o equivalente ao bairro do Lavapés de Botucatu e por sovinice e/ou perdulariedade, por hipotético desgosto de os filhos já brigarem pela herança em sua vida, teria quebrado uma mesinha de vidro com um murro, num acesso de raiva e dito ¡no quedaréis con nada! e teria torrado os cobres em jogatina e mulherio. Como meu avô foi o mais ingênuo na hora da partilha, reivindicando pouquíssimo para si, não teria conseguido reverter essa situação, diferentemente dos irmãos, daí ser pobre-pobre-pobre de marré deci enquanto os outros não eram tão ruins de vida assim. Essa era uma das versões. Se é verdadeira ou não, fato é que sempre há uma vítima em qualquer situação. Lendas com muitas versões: o mundo sem etiologia seria um sem-sentido só, se não imaginássemos raízes em estacas inférteis. O que faz a tradição oral senão milagres? Fato é que conheci alguns tios-avós e eles falavam com um sotaque brabo de espanhol andaluz. Por muitas vezes pude entrar e sair desse labirinto do fauno, corroborando ou refutando muitas narrativas. Teria que organizar todos os relatos confusos de minha mãe e todos os papéis que estão comigo, reunir tios e minhas dezenas de primos para juntar o quebra-cabeça e ao fim e ao cabo, não sei se conseguiria dizer algo mais seguro sobre o que foi a presença espanhola da família de minha mãe.


Obviamente, há a outra parte da família, a do meu pai, de origem no norte da Itália, de onde vem meu sobrenome, tão comum em Rovigo, no Vêneto. Mas essa é outra história. Até porque a ancestralidade do meu lado paterno, embora não menos interessante, não marcou tanto como a porção espanhola de meu avô materno, de tal forma que é para mim impossível assistir ao filme Cría cuervos, de Carlos Saura, sem chorar. E há muito mais Saura do que imagino: não vejo retrato melhor da sociedade espanhola dessa época se não pelo filme Ana y los lobos. Minha família andaluz era assim: parte dos filhos era hipercatólica (eu tinha uma tia-avó freira, chamada Soledad e um dos meus tios teria conseguido fugir do fardo de ter nascido como o segundo mais velho e, portanto, de ser padre, explodindo um colégio); parte, militaresca; parte, demasiadamente lasciva, como a família com que Ana vai morar. O que os reunia sempre era a mãe Espanha, que fará cem anos num outro filme, muito mais surreal. E também nos reunia a música andaluz, tocada altissimamente na vitrola, que eu ouvia, na voz de cantores como Marisol e Joselito, às vezes morrendo de vergonha por causa dos vizinhos, quando retornava da escola primária, assim que eu virava a esquina do quarteirão de casa. Minha mãe nascera em 1944, também no quase infinito governo Vargas, como meu pai, dois anos antes. Faleceria dois anos após meu avô, também com 52 anos, durante o governo FHC. Aos longo dos vinte oito anos que convivi com minha mãe, onze vividos longe dela, em outra cidade, sua presença, mesmo ausente, estava na forma da narrativa da espanholidade da família, embora isso representasse apenas um quarto de fato, pois metade dela era italiana por causa de meu pai e outro quarto era portuguesa, por causa de minha avó materna.

Mas essa espanholidade, dado o meu afastamento físico de meus parentes aos 17 anos, acabou com o tempo sendo sentida como uma bobagem, uma espécie de escape costumeiro que fazem muitos se dizerem italianos ou japoneses por causa da vergonha de ser brasileiro. Consciente disso, apesar de gostar de história e de diacronia, nunca fui obsessivamente procurar detalhes da vida anterior a esses meus antepassados, gente comum e simples, fugindo de uma Europa prestes a dilacerar-se com suas rusgas eternas. Minha origem sempre foi humilde e a de meus avós e bisavós também deveriam ser, apesar de tantas lendas, nada que consiga ser reconstruído para além de documentos de batismo manuscritos em igrejinhas obscuras e cartórios desagradáveis. No entanto, o lado calado e soturno dos descendentes de italianos do lado paterno da minha família se contrapunha tanto ao arrebatamento andaluz do lado materno, que, mesmo sem qualquer pretensão idealizada, era difícil de ignorar a sua presença, que se tornava muito visível nas festas familiares e nas discussões acaloradas. Mesmo desgarrado da sua ubíqua religiosidade, dos vieses políticos extremados e da pouca profundidade argumentativa, não sem alguma violência atávica que tenha marcado duramente a minha alma por meio de transmissão direta e indireta, nunca recusei por completo minha família como fez Léolo. Pelo contrário, sempre me senti um deles, de tal modo que meu sotaque arrefeceu, mas nunca sumiu. E eu gosto dele.



Mas não me sentia mais espanhol como quando era criança. Isso não. Se meu próprio avô, o que falava aquele andaluz arrevesado que só ouvi fora de minha família na boca de uma personagem taxista de Almodóvar, era brasileiro, assim era minha mãe, ainda que ela conseguisse falar espanhol com conhecidos chilenos, tocasse castanhola e dançasse tablao, recordando infinitamente os filmes da atriz-cantora Marisol que vira no cinema mocinha. Que felicidade imensa ela teria, se pudesse ver hoje os YouTubes dessa cantora. Eu choro aos cântaros quando os revejo, tamanha a lembrança do amor que minha mãe tinha por essa tal Marisol, que acabou sendo o nome da minha irmã e seria o meu, se eu tivesse nascido mulher. O mais curioso é que tenho irmãs gêmeas e a que nasceu cinco minutos antes, a que deveria ser a Marisol, conforme reza o registro, já que eu não pude ser a Marisol que minha mãe queria, também não se chama Marisol, porque minha tia Lúcia cismou durante o batismo (e enquanto meu pai as registrava) que ela não tinha cara de Marisol e convenceu minha mãe que a terceira filha é que tinha. Aquela que deveria ser a Marisol, e de fato é conforme o documento oficial, passou a se chamar Mara Sílvia e aquela que deveria ser a Mara Sílvia, por ser a que nasceu cinco minutos depois, tal como se lê no registro, se chama Marisol. Minha tia ganhou de David Lynch. Família permeada de lendas, como bem vê o leitor. Mãe, estou com seus LPs. Prometo que um dia devolvo a minhas irmãs, depois de transformar tudo em MP3, se elas jurarem não jogar fora.

Bom, eu, todo racionalzão, como meu leitor sabe, tento não me abalar com essas lembranças. Não sou espanhol e essa cantora lembra minha mãe, razão de eu chorar. É questão de emoção e não de identidade. Ponto final, como queríamos demonstrar. Só que não.

Eu já havia ido a Almería em 1995, pouco depois do falecimento de meu avô. Não fui por isso, mas porque estava na Europa, pela primeira vez, fazendo estudos. Não escutei o sotaque parecido com o de meu avô em Almería: falavam andaluzmente, mas não era o mesmo. Espantei-me com a cidade, que tem uma fortificação magnífica e que ninguém na família havia comentado. Foi uma experiência meio fria, pois achei tudo muito árido. Ou era eu? Perguntava-me se meus antepassados eram da cidade de Almería mesmo ou de algum povoado próximo, já que há uma jurisdição maior também chamada Almería. Enfim, valeu conhecer o local, mas Sevilla pareceu mais encantadora que Almería, tanto que voltei a Sevilla em 2010 em plenas festas, explorando melhor seus encantos e sobretudo sua noite. Foi quando ouvi os tablaos fora de minha casa pela primeira vez e me emocionei. De fato, não deve haver nada mais lindo na Terra, imagino e penso que sou neutro quando digo isso. Retornei a Sevilla, em maio de 2013. Sozinho dessa vez. A cidade não era a mesma, pois era época de crise ou não era época de festas. Além do espanto com a diferença que senti na cidade, apesar de apenas três anos separarem minhas idas, algo mais aconteceu e para que o leitor entenda plenamente o ocorrido, transcrevo notações de meu diário de viagem, pois convém que cessem as palavras esterilizadas de um narrador desapaixonado. Maupassant entenderia o que quero dizer:

Talvez sejam as quatro cañas que tomei, mas a Andalucía me faz de fato embriagar-me na ilusão da raiz. Sentado ao fim da tarde, por volta das 21h30, num desses restaurantes ao ar-livre europeus apareceu um cantor de flamenco. O compasso das palmas e a voz chorosa merecia mais do que as três moedinhas que lhe dei: a dignidade orgulhosa e a vergonha do pago em que se encontrava, fazia aquele senhor de meia-idade deixar-me tão emotivo que não sei se saberia explicar o que sentia. Se o tablao é algo folclórico, reinventado porque se extingue espontaneamente ao longo do tempo, fazendo sentido apenas no ideal do turista que o vê vicejante, eu não sei. Só posso dizer que me evoca lembranças vagas de discos que há muito não são tocados. Mais vivos na descendência do que na tosca origem de meu semiandaluz avô. Sinto como algo meu, mesmo tão estranho e alienígena. Ao meu redor só vejo cada vez mais do mesmo. As semelhanças mundiais entediantes, o lixo ao chão, grades e lanças protetivas às janelas, mesmo que não sejam regra, levam-me ao tédio, mas basta esta dança fictícia emergir dos infernos em que reside e sinto-me o mais vivo dos humanos.


No dia seguinte:

Embalado pelo espírito do flamenco fui, pela indicação do hotel, a um tablao chamado Los Gallos. Houve momentos de êxtase natural, simpatia e espontaneidade, mas a plateia demasiadamente estrangeira não foi suficiente para seguir a música com palmas e pisões, que é o espírito do tablao. No táxi, reclamei disso, ao que o motorista me contestou que o flamenco não está morto, nem é a suposição de Sevilla ser grande e cosmopolita demais o real motivo da ausência de espanhóis no público. Era verdade que o cantor mais sério era velho, mas havia no espírito de alguns outros mais jovens da equipe, sobretudo no guitarrista, um indício de vida do tablao. Indicou-me um lugar chamado Anselma, que fica na rua Pajas del Corro. Ao chegar no hotel, o senhor da portaria, sevilhano e feliz com meu comentário de que iria à Anselma, já se sentiu à vontade de falar-me em dialeto. Indicou-me mais outros dois grátis, La Madruga e Raya Real, próximo à Avenida de la República; indicou-me dois bares estupendos, um chamado Miami, próximo a la calle de la Triana ou en la calle de San Jacinto e un otro, chamado Golondra, si entendo bien a sua escrita, ao que tudo indica, numa rua chamada Alfareria. Quase nada disso havia nos guias (...) nesse momento penso que o tablao ocupa em mim o lugar que a religião ocupa em outros. A sensualidade do tablao é algo herético, profano. A tourada é outro lado da mesma violência, mas nesse caso não tenho afinidade ou raízes, talvez porque o abate de animais me vincule à minha metade incógnita, a paterna. Uma grande parte de mim, porém, é definida, ainda que ceifada muito cedo. Nisso consiste a identificação, a ideologia, o fanatismo, a falta de questionamento que abundam em todos e que julgo às vezes erroneamente em mim não existir. Os cultos de taurobolia seguiram os antigos atos dionisíacos e antecederam o deus sangrento e crucificado. O id não está no morno ou no apolíneo. Esse lado descompassado, interrompido, estranho, quase inesperado, é o ritmo do meu coração em antagonismo com a racionalização. Não se sabe quando se deve aplaudir, não se sabe se o show acabou. É uma ópera encenada por loucos, nela imperam os acidentes da vida.



E fui a Cádiz, a cidade mais surpreendente da Espanha. Um dia antes, eu me perguntava se, voltando ao Brasil, lembraria que uma casquinha de sorvete é um cucurucho, que desenham de um jeito curioso  o número 1, que "não vale a pena" se diz no merece la pena, que pronunciam o -ch- como nosso -x- de xícara quando dizem dicho e derecha. Mas já em Sevilha meu avô começou a reaparecer no estranho -ts- que é o modo como pronunciam -st-: não dizem usted, mas utsé, ouvi ¡qué sutso! como diria meu avô, cuja língua só explorei numa única tarde antes do AVC e anotei tudo em um caderno, que preciso reencontrar. Mal sabia que jamais esqueceria Cádiz. O dia anterior, tinha tentado ir à Anselma, mas os proprietários tinham ido à procissão do Rocío, como me informou aos berros uma senhora que tanto lembrava uma personagem vindo de minha família, talvez a tía Gertrudes, conhecida como tía Melaquita, pois segundo a lenda, quando meu bisavô morreu, teria agarrado a máquina de costura e antes mesmo do corpo esfriar teria dito la máquina es mía, 'ninguém' me la quita. Xinguei a santa por me privar de um tablao legítimo e nem imaginaria que, ao fim e ao cabo, estaria doido procurando uma imagenzinha da Virgen del Rocío, uma das preferidas de minha coleção. Percorri as feiosas ruelas de Cádiz até chegar à desproporcionalmente grande catedral. Logo após ouvir uns hicitse em vez de hiciste e um ara em vez de ahora, comecei a me familiarizar com aquela atmosfera. "Ele está aqui, nesta cidade", sim, meu avô reapareceria a qualquer momento naquele lugar por onde passaram muitas espécies de hominídeos, os misteriosos povos dos cromeleques, os tartésios, os fenícios, os celtas, os gregos, os romanos, os vândalos, os mouros e os castelhanos, sim, meu avô estava vivo, eu tinha certeza, não só na boca daqueles gaditanos, mas na luz que refletia no mar e no ar que respirava. Embora morto no Brasil e em Almería, ele renasceu em Cádiz quase involuntariamente. Ele estava ali, na África visível de cima da catedral, nas colunas de Hércules, com a cabeça da península deixando o Mediterrâneo para trás, mergulhando no Atlântico como uma caravela, entrando n'água como Crassigyrinus, ser do Carbonífero que desistiu da terra firme e resolver ser desanfíbio e destetrápode. César chegou a visitar o Templo de Hércules ali e o segundo momentoso momento foi quando eu cheguei. Era ali que o estanho buscado pelos fenícios (hoje mortos nas múmias do museu) se tornaria o bronze que revolucionaria o conceito de Estado na Humanidade, mas nada disso foi mais importante que o reencontro com o seu Migué. Pensei que encontraria em meu diário o relato exato do que senti, mas o que foi sentido foi sentido e não foi escrito. O que há escrito vem depois, no dia seguinte, sobre a decepção com um congresso, mas o que está na minha memória de fato foi o encontro com meu avô falecido em cada coisa que via e cada palavra que ouvia. Em cada esquina virada, parecia que eu ia topar com ele, vendendo guarapa. De volta a Sevilla, depois dessa epifania, a emoção que trazia dentro de mim ainda era muito clara, pois, quando descrevo o Real Alcázar, digo:


Acho que me comovi com as frases do guia simulando a voz de Mercúrio. Também me impressionei de saber que a estrutura foi parcialmente abalada pelo terremoto de Lisboa. Almocei e jantei regiamente e dei esmola a todos os pedintes que apareciam a cada quinze minutos. Comprei dois CDs da procissão do Rocío e também uma imagem da santa que espero que não quebre. Fiquei muito emocionado ao ver na TV os cantos andaluzes que integram três ou quatro gerações. É incrível como existem virtuoses mirins e pessoas com cara simples e voz poderosa. À noitinha sucumbi a um flamenco de turistas, já que são os únicos abertos esta semana. Mesmo havendo inovações amalucadas da parte do dançarino, gostei do show que durou uma hora apenas (...) Amanhã estarei no Brasil (...) sentirei saudades de ver cartazes dizendo coisas como "pinchos variados", "chacina", "chipirón", "tocar al timbre", "hay caracoles y cabrillas", "rogamos mantengan sus equipajes controlados en todo momento" (...) talvez eu seja mais sensível a isso aqui do que em Portugal. 

E chegando:

A doce volta à casa não tem aquela palpitação cardíaca de antes de enfrentarmos o novo, nem a comoção de rever o velho, mas algo de integração, algo como o encaixe de duas peças de quebra cabeça, um sentido integralizado, uma coerência, uma familiaridade.

Parecia que eu tinha acabado de ler aquela resenha explicando o Mulholland drive, de David Lynch. Mas isso não aconteceu em 2013. Aconteceu ontem. A desintegração causada pelo encontro com um morto justificava a minha comoção tão inenarrável. Peço perdão por ter sido tão fraco, leitor, deixando a peteca da minha razão cair. Dizem que isso é humano, mas na verdade é somente a prova de que há em mim algo que dizem não existir: um indivíduo.