O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

SALVEM OS ZUMBIS!

Primeiro foram os vampiros, jovens, bonitões e sanguinolentos, mas de anos para cá a TV foi invadida por zumbis e sua horda de adoradores. Há vários tipos de enredos, mas, quase sempre a situação é a mesma: o mundo está infestado de infectos zumbis, mas meia-dúzia de jovens bem nutridos, munidos de armas potentes ou de lâminas afiadas, formam uma espécie de minoria que se salva e impede a panzumbidade. Para não se tornarem como eles, degolam-nos sem piedade, afinal, merecem: são feios, insensíveis, esquisitões e suas mordidas transmitem sua zumbência. Eugenia? Esparta revisitada? Os zumbizólatras não gostarão desta minha resenha, pois dirão que não conheço o suficiente sobre a matéria para falar dela. Têm razão: nunca tive paciência de ver um filme de zumbi do começo ao fim. Mesmo nos dias em que estou determinado a fazê-lo, acabei dormindo. É chato pacas. Mas o filosofar não nasce da exaustão. Um matemático enfiando sua cabeça em cálculos pode falar muito bem sobre a órbita de planetas sem olhar pelo telescópio.
 
Perante essa cena apocalíptica dos filmes, pouca coisa é esclarecida: um zumbi não é um ser vivo, pois não se procria (ao menos ninguém teve, salvo engano, até agora, essa ideia de jerico), assim sendo, aparentemente tem vida eterna. Isso não é bom? Além disso nem tem consciência de que é grotesco. Oras bolas, por que não deixá-los dar uma mordidinha ou um arranhãozinho, aliando-nos a eles? Afinal de contas, não procuramos respostas para tudo e isso não é dolorido? Queremos uma convicção partidária, uma fé religiosa, um time de futebol invencível, um amor indefectível, uma teoria científica irrefutável. Não queremos o certo, o impossível? Não queremos que todos pensem corretamente, que sejam como nós mesmos, equilibrados e com bom-senso? Se todos fossem como nós, não cresceriam cabelos brancos na nossa cabeça, não envelheceríamos desgostosos. Mas perante a negativa a esse "simples" pedido de razoabilidade, vivemos na decepção, no azedume da frustração e da incompreensão, bem aquém do que podemos ser de fato. Nunca fazemos o outro ver quem de fato somos.
 
Pensem bem. Há vantagens em ser zumbi: o que mais caracteriza o ser humano é o medo. E um zumbi não tem direitos humanos, porque não tem medo. Não tem medo de perder nada. Não tem medo de não ter nada. Não tem medo de ser nada. Não tem medo de não ser nada. A única coisa que um zumbi faz é zanzar: o máximo que faz é dar um grunhido estratégico e complacente na hora de atacar, porque se não fosse assim, os mocinhos desprevenidos iriam pro beleléu e a plateia bestificada não levaria aquele sustinho que garante a audiência. Aliás, grunhidinho bem do mixuruca. O susto resultante nem se compara com o que nos dá o gato da Sigourney Weaver em Alien (1979), quando visto apropriadamente na telona, após muito tempo de inércia visual, urdido naquela eternidade de silêncios. Vai assustar a vó! rs.
 
 
Esses dias, voltando à noite pela Consolação deserta, onde recentemente fui assaltado, vi uma figura vindo em minha direção. Um frio na espinha foi inevitável. Era alto e cambaleava, tinha roupas esfarrapadas, enfim, por um segundo tive a sensação de que um zumbi vinha em minha direção. Obviamente era um mendigo, louquinho como vários que moram na vizinhança, com os passos atrapalhados pelo cérebro comprometido pelo álcool, pela depressão, fome e desamparo social. Por um momento pensei nos mocinhos bem-vestidos e no ideal apolíneo que transmitem na sua matança sem piedade. Pensei comigo: ninguém tem dó dos zumbis? O que esses feiosos querem? Não é só devorar-nos? Por que não nos unir a eles? Sim, ficaríamos bem feiosos, mas ninguém repararia. Zumbi não é ligado na aparência de outro zumbi.
 
 
Michael Jackson já nos ensinou, em Thriller e na sua própria vida, que os zumbis somos nós mesmos. Cambaleando, não farejando necessariamente carne fresca e viva, mas empregos, bens, conhecimento, status, amor, sexo, poesia, filosofia, rock'n'roll. O que nos é dado nunca é suficiente. Queremos aquele algo-a-mais impossível de ser descrito, desde cedinho, ainda no berço. Isso é um bug de nosso cérebro inchado? Cedo aprendemos que aquele avião que voa no alto não tem o tamanho de uma mosca. Cedo aprendemos a não confiar no que vemos, sentimos, pensamos. Passamos a vida toda percebendo que estamos enganados por nós mesmos. Procuramos, para atenuar um pouco essa dor, uma âncora, uma certeza, uma personalidade, uma estabilidade que nos faça participar de um grupo, de pares iguais a nós. A polarização, nessa atitude, é importante: não somos como eles, no nosso grupo somos mais. Mas logo enjoamos. Mesmo no nosso grupelho artificial, percebemos que somos mais do que nossos pares. Quando não temos mais quem culpar, temos aquela náusea de que fala Sartre (aí nos consideramos sábios por atingi-la ou vivenciá-la rs). Um zumbi não tem líder nem heróis, não tem alguém que dite normas, nem se preocupa com estratégias. Seguem seus instintos cegos e só. Sem a menor precaução. Os zumbis, a meu ver, são interessantes porque formam uma massa que não constitui um grupo. Obviamente zumbis se opõem aos não-zumbis, mas essa oposição binária não está na cabeça dos dois lados, pois os zumbis, ao perderem a sua humanidade, levaram consigo também seus defeitos de raciocínio. Da mesma forma, os cavalos conscientes jamais se deixariam domar (não são seres tão vendidos aos primatas humanos quanto os cães). Nem mesmo assustar está entre as nulas ambições do zumbi da gema.
 
 Um zumbi não ama. Não é preciso amar nem ao outro nem a si mesmo. Também não odeia, nem sente remorso, nem quer vingança. Enfim, um zumbi não sofre. Um zumbi não se preocupa com a morte, porque sequer entende o paradoxo que há na solução fácil para o pseudodilema: como  matar um ser que não é vivo mas que age como se fosse? Cortando-lhe a cabeça inútil, oras.

 
Há quem separe as coisas dizendo que zumbi é zumbi e humano é humano, mas não é verdade. Humanos viram zumbis, portanto, ontogenicamente, todo zumbi é um humano desumanizado, assim como toda borboleta se deslagartizou. Metamorfoses não definem espécies: por definição, não há evolução stricto sensu em fase pós-embriológica. Perversamente, poderíamos pensar que os humanos sejam zumbis dezumbizados. Perceba que zumbi não devora zumbi. Se mordesse por descuido, será que voltaria a ser humano? Que horror seria! Não entendo por que Adão não era um zumbi.
 
É um grande paradoxo essa ausência de canibalismo entre zumbis, afinal de contas, um zumbi só fareja instintivamente carne de gente viva, mas não tem consciência de si ou do outro. Por não ser consciente, tampouco tem preocupações. Mesmo assim, estamos do lado daqueles que cortam suas cabeças e acabam com suas andanças. Por quê? Gostamos do sofrimento? Gostamos de viver com medo? Gostamos da concorrência?  Gostamos das angústias de ser vivo? Por fim, gostamos da morte?

Falo da Morte (a Fatídica, a que chega sem pedir opinião, quer façamos algo para impedi-la, quer não), não da mortezinha violenta apregoada nesses filmes ruins, pois nos parece hoje algo muito normal rachar ao meio a cabeça de um morto-vivo. Isso não é bonito, garanto, apesar dos efeitos. Mas os americanos adoram um sanguezinho; esse gosto particular, herdado da Inglaterra regicida, foi exportado. Como têm um fetiche enorme pelo líquido vermelho, pela gosma, e se extraídos com sadismo, melhor ainda. Não entendo essa psicopatia. Deve ser coisa de gente que, diferentemente de mim, nunca viu seus próprios pais e avós matando frangos e coelhos. Tudo hoje é plastificado e cinematográfico. Comprovam-no os nojentos olhares curiosos ao lado dos acidentes nas autoestradas. Ou não. Talvez esteja enganado nessa tergiversação. O gosto pelo sangue parece universal. Mas, que graça tem ver aquela coisa vermelha escorrendo? Que graça tem ver vísceras, cérebros, nervos e bofes, se não por interesse médico? Deveria haver tours para os abatedouros: seria algo muito lucrativo. Depois dizem que Freud é superado, convenhamos. E não me venham com a lengalenga à la Rousseau, dizendo que isso é um mal da civilização ocidental etc etc. Penso nessas horas como Frans de Waal: é o nosso lado chimpanzé prevalecendo sobre nosso lado bonobo.
 
Os mexicanos têm seu dia dos mortos; os americanos, o Halloween. Nosso mundo mexicanizou-se numa anestesia visual? Se sim, não há mais nada que fazer. O dia dos mortos pode ser eterno. Basta que deixemos os zumbis nos morder. Há várias chances no dia-a-dia. Se não, alie-se à Rainha de Copas: off with their heads!
 
 
 
 
 
 
 
 

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

SAUDADES E VAGA-LUMES

No meu demorado passo de um texto por mês - escrito sempre em feriados e fins de semana - discutirei dessa vez um tema que me vem intrigando e posso resumir na seguinte frase: para onde foram os vaga-lumes?
Sim, sempre haverá alguém dizendo que os simpáticos bichinhos luminosos não se extinguiram e ainda estão por aí. Estariam, segundo eles, em lugares onde há uma lagoa ou uma mata. Acredito, para não perder a amizade, mas não vejo um vivo há mais de vinte anos. O leitor que estiver pronto a concordar comigo num suposto discurso pró-ecologia talvez se perca um pouco com meu raciocínio. Pois é e não é sobre isso a minha arenga.
Estou avisando. A coisa não é tão simples. Pode desistir a qualquer momento.
Quando falo que os vaga-lumes já eram, refiro-me a qualquer besouro luminoso.
Podem ser os lampirídeos molengões:
Ou os elaterídeos do gênero Pyrophorus com seus simpáticos pseudo-olhinhos brilhantes:
Ou ainda os raros e espetaculares fengodídeos, com suas luzes multicores:
Os vaga-lumes existiam na minha cidade natal, Botucatu, no Estado de São Paulo. Não existem mais, ao menos onde costumava ir e ainda vou. Para onde foram? Será que um dia relatos de vaga-lumes serão lidos com sorriso de escárnio cético no rosto, assim como quando lemos algo sobre o boitatá, a mula-sem-cabeça e outros animais da criptozoologia? Velhinho direi: crianças, eu vi! Juro, eles existiam! Gostaria de lhes apresentar; sei que ficariam maravilhados, como eu ficava. Sinto muito. Acabou.

O lamento acima poderia ser também o de uma pessoa sem intimidade com insetos. Afinal, os vagalumes são belos e agradam a qualquer um. Mas antes de ser etimólogo eu queria ser entomólogo. Os bichos da foto abaixo fazem parte da minha coleção pessoal. Quando pequeno queria estudar zoologia. Fui para a área de Letras. Hoje não mato nem barata.






A grande maioria foi coletada na década de 80 do século passado, no quintal de casa. Hoje vejo que os espetei com alfinetes inadequados que se enferrujaram e que as fichas com dados, quando presentes (contendo dados sobre o coletor, o local e a data) são pouco informativas. Atualmente tenho pena dos bichinhos e só incluo novos insetos na minha querida coleção quando os acho mortos (e isso é muito raro). Esses insetos espetados são remanescentes de uma coleção muito maior. Ficaram, porém, como recordação de um sonho de uma profissão que nunca se realizará. O intervalo entre a saída de minha cidade natal e a encomenda dos quadros de madeira em que hoje estão durou mais de uma década. Muitos outros se deterioraram, devorados por outros insetos, os temíveis corrodêncios.

Perdi um megalóptero, um gigantesco belostomatídeo, todas as minhas libélulas, muitas borboletas e outras queridas lembranças de uma infância cheia de insetos e aracnídeos, os quais nunca mais vou voltar a ver. Sim, eu não sinto falta só dos vaga-lumes. Quando virava uma pedra qualquer em Botucatu, havia sob ela todas as espécies de artrópodes: quilópodes, miriápodes, milhares de colêmbolos, uma bicharada branca, cinza e marrom. São sem graça para quem não aprecia sua diversidade. Talvez você dissesse que eram nojentos. Os tatuzinhos, mais simpáticos, estavam sempre lá, próximos a alguma aranha armadeira; nas folhas das plantas, eram comuns os gafanhotos e os homópteros coloridos. Era lindo. E emocionante: até um raríssimo zoráptero de um milímetro surgiu diante de meus olhos atentos, ao revirar uma pedra. Tive um louva-a-deus de estimação, assim como aranhas prateadas, que eu alimentava com percevejos do maracujá.

Onde está tudo isso? Hoje em dia a terra secou de tal forma, com o calorão, que sob as pedras só há formigas e cupins. Os canaviais do interior de São Paulo contribuíram para acabar com o resto. Surpreendentemente é na capital, próxima da mata atlântica, que encontro nichos, como o quintal de uma casa aqui perto, cheia de tatuzinhos (mas recentemente foi reformada e ficou linda, cheia de flores não-nativas, mas os pobres crustaceozinhos foram para o beleléu). Resumindo: não sinto só falta dos vagalumes, mas também das baratas do mato pretas e cascudas de sob as pedras reviradas, dos desengonçados opiliões dos troncos podres com suas pernas espinhudas, de uma bicharada marrom e sem graça da qual nunca você, ecologista de carteirinha, preocupado com vertebrados coloridos e bonitos, nunca ouviu falar.

Obviamente sinto falta dos outros bichos também. Havia um cerambicídeo azul-pavão com pompons na antena que estava sempre associado a uma plantinha cujo nome desconheço, que dá umas florezinhas ridículas, mas é simpática por causa das bolinhas coloridas cheias de semente. Era um par perfeito. A plantinha ainda encontro, mas cadê esse besouro? Havia dezenas de espécies de elaterídeos, cuja bizarra habilidade natural proporcionada pela evolução eu pensava que mostraria aos meus filhos. Bastava colocá-los de costas no chão (os besouros, não meus filhos rs) e, por defesa, o danado saltava muito alto num estalo. Os gritos de prazeroso espanto de meus filhos não estão reservados a essa maravilha hoje, mas pobre e exclusivamente aos videogames. Todas as espécies desse besouro saltador desapareceram. Uma hecatombe.

Fala-se muito da extinção do mico-leão-dourado, da ararinha-azul, mas e a dos bichos sem cor, sem graça e sem forma? Não é de uma lista de dez espécies que falo. São dezenas de milhares. Nunca mais terei a surpresa de rever outro mantispídeo, tão parecido com o louva-a-deus, mas tão distinto dele evolutivamente? Nunca mais reencontrarei um Bocydium e seu bizarro ornamento que parece uma árvore de Natal?


Quando estive em Maringá, deparei-me com uma série de bichos que não via há muito tempo. Os insetos paulistas estão migrando para as matas preservadas paranaenses. A minha saudosa e frequentíssima Heliconius erato foi a primeira a passar diante dos meus olhos, como que me indagando à moda antiga: reconheces-me?



E que dizer da borboleta monarca (Danaus plexippus), que vinha de longe só para nos visitar, cuja lagarta era sempre encontrada numa planta que na minha terra chamam de leiteira? Vê-la hoje em dia é como admirar um cometa. Sentir falta disso parece bobagem. As pessoas estão correndo atrás de coisas mais importantes, como seus sonhos (apesar de muitas nem saberem quais são exatamente). Sonhos que perecem, enferrujam, que viram lixo no dia seguinte. Onde está a noção de estabilidade? Entramos no rio de Heráclito e as suas correntezas nos arrastam. Pena que hoje em dia são águas sujas e minguadas. Só nos arrastam porque estamos fracos, leves como papel, sem nada que nos ancore e com certo orgulho disso.

Lembrará alguém que sofro de saudade. Duarte Nunes de Leão em Origem da língua portuguesa (1601, cap. XXI) foi o inventor da lenda de que saudade só existe em português. Vejam o seu texto:

Saudade - este aspecto, como he próprio dos Portugueses, que naturalmente são maviosos e affeiçoados, naõ ha lingoa em que da mesma maneira se possa explicar, nem ainda per muitas palavras, que se declare bem. Porque, por o que os Latinos chamaõ desiderium, naõ he isso propriamente. Que, segundo a diffinição de M. Tullio no livro 4 das Thusculanas questoens: "Desiderium est libido videndi eius, qui non adsit", que quer dizer "Desiderium, ou desejo, he vontade de ver alguém que naõ estaa presente", sendo saudade palavra que naõ diz soomente referindo a pessoas, mas a coisas inanimadas. Porque temos saudade de ver a terra em que nascemos, ou em que nos criamos, ou em que nos vimos em algum gosto, ou prosperidade. Polo que parece que mais lhe podia quadrar esta diffinição, que he lembrança de algua cousa com desejo della.

Pois é, tenho saudade de pessoas, mas também de bombilídeos zunindo sobre as flores, de libélulas de asas encarnadas, de escarabeídeos chifrudos rolando bolas de esterco, de ver lagartas de Methona themisto em abundância, comendo os manacás, para não falar de bichos mais raros, como arlequins-da-mata. Sacrifiquei muitos desses animais para fazer minha coleção; parecia que nunca se extinguiriam, mas estão morrendo ou já sumiram do mapa. A culpa não foi só minha, com certeza.

As maritacas apareceram, as seriemas também: nunca as tinha visto em minha infância na abundância com que as vejo agora, mas estão cada vez mais raros os anus (palavra oxítona!) e as almas-de-gato. Desequilíbrio? Aparentemente sim. Certa vez, na Barra Funda, vi uma árvore infestada de bichos-da-cesta (um psiquídeo, provavelmente, Oiketicus kirbyi). Foi a última vez que vi o simpático bichinho.

Mas voltemos à palavra saudade e à bobagem que Nunes de Leão, sem querer, divulgou. Muitos concordaram e, defendem, tanto tempo depois, essa história de "saudade só existe em português" como algo comprovado. Aumenta nossa auto-estima? Os lusófonos seriam menos frios que os franceses e ingleses? Não sei se sabem, mas os romenos falam a mesma coisa da palavra dor que também significa "saudade" (a origem de dor não tem nada a ver com nossa dor: a palavra romena vem do latim dolus, a nossa, de dolor). Para eles, "saudade só existe em romeno".

Isso nos dá a medida da ignorância humana: desconhecemos o vocabulário de todas das línguas do mundo e já nos arrogamos, com nosso etnocentrismo romântico e nossa prepotência injustificada, a sair alardeando essa besteira de geração em geração, até virar verdade absoluta, até cair no vestibular, até virar tema de algum movimento político ou literário. Por acaso alguém checou todas as línguas do mundo antes de afirmar isso?

Perdoo Nunes de Leão. Todo mundo tem direito de falar bobagem. Não perdoo quem a repetiu.

Fico pensando que a saudade num tempo como o dele, em que não tínhamos sequer uma fotografia ou um telefone, devia ser um sentimento muito mais forte do que o da geração pós-youtube. Portanto, ironicamente,  até mesmo a saudade que sentia Nunes de Leão, com toda sua intensidade seiscentista, seria intraduzível para a língua portuguesa atual.

A burrice me cansa. Não a burrice própria do desconhecimento das coisas (ou seja, a ignorância, que é tão humana quanto a sapiência), mas a burrice da não-assimilação, aquela coisa que precisa ser repetida milhões de vezes para ser consertada em apenas uma pequeníssima parcela da população; aquela burrice que se mantém por causa da nossa mente tradicionalista, pouco afeita à leitura, ao aprendizado e ao conhecimento. Essa mesma burrice, filha da indiferença, faz que um defensor da ecologia destrua ecossistemas de seu próprio jardim, para embelezá-lo. Entram os gerânios, saem os tatuzinhos.

Há perda? Há desequilíbrio? Há hecatombes? Acho que não. O mundo viverá muito bem sem vaga-lumes e tatuzinhos. Os pássaros, por exemplo, se adaptam, comendo lixo. Volta e meia aparecem garças no Tietê e o noticiário imbecil da TV alardeia que o rio está ficando limpo. Será que chegam a essa conclusão porque as garças são branquinhas e não lembram nem de longe os feios urubus? Burrice. As garças, as maritacas e as seriemas que têm aparecido no meio da hecatombe ecológica não são razão para nos autolouvar e vangloriar tomjobinianamente nossa espetacular natureza brasílica. São bichos, que no auge do desespero, na falta do seu prato predileto, viraram onívoros. Viraram uma espécie de praga, como um certo hominídeo aprendeu a sobreviver aos caprichos da evolução a despeito da sua falta de rabo e de pelo, usando um cérebro inchado de sua condição neotênica. Não quero dar uma de Augusto dos Anjos, mas, cá entre nós, diga-me: não somos verdadeiros axolotles?

E para acabar de vez com o romantismo, o termo pirilampo, sinônimo de vaga-lume, apesar de sua erudita origem, popularizou-se misteriosamente. Como explicar? O padre Raphael Bluteau (1720) nos conta como essa palavra grega pyrilampés, que significa "brilhante como o fogo", reapareceu na língua portuguesa:

PIRILAMPO. Nas Conferencias Academicas, que se fizeraõ no anno de 1696, na livraria do Conde de Ericeira, foy proposto, se ao insecto luzente, vulgarmente chamado Cagalume, se daria em papeis, ou discursos serios, outro nome mais decoroso, como v.g. Pirilampo à imitação de Plinio Histor, que chama a este insecto Lampyris, nome composto de Lampas, que em Grego val o mesmo que Tocha, & Pyr, que quer dizer fogo. A alguns pareceo este nome Pirilampo affectado, outros foraõ de parecer, que se admittisse em obras Epicas; por ser Cagalume incompativel com o nobre & magestoso estylo. Sebastiaõ Pacheco Varella no seu livro intitulado Num. Vocal, pag. 373. fallando neste bichinho, diz: "Quem depois de ver o dia claro, fará estimaçaõ do desprezado Insecto luzente, só porque de noite pareceo Astro brilhante?" Vid. Cagalume.

Haha, teria acontecido algo parecido com as libélulas? No interior, em vez dessa palavra proparoxítona, que é um preciosismo latino (libellulus em latim quer dizer 'balancinha' e tem a mesma raiz de libra "balança"), outros nomes, bem menos nobres, são usados pelo povo. Se ficou curioso, procure nos dicionários para saber quais são.

domingo, 14 de outubro de 2012

NÃO VIVENDO A MORTE DIARIAMENTE

Há algo mesmo que perdura "até que a morte nos separe". Esse algo é a vida.

Sabemos hoje que esse bem precioso é o resultado de uma batalha de espermatozoides os quais, por um misto de sorte e de capacidade evolutiva, conduziram parte de nós à nossa outra metade ovular, valendo-se de improbabilidades, auxiliados por leis físicas e químicas precisas ditadas pelos desvãos misteriosos dos acidentados milhões de anos de nosso passado pré-indivíduo.

A vida, essa mágica maravilhosa, não tem outra função que ser vivida. E a vida não seria o que é, se, no meio desse caminho, a evolução não houvesse pregado sua costumeira peça: a vida se caracteriza como algo que continua a ser vivida, não só nos nossos corpos, mas também covividas em nossos descendentes.
 
 

Há portanto duas vidas: a vida em si e a vida individual. A primeira vida só se diz eterna porque estará na terra, nem que seja na forma de micróbios, quando o sol engolir nosso planeta. A segunda vida, porém, tão passageira, é apenas o elo entre uma vida individual e outra.

A partir dessa segunda interpretação de vida inventou-se a morte. A morte não existe, objetivamente falando. É algo definido por negação.

Aristóteles já dizia que as negações não deviam fazer parte das definições. O elemento lógico da  negação (esse defeito ou maravilha do raciocínio humano) traz em si a capacidade de dar existência a algo que é tudo, exceto a coisa negada.

Se digo que não fui ao cinema, não informo que fiz.
Se digo que algo não é azul, não digo a cor que tem.

Enfim, negar é apenas excluir o afirmado. Entendendo a morte como sinônimo da não-vida, acabo não pensando sobre que é a vida. Apenas sei que a morte é uma das muitas surpresas do futuro a mim reservadas. A morte, portanto, é algo sobre a qual não sabemos nada porque não é nada. Ela não existe, como não há algo como "o ato de não ir ao cinema" ou o "não-azul". Essas abstrações são conjuntos de coisas e não realidades. Alguém poderá dizer-me que a morte é tudo aquilo que não experienciarei, mesmo se quisesse. Ora, isso não é dizer muito, pois outras coisas conduziriam à mesma situação. A consciência da pobreza, por exemplo

Mas, antes de estarmos vivos, estávamos também, de uma forma, não-vivos. Se o pré-vida não interfere na nossa vida, não entendo por que o pós-vida deveria interferir. Não sofremos seriamente por não termos vivido entre os estegossauros, nem entre os maias, nem na época de Chiquinha Gonzaga, portanto, tampouco deveríamos lamentar o que não veremos no futuro depois de nossa morte. Mas é curioso como o apego a essa saudade antecipada é incomodamente onipresente.

O mundo ocidental aferra-se em religiões que prometem um mundo melhor no pós-vida, mas, paradoxalmente, os velórios nos mostram que mesmo os fieis são, no seu íntimo, céticos, caso contrário não chorariam o falecimento de seus queridos. A morte do corpo deveria ser vista como uma bênção por aqueles que creem em paraísos pós-morte. Então por que choram?

Mas não preciso tocar em temas tão polêmicos. Hoje, é comum jovens de 20 anos improvisando discursos de velhos, já com saudade de quando tinham 12. Aos 30 já estão falando como se tivessem encerrado toda a sua vitalidade. Aos 40 não tocam em outro assunto a não ser a sua velhice. Gastam muito tempo no desespero de manterem-se vivos. Aos 50 já se comportam como anciãos, reveem seus valores, sentem-se estranhos perante a jovialidade. Por que tanto desespero, se, em média, as pessoas têm vivido hoje por volta dos 80 anos? Essa preocupação constante com a morte parece que os mata diariamente. E quando morrerem, de fato? Que vida tiveram a não ser a de lamento por algo do qual não se lembrarão? Em que contribuiram para melhorar a vida dos que permanecerão temporariamente vivos?

Isso me faz pensar que a consciência da morte talvez seja um dos elementos mais caracterizadores da espécie humana, provavelmente muito mais do que sua inteligência. Na verdade, todos os seres vivos evitam a morte. Evitam-na na sua evolução, ao criar em seus corpos alguns mecanismos que por vezes servem como ferramentas de ataque e defesa (espinhos, garras, pernas ágeis, olhos, venenos, asas). Evitam-na também ao longo de sua vida, se não forem sésseis, não comendo determinados alimentos, ficando longe de abismos e inimigos. E quanto maior o perigo, maior a reprodução: mais sementes, mais ovos, mais ninhada.



O ser humano, como todos os mamíferos, nasce só, tem consciência de si rapidamente e percebe, logo no primeiro ferimento, que sua vida é muito frágil. Do medo da dor, nasce o medo de perder a vida. Estranho, porém, é que o ser humano se apega obsessivamente a essa ideia, de tal forma, que teme pelo dia em que a perderá, como se a vida fosse um objeto que lhe pertence. Consciente de que não tem garras, nem espinhos, nem venenos, de que é um ridículo animal pelado e sem forças e sem os paraísos apresentados em sua mente voltada a idealismos, compreendeu que a destruição do meio-ambiente é a solução para que seu bando vivesse mais. Matando os insetos, os carnívoros e as cobras, protegendo-se da escuridão, plantando e domesticando, suas chances de viver aumentavam. Nasceram as cidades, a cultura e com ela, o medo coletivo e comum da perda da vida, sem o qual não sobreviveriam filosofias, religiões e literaturas.

Mas pensar na morte o tempo todo não é, paradoxalmente, perder a vida? Não digo perder literalmente, mas qualitativamente. Sempre pensei nisso. Talvez porque tenha passado a infância toda com minha mãe e sua doença degenerativa. A morte era sempre iminente, até que um dia chegou de fato. Quando finalmente veio, eu já era adulto. Em vez do medo crescente motivado pela onipresença diária da morte, gerou-se em mim um profundo tédio com relação ao tema da morte, de modo que os pseudoconflitos existenciais sempre foram - talvez por uma defesa - deixados em segundo plano. Já vivi a morte demais. Cansei.

Todo dia que acordo, já tenho algo para fazer e normalmente faço. Os dias são curtos, a vida (boa ou ruim) passa rápida, mas de uma coisa tenho certeza: não quero reservar nunca minha atenção à morte, embora saiba que ela virá, tranquila ou dolorosa. Perante essa obviedade enfadonha, tento reservar minha vida a meus projetos de formiga, que nunca terão fim, nem teriam, mesmo se eu vivesse dez mil vidas. Pensar de outra forma, creio, é um convite à depressão, à fuga da realidade, em suma, à dor. Penso no futuro como algo em que quero realizar algo. Esqueço-me da obviedade enfadonha da morte inevitável e percebo que por isso nunca precisarei de deuses e de suas promessas além-túmulo. Também aprendi a não dar ouvidos aos abutres quando alguma desgraça me abate prontos a mostrar-me alguma contradição nessa minha atitude.

Agradeço à vida essa infância triste que tive. Pelo menos consigo ver a vida como ela é e não apenas como um oposto à morte, que, como já disse, nada mais é que uma invenção abstrata de nossa mente.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

TABULA RASA: O MASSACRE ARQUITETÔNICO DE SÃO PAULO

 
Não entendo de arquitetura. Já choquei muita gente falando que acho Brasília horrorosa. Com todo respeito a Niemeyer, é o que penso, mas isso é o que menos interessa.
Se entendesse de arquitetura, pode ser que talvez conseguisse expressar com mais clareza o que me tem incomodado tanto ultimamente. Vivo na região da Consolação. Há pouco tempo fiquei surpreso com a demolição de um conjunto de casas na rua Matias Aires para a especulação imobiliária. Não eram casas especiais, mas estavam ali desde que mudei para a região, faz uns quinze anos. Gostava de vê-las. Até a pichação do muro fazia parte da minha história. Não estão mais e me deu uma certa tristeza vê-las sucumbir a golpes de marreta.
Mas esse sentimento egoísta é algo diferente do que senti ontem quando passei pela rua Bela Cintra. A casa abaixo ainda se pode encontrar hoje no Google Maps. Estava lá ainda semana passada. É a de número 755. Não havia pessoa que me visitasse, do interior de São Paulo ou do exterior, que não a admirasse pela beleza. Era valiosa arquitetonicamente falando? Não sei. Mas era bonita, como tantas outras que se encontram espremidas entre os caixotes arquitetônicos da região:


Hoje, ela se encontra assim:


Quando perguntei se ela se transformaria em um edifício de residência, um funcionário que mapeava o terreno me disse que ainda não sabiam. No mesmo local funcionava, até há pouco tempo, a 5ª Cia - 7º BPM e a Associação Paulista Viva. Estranhei que estivessem saído de lá recentemente, mas jamais pensei em ver essa cena que mais lembra os bombardeios aéreos da Segunda Guerra.
Deduzi que o mais urgente era a mera demolição da casa.
Deduzi que a casa ali era um transtorno para alguns.
Lamentei-me ao mesmo funcionário - que tinha a prancheta na mão e mal me olhava, de tão preocupado com suas medições e anotações - dizendo-lhe que era uma pena, pois a casa era muito bonita, ele me disse: "ah é? Não sei... não me lembro mais". Naquele momento, veio-me à cabeça o que escrevi no prefácio de meu livro de etimologia Por trás das palavras (São Paulo: Globo, 2004) sobre a demolição, em 1911, da antiga matriz colonial da Praça da Sé, de 1598. Como qualquer consulta à Wikipedia pode mostrar, a nova catedral só seria inaugurada quarenta anos depois. Era de fato necessário demolir a antiga para erigir a nova sobre ela? Que isso significa de fato? O desprezo pelo passado?
 
Na recente tragédia arquitetônica da Bela Cintra, a casa ao lado sofreu o mesmo destino. Antes:
 

Depois:


Como essa cena não foi a única que presenciei nos últimos dez anos, alerto os responsáveis pela mudança do cenário - com azeda ironia - que há outras casas igualmente bonitas na região que podem ser transformadas em pó (por exemplo, ali pertinho, há as casinhas de número 692 e 702 na própria Rua Bela Cintra e as de número 255, 257 e 267 na Fernando de Albuquerque, para não falar das da Haddock Lobo). Imagino que o sonho dessas pessoas (que eu, etimólogo, chamaria de ecoclastas)  seria passar o rolo compressor naquelas casinhas inúteis de Amsterdã. Já pensou que bonito fazer um condomínio na Casa de Rembrandt? Ou então botar abaixo a catedral de Milão? 
 
Para que apegar-se ao passado? Isso não é coisa de reacionário? De conservador? Paradoxalmente não me sinto nem uma coisa nem outra. Talvez porque veja uma falha nesse raciocínio maniqueísta.
 
Parece que o futuro neopositivista e sua maldita esperança de melhora, como se ela não dependesse de nossas decisões hoje, calaram fundo na mentalidade adotada na avaliação do que é importante de se preservar. Nesse cômputo ingênuo, obviamente, não deve ficar de fora o principal: o preço do metro quadrado da região, que é altíssimo.
 
Esse tipo de "futuro", que se pauta no mantra do "progresso" (palavra que está no lema positivista de nossa bandeira), visto como queriam alguns modernistas, parece que ainda está na veia dos que assinam a autorização de uma atitude como essa (que obviamente deve ser algo legal, embora, para mim, desculpem, é um massacre). Esse "futuro" basta para alavancar o discurso que justifica a destruição de algo do passado. Mas o modernismo também é coisa do passado. Desse discurso nasceu muita coisa ruim também. Por que não deixar intacto, então, o que é belo do passado?
 
Esse argumento, para alguns, é fraco: já não é mais possível distinguir o que é belo, agradável e aconchegante, pois até isso se tornou relativo. Obviamente há os que odeiam os contornos sinuosos das casas antigas, as árvores e os passarinhos. Todos têm direito etc. etc. Mas entre manter e destruir, percebo que prevalece o que destrói. Por que prevalecem? 
 
Aliás, quem deve responder sobre o impacto da destruição e o que ela gera não sou eu, mas talvez um psiquiatra, apoiado nos números crescentes de casos de depressão.
 
Quando todos os prédios forem iguais, todos os carros tiverem a mesma cor, todas as calças jeans também, todas as línguas se reduzirem a uma só, toda a diversidade de pensamento desaparecer, estaremos diante de algo bom? Isso não aniquilaria a nossa humanidade?
 
O futuro real nos dirá.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

FAIXAS DE SEGURANÇA E SEMÁFOROS

Eu pensei que 2012 seria um marco na história da cidadania brasileira com as medidas tomadas na cidade de São Paulo com respeito às faixas de segurança. Apesar das campanhas e de até uma boa adesão inicial, ao que tudo parece, as faixas continuam tão desrespeitadas quanto antes. De quem é a culpa?
 


Não consigo deixar de pensar que a culpa é de todos nós.

Comecemos pelas faixas elas mesmas. Imagine a seguinte situação: estou de carro com a boa intenção de respeitar a função das faixas (afinal, para que serviriam aquelas listras brancas se não fossem para isso? Para enfeitar a rua?). Sou um motorista consciente e altruísta: acredito realmente que se fizer assim, mostrarei ao outro que nem todo mundo é grosseiro e violento. Respeito o outro não por um dever cristão, mas por o outro merecer ser respeitado, assim como eu exijo respeito para mim mesmo.

No entanto é comum deparar-me com situações desmotivadoras, por exemplo: além da faixa que se me apresenta antes do cruzamento, há outra logo depois do cruzamento - e pessoas querendo atravessar ambas. Pois bem, seria irracional se eu respeitasse a primeira, mas não a segunda, mas...a verdade é que, se assim faço, fecho o cruzamento, impedindo a passagem de carros, o que, além de incomodar os outros motoristas, pode resultar em multas para mim.

Concluo desse caso particularíssimo que a culpa é dos órgãos que pintam as faixas e pergunto: por que as faixas estão tão próximas das esquinas?

Com um pouco de convívio com a nossa cultura, logo percebemos que estão assim por uma razão prática. Aparentemente, se não estivessem, algumas pessoas atravessariam na esquina, longe da faixa (daí vermos correntes, canteiros e outros obstáculos que impeçam o pedestre de ter a tentação de atravessar esquinas onde não há faixa). Daí nasce uma lição para o estrangeiro ou para o marciano que nos visite: os órgãos responsáveis pela organização do trânsito levam em conta os hábitos do cidadão, por mais incivilizados que sejam.


Mas entre os hábitos do cidadão está o de atravessar fora da faixa. Confesso: eu mesmo faço isso e, de fato, se, nessa situação, não há carros, qualquer pessoa diria que isso é razoável, pois não somos robôs. Isso ocorre até mesmo nos países em que as faixas são seguidas. Mas a situação muda de figura quando o pedestre atravessa no meio do trânsito. Quem dirige está acostumado a ver pedestres, como zumbis, driblando os carros, correndo o risco de ser atropelados pateticamente, deixando toda a responsabilidade de uma tragédia para o motorista, quando não deveria ser bem assim, pois um motorista atento pode desviar-se de um pedestre imprudente que se arrisca, mas não de outro, que pensa igualzinho, e que atravessa a rua na direção contrária. Como não é possível multar pedestres, devemos apelar para o bom-senso?

Aliás, bom-senso é o que justamente falta também para os motoristas (e nem preciso explicar-me por quê: basta aventurar-se no nosso trânsito para ver).

Não falo só de motoristas que fazem manobras arriscadas ou que são extremamente agressivos. Todos nós os conhecemos.

Também não falo somente daqueles que andam excessivamente devagar ou que param em filas triplas, como se fossem donos da rua (afinal, nesse ponto, somos coerentes porque temos aqui a mesma mentalidade egoísta do comportamento das escadas rolantes, a despeito dos cartazes nos metrôs que pedem para deixar a esquerda livre). Tais cidadãos devem partir da premissas filosóficas, tais como: "o mundo além de mim não existe" ou algo do gênero. Seríamos berkeleyanos? Esse traço cultural, do qual nem sempre nos apercebemos, atinge todas as faixas etárias e todas as classes sociais de brasileiros: "só existe o que está na nossa frente, para que nos desviemos, não há ninguém do meu lado nem atrás de mim"...

Também não falo daquele motorista paradoxal que respeita as faixas, exceto no dia em que está com pressa, ou apenas respeita para algumas pessoas, quando se lembra, ou segundo algum critério idiossincrático (apenas para aleijados ou para moças bonitas). Respeitar as faixas quando nos dá na veneta e não as respeitar é o mesmo...

Falo da grandessíssima maioria dos motoristas, sem grandes distinções.

Ora, os motoristas também são pedestres. Não nos esqueçamos do famoso e antigo vídeo do Pateta:

http://www.youtube.com/watch?v=RMZ3bsrtJZ0 

Se não há uma divisão de castas entre pedestres e motoristas, entendo que os motoristas e os pedestres somos todos nós. Bom, a partir desse pressuposto, vejamos.

O motorista não respeita a faixa porque não pensa sobre quão desumano é desrespeitá-la. Imagino que alguns motoristas (e pedestres) sejam de fato sádicos, mas duvido que seja a maioria. Nosso povo tem fama de bonachão e boa-praça... ao menos é essa nossa auto-imagem. Estamos tão enganados assim com nós mesmos? O bom-senso também diz que um carro, com alguma velocidade, é uma arma, afinal, é uma tonelada de ferragens contra um corpo frágil de carne. Acidentes diários envolvendo pedestres o provam, muitos deles ocorridos na faixa, criando tragédias que seriam facilmente evitadas. Se teimamos em desrespeitar o pedestre, seremos todos assassinos em potencial? Quero crer que não. Talvez o brasileiro goste de respeito, mas não goste de respeitar, mas prefiro pensar que não é dado a muita filosofia e nem sequer pensou nisso, até que se convença sozinho, sabe-se lá como...

O vício de não respeitar as faixas talvez venha de um outro elemento cultural. A cultura das multas desnecessárias. Alguém já percebeu uma coisa no mínimo ridícula? Em lugares em que há faixa mas não há semáforo, raramente alguém pára o carro e deixa o pedestre passar, mas se há um semáforo, mesmo sem cruzamento e sem pedestre, todos os carros param e ficam lá, paradinhos, docilmente esperando o vermelho ficar verde (e sentindo-se bons cidadãos). Essa cena é patética e só me faz pensar o seguinte: só paramos nos semáforos porque temos medo? Medo de colisão? Medo de multa? Esse medo nos fez agir como ratinhos de Skinner, respeitando luzes vermelhas e verdes mas não pensando nas consequências de um atropelamento ou mesmo da violência de impedir o direito alheio de exercer sua cidadania? Os pedestres por sua vez se resignam também por medo? Só por isso? Somos um monte de medrosos?

Obviamente estou generalizando sobre o comportamento de uma maioria incontestável. Há exceções e elas aumentaram bastante desse ano para cá. O brasileiro hoje viaja mais que antes, vê que a faixa é respeitada em outros lugares: na Suíça, no Uruguai, em João Pessoa... Não é um luxo, mas uma consciência adquirida, um exercício diário, que demora para virar um hábito mas é preciso tentar, para o bem de todos. Hoje, quando paro meu carro (após perceber que os pedestres esperam há tempos esse gesto de alguém), é comum que outro motorista pare do meu lado e colabore para o pedestre, como que por vergonha de transgredir. Não era assim até ano passado. Eu vivia recebendo buzinas indignadas dos carros atrás de mim, mesmo quando na minha frente havia uma pessoa de idade querendo atravessar. Exigia-se velocidade, mesmo se depois daqueles centímetros de faixa, houvesse o maior engarrafamento da história. Alguns segundos não atrapalharão a correria enlouquecida daquele que dirige e, se está atrasado, azar dele, afinal, que é mais importante? O mesmo motorista que pára, num ato de solidariedade comigo (outro motorista e não necessariamente com o pedestre), não teria feito o mesmo se eu não parasse? Enfim, devemos só fazer o que todo mundo faz? Parece que a personalidade das pessoas depende cada vez mais do que pensa a maioria... os alemães descobriram a duras penas as consequências desse raciocínio após a Segunda Guerra.

 
Penso que o fato de haver multas por passar no vermelho numa faixa que NÃO está num cruzamento e na qual NÃO há pedestres só pode vir de uma reflexão e de conclusão: regras não podem ser relativizadas e o povo não tem consciência, pois só entende o verde e o vermelho do semáforo, mas não está disposto a entender quando o pedestre tem preferência. Convenhamos, tal tese terrível, talvez advinda de estatísticas ou do bom senso, é o que a organização pública do trânsito tenta evitar quando cria mecanismos de multa aparentemente ilógicos, quero crer.

Duas regras atuais garantiriam a civilidade. São simples:

- os semáforos devem ser respeitados;
- na falta de semáforo, o pedestre que estiver sobre uma faixa deve ser respeitado

E só.

Depois que todos nós fizermos isso, vamos reclamar das faixas mal colocadas, dos semáforos ilógicos, do perigo de colisão traseira para aquele que as respeita e reinvidiquemos nossos direitos de uma forma menos egoísta. Descrer na eficácia de campanhas úteis para todos, por causa de nossa desilusão atávica, parece contraditório com o entusiasmo brasileiro dos últimos anos. E mais: os pedestres não precisam agradecer a caridade dos motoristas que param. Não fazem mais que a obrigação. A mesma pessoa que dirige, quando está na sua condição de pedestre, aprecia quando lhe parem. Ninguém faz nenhum favor ao outro, mantendo-lhe a vida.

Na verdade, não existe a dicotomia pedestre/ motorista: são paulistas, são brasileiros, são seres humanos, alguns mais bem educados que outros, ora a pé, ora atrás de um volante.

Cidadania não é só para si, mas também para o outro.

sábado, 25 de agosto de 2012

INÍCIO DO BLOG DE MÁRIO VIARO

Dia 25/08/2012

Um pequeno passo para o homem e um menor ainda para a humanidade: comecei meu blog hoje.

Espero gostar disso. As redes sociais até agora não me atraíram.