Primeiro foram os vampiros, jovens, bonitões e sanguinolentos, mas de anos para cá a TV foi invadida por zumbis e sua horda de adoradores. Há vários tipos de enredos, mas, quase sempre a situação é a mesma: o mundo está infestado de infectos zumbis, mas meia-dúzia de jovens bem nutridos, munidos de armas potentes ou de lâminas afiadas, formam uma espécie de minoria que se salva e impede a panzumbidade. Para não se tornarem como eles, degolam-nos sem piedade, afinal, merecem: são feios, insensíveis, esquisitões e suas mordidas transmitem sua zumbência. Eugenia? Esparta revisitada? Os zumbizólatras não gostarão desta minha resenha, pois dirão que não conheço o suficiente sobre a matéria para falar dela. Têm razão: nunca tive paciência de ver um filme de zumbi do começo ao fim. Mesmo nos dias em que estou determinado a fazê-lo, acabei dormindo. É chato pacas. Mas o filosofar não nasce da exaustão. Um matemático enfiando sua cabeça em cálculos pode falar muito bem sobre a órbita de planetas sem olhar pelo telescópio.
Perante essa cena apocalíptica dos filmes, pouca coisa é esclarecida: um zumbi não é um ser vivo, pois não se procria (ao menos ninguém teve, salvo engano, até agora, essa ideia de jerico), assim sendo, aparentemente tem vida eterna. Isso não é bom? Além disso nem tem consciência de que é grotesco. Oras bolas, por que não deixá-los dar uma mordidinha ou um arranhãozinho, aliando-nos a eles? Afinal de contas, não procuramos respostas para tudo e isso não é dolorido? Queremos uma convicção partidária, uma fé religiosa, um time de futebol invencível, um amor indefectível, uma teoria científica irrefutável. Não queremos o certo, o impossível? Não queremos que todos pensem corretamente, que sejam como nós mesmos, equilibrados e com bom-senso? Se todos fossem como nós, não cresceriam cabelos brancos na nossa cabeça, não envelheceríamos desgostosos. Mas perante a negativa a esse "simples" pedido de razoabilidade, vivemos na decepção, no azedume da frustração e da incompreensão, bem aquém do que podemos ser de fato. Nunca fazemos o outro ver quem de fato somos.
Pensem bem. Há vantagens em ser zumbi: o que mais caracteriza o ser humano é o medo. E um zumbi não tem direitos humanos, porque não tem medo. Não tem medo de perder nada. Não tem medo de não ter nada. Não tem medo de ser nada. Não tem medo de não ser nada. A única coisa que um zumbi faz é zanzar: o máximo que faz é dar um grunhido estratégico e complacente na hora de atacar, porque se não fosse assim, os mocinhos desprevenidos iriam pro beleléu e a plateia bestificada não levaria aquele sustinho que garante a audiência. Aliás, grunhidinho bem do mixuruca. O susto resultante nem se compara com o que nos dá o gato da Sigourney Weaver em Alien (1979), quando visto apropriadamente na telona, após muito tempo de inércia visual, urdido naquela eternidade de silêncios. Vai assustar a vó! rs.
Esses dias, voltando à noite pela Consolação deserta, onde recentemente fui assaltado, vi uma figura vindo em minha direção. Um frio na espinha foi inevitável. Era alto e cambaleava, tinha roupas esfarrapadas, enfim, por um segundo tive a sensação de que um zumbi vinha em minha direção. Obviamente era um mendigo, louquinho como vários que moram na vizinhança, com os passos atrapalhados pelo cérebro comprometido pelo álcool, pela depressão, fome e desamparo social. Por um momento pensei nos mocinhos bem-vestidos e no ideal apolíneo que transmitem na sua matança sem piedade. Pensei comigo: ninguém tem dó dos zumbis? O que esses feiosos querem? Não é só devorar-nos? Por que não nos unir a eles? Sim, ficaríamos bem feiosos, mas ninguém repararia. Zumbi não é ligado na aparência de outro zumbi.
Um zumbi não ama. Não é preciso amar nem ao outro nem a si mesmo. Também não odeia, nem sente remorso, nem quer vingança. Enfim, um zumbi não sofre. Um zumbi não se preocupa com a morte, porque sequer entende o paradoxo que há na solução fácil para o pseudodilema: como matar um ser que não é vivo mas que age como se fosse? Cortando-lhe a cabeça inútil, oras.
É um grande paradoxo essa ausência de canibalismo entre zumbis, afinal de contas, um zumbi só fareja instintivamente carne de gente viva, mas não tem consciência de si ou do outro. Por não ser consciente, tampouco tem preocupações. Mesmo assim, estamos do lado daqueles que cortam suas cabeças e acabam com suas andanças. Por quê? Gostamos do sofrimento? Gostamos de viver com medo? Gostamos da concorrência? Gostamos das angústias de ser vivo? Por fim, gostamos da morte?
Falo da Morte (a Fatídica, a que chega sem pedir opinião, quer façamos algo para impedi-la, quer não), não da mortezinha violenta apregoada nesses filmes ruins, pois nos parece hoje algo muito normal rachar ao meio a cabeça de um morto-vivo. Isso não é bonito, garanto, apesar dos efeitos. Mas os americanos adoram um sanguezinho; esse gosto particular, herdado da Inglaterra regicida, foi exportado. Como têm um fetiche enorme pelo líquido vermelho, pela gosma, e se extraídos com sadismo, melhor ainda. Não entendo essa psicopatia. Deve ser coisa de gente que, diferentemente de mim, nunca viu seus próprios pais e avós matando frangos e coelhos. Tudo hoje é plastificado e cinematográfico. Comprovam-no os nojentos olhares curiosos ao lado dos acidentes nas autoestradas. Ou não. Talvez esteja enganado nessa tergiversação. O gosto pelo sangue parece universal. Mas, que graça tem ver aquela coisa vermelha escorrendo? Que graça tem ver vísceras, cérebros, nervos e bofes, se não por interesse médico? Deveria haver tours para os abatedouros: seria algo muito lucrativo. Depois dizem que Freud é superado, convenhamos. E não me venham com a lengalenga à la Rousseau, dizendo que isso é um mal da civilização ocidental etc etc. Penso nessas horas como Frans de Waal: é o nosso lado chimpanzé prevalecendo sobre nosso lado bonobo.
Falo da Morte (a Fatídica, a que chega sem pedir opinião, quer façamos algo para impedi-la, quer não), não da mortezinha violenta apregoada nesses filmes ruins, pois nos parece hoje algo muito normal rachar ao meio a cabeça de um morto-vivo. Isso não é bonito, garanto, apesar dos efeitos. Mas os americanos adoram um sanguezinho; esse gosto particular, herdado da Inglaterra regicida, foi exportado. Como têm um fetiche enorme pelo líquido vermelho, pela gosma, e se extraídos com sadismo, melhor ainda. Não entendo essa psicopatia. Deve ser coisa de gente que, diferentemente de mim, nunca viu seus próprios pais e avós matando frangos e coelhos. Tudo hoje é plastificado e cinematográfico. Comprovam-no os nojentos olhares curiosos ao lado dos acidentes nas autoestradas. Ou não. Talvez esteja enganado nessa tergiversação. O gosto pelo sangue parece universal. Mas, que graça tem ver aquela coisa vermelha escorrendo? Que graça tem ver vísceras, cérebros, nervos e bofes, se não por interesse médico? Deveria haver tours para os abatedouros: seria algo muito lucrativo. Depois dizem que Freud é superado, convenhamos. E não me venham com a lengalenga à la Rousseau, dizendo que isso é um mal da civilização ocidental etc etc. Penso nessas horas como Frans de Waal: é o nosso lado chimpanzé prevalecendo sobre nosso lado bonobo.
Os mexicanos têm seu dia dos mortos; os americanos, o Halloween. Nosso mundo mexicanizou-se numa anestesia visual? Se sim, não há mais nada que fazer. O dia dos mortos pode ser eterno. Basta que deixemos os zumbis nos morder. Há várias chances no dia-a-dia. Se não, alie-se à Rainha de Copas: off with their heads!