No meu demorado passo de um texto por mês - escrito sempre em feriados e fins de semana - discutirei dessa vez um tema que me vem intrigando e posso resumir na seguinte frase: para onde foram os vaga-lumes?
Sim, sempre haverá alguém dizendo que os simpáticos bichinhos luminosos não se extinguiram e ainda estão por aí. Estariam, segundo eles, em lugares onde há uma lagoa ou uma mata. Acredito, para não perder a amizade, mas não vejo um vivo há mais de vinte anos. O leitor que estiver pronto a concordar comigo num suposto discurso pró-ecologia talvez se perca um pouco com meu raciocínio. Pois é e não é sobre isso a minha arenga.
Estou avisando. A coisa não é tão simples. Pode desistir a qualquer momento.
Quando falo que os vaga-lumes já eram, refiro-me a qualquer besouro luminoso.
Podem ser os lampirídeos molengões:
Ou os elaterídeos do gênero Pyrophorus com seus simpáticos pseudo-olhinhos brilhantes:
Ou ainda os raros e espetaculares fengodídeos, com suas luzes multicores:
Os vaga-lumes existiam na minha cidade natal, Botucatu, no Estado de São Paulo. Não existem mais, ao menos onde costumava ir e ainda vou. Para onde foram? Será que um dia relatos de vaga-lumes serão lidos com sorriso de escárnio cético no rosto, assim como quando lemos algo sobre o boitatá, a mula-sem-cabeça e outros animais da criptozoologia? Velhinho direi: crianças, eu vi! Juro, eles existiam! Gostaria de lhes apresentar; sei que ficariam maravilhados, como eu ficava. Sinto muito. Acabou.
O lamento acima poderia ser também o de uma pessoa sem intimidade com insetos. Afinal, os vagalumes são belos e agradam a qualquer um. Mas antes de ser etimólogo eu queria ser entomólogo. Os bichos da foto abaixo fazem parte da minha coleção pessoal. Quando pequeno queria estudar zoologia. Fui para a área de Letras. Hoje não mato nem barata.
A grande maioria foi coletada na década de 80 do século passado, no quintal de casa. Hoje vejo que os espetei com alfinetes inadequados que se enferrujaram e que as fichas com dados, quando presentes (contendo dados sobre o coletor, o local e a data) são pouco informativas. Atualmente tenho pena dos bichinhos e só incluo novos insetos na minha querida coleção quando os acho mortos (e isso é muito raro). Esses insetos espetados são remanescentes de uma coleção muito maior. Ficaram, porém, como recordação de um sonho de uma profissão que nunca se realizará. O intervalo entre a saída de minha cidade natal e a encomenda dos quadros de madeira em que hoje estão durou mais de uma década. Muitos outros se deterioraram, devorados por outros insetos, os temíveis corrodêncios.
Perdi um megalóptero, um gigantesco belostomatídeo, todas as minhas libélulas, muitas borboletas e outras queridas lembranças de uma infância cheia de insetos e aracnídeos, os quais nunca mais vou voltar a ver. Sim, eu não sinto falta só dos vaga-lumes. Quando virava uma pedra qualquer em Botucatu, havia sob ela todas as espécies de artrópodes: quilópodes, miriápodes, milhares de colêmbolos, uma bicharada branca, cinza e marrom. São sem graça para quem não aprecia sua diversidade. Talvez você dissesse que eram nojentos. Os tatuzinhos, mais simpáticos, estavam sempre lá, próximos a alguma aranha armadeira; nas folhas das plantas, eram comuns os gafanhotos e os homópteros coloridos. Era lindo. E emocionante: até um raríssimo zoráptero de um milímetro surgiu diante de meus olhos atentos, ao revirar uma pedra. Tive um louva-a-deus de estimação, assim como aranhas prateadas, que eu alimentava com percevejos do maracujá.
Onde está tudo isso? Hoje em dia a terra secou de tal forma, com o calorão, que sob as pedras só há formigas e cupins. Os canaviais do interior de São Paulo contribuíram para acabar com o resto. Surpreendentemente é na capital, próxima da mata atlântica, que encontro nichos, como o quintal de uma casa aqui perto, cheia de tatuzinhos (mas recentemente foi reformada e ficou linda, cheia de flores não-nativas, mas os pobres crustaceozinhos foram para o beleléu). Resumindo: não sinto só falta dos vagalumes, mas também das baratas do mato pretas e cascudas de sob as pedras reviradas, dos desengonçados opiliões dos troncos podres com suas pernas espinhudas, de uma bicharada marrom e sem graça da qual nunca você, ecologista de carteirinha, preocupado com vertebrados coloridos e bonitos, nunca ouviu falar.
Obviamente sinto falta dos outros bichos também. Havia um cerambicídeo azul-pavão com pompons na antena que estava sempre associado a uma plantinha cujo nome desconheço, que dá umas florezinhas ridículas, mas é simpática por causa das bolinhas coloridas cheias de semente. Era um par perfeito. A plantinha ainda encontro, mas cadê esse besouro? Havia dezenas de espécies de elaterídeos, cuja bizarra habilidade natural proporcionada pela evolução eu pensava que mostraria aos meus filhos. Bastava colocá-los de costas no chão (os besouros, não meus filhos rs) e, por defesa, o danado saltava muito alto num estalo. Os gritos de prazeroso espanto de meus filhos não estão reservados a essa maravilha hoje, mas pobre e exclusivamente aos videogames. Todas as espécies desse besouro saltador desapareceram. Uma hecatombe.
Fala-se muito da extinção do mico-leão-dourado, da ararinha-azul, mas e a dos bichos sem cor, sem graça e sem forma? Não é de uma lista de dez espécies que falo. São dezenas de milhares. Nunca mais terei a surpresa de rever outro mantispídeo, tão parecido com o louva-a-deus, mas tão distinto dele evolutivamente? Nunca mais reencontrarei um Bocydium e seu bizarro ornamento que parece uma árvore de Natal?
Quando estive em Maringá, deparei-me com uma série de bichos que não via há muito tempo. Os insetos paulistas estão migrando para as matas preservadas paranaenses. A minha saudosa e frequentíssima Heliconius erato foi a primeira a passar diante dos meus olhos, como que me indagando à moda antiga: reconheces-me?
E que dizer da borboleta monarca (Danaus plexippus), que vinha de longe só para nos visitar, cuja lagarta era sempre encontrada numa planta que na minha terra chamam de leiteira? Vê-la hoje em dia é como admirar um cometa. Sentir falta disso parece bobagem. As pessoas estão correndo atrás de coisas mais importantes, como seus sonhos (apesar de muitas nem saberem quais são exatamente). Sonhos que perecem, enferrujam, que viram lixo no dia seguinte. Onde está a noção de estabilidade? Entramos no rio de Heráclito e as suas correntezas nos arrastam. Pena que hoje em dia são águas sujas e minguadas. Só nos arrastam porque estamos fracos, leves como papel, sem nada que nos ancore e com certo orgulho disso.
Lembrará alguém que sofro de saudade. Duarte Nunes de Leão em Origem da língua portuguesa (1601, cap. XXI) foi o inventor da lenda de que saudade só existe em português. Vejam o seu texto:
Saudade - este aspecto, como he próprio dos Portugueses, que naturalmente são maviosos e affeiçoados, naõ ha lingoa em que da mesma maneira se possa explicar, nem ainda per muitas palavras, que se declare bem. Porque, por o que os Latinos chamaõ desiderium, naõ he isso propriamente. Que, segundo a diffinição de M. Tullio no livro 4 das Thusculanas questoens: "Desiderium est libido videndi eius, qui non adsit", que quer dizer "Desiderium, ou desejo, he vontade de ver alguém que naõ estaa presente", sendo saudade palavra que naõ diz soomente referindo a pessoas, mas a coisas inanimadas. Porque temos saudade de ver a terra em que nascemos, ou em que nos criamos, ou em que nos vimos em algum gosto, ou prosperidade. Polo que parece que mais lhe podia quadrar esta diffinição, que he lembrança de algua cousa com desejo della.
Pois é, tenho saudade de pessoas, mas também de bombilídeos zunindo sobre as flores, de libélulas de asas encarnadas, de escarabeídeos chifrudos rolando bolas de esterco, de ver lagartas de Methona themisto em abundância, comendo os manacás, para não falar de bichos mais raros, como arlequins-da-mata. Sacrifiquei muitos desses animais para fazer minha coleção; parecia que nunca se extinguiriam, mas estão morrendo ou já sumiram do mapa. A culpa não foi só minha, com certeza.
As maritacas apareceram, as seriemas também: nunca as tinha visto em minha infância na abundância com que as vejo agora, mas estão cada vez mais raros os anus (palavra oxítona!) e as almas-de-gato. Desequilíbrio? Aparentemente sim. Certa vez, na Barra Funda, vi uma árvore infestada de bichos-da-cesta (um psiquídeo, provavelmente, Oiketicus kirbyi). Foi a última vez que vi o simpático bichinho.
Mas voltemos à palavra saudade e à bobagem que Nunes de Leão, sem querer, divulgou. Muitos concordaram e, defendem, tanto tempo depois, essa história de "saudade só existe em português" como algo comprovado. Aumenta nossa auto-estima? Os lusófonos seriam menos frios que os franceses e ingleses? Não sei se sabem, mas os romenos falam a mesma coisa da palavra dor que também significa "saudade" (a origem de dor não tem nada a ver com nossa dor: a palavra romena vem do latim dolus, a nossa, de dolor). Para eles, "saudade só existe em romeno".
Isso nos dá a medida da ignorância humana: desconhecemos o vocabulário de todas das línguas do mundo e já nos arrogamos, com nosso etnocentrismo romântico e nossa prepotência injustificada, a sair alardeando essa besteira de geração em geração, até virar verdade absoluta, até cair no vestibular, até virar tema de algum movimento político ou literário. Por acaso alguém checou todas as línguas do mundo antes de afirmar isso?
Perdoo Nunes de Leão. Todo mundo tem direito de falar bobagem. Não perdoo quem a repetiu.
Fico pensando que a saudade num tempo como o dele, em que não tínhamos sequer uma fotografia ou um telefone, devia ser um sentimento muito mais forte do que o da geração pós-youtube. Portanto, ironicamente, até mesmo a saudade que sentia Nunes de Leão, com toda sua intensidade seiscentista, seria intraduzível para a língua portuguesa atual.
A burrice me cansa. Não a burrice própria do desconhecimento das coisas (ou seja, a ignorância, que é tão humana quanto a sapiência), mas a burrice da não-assimilação, aquela coisa que precisa ser repetida milhões de vezes para ser consertada em apenas uma pequeníssima parcela da população; aquela burrice que se mantém por causa da nossa mente tradicionalista, pouco afeita à leitura, ao aprendizado e ao conhecimento. Essa mesma burrice, filha da indiferença, faz que um defensor da ecologia destrua ecossistemas de seu próprio jardim, para embelezá-lo. Entram os gerânios, saem os tatuzinhos.
Há perda? Há desequilíbrio? Há hecatombes? Acho que não. O mundo viverá muito bem sem vaga-lumes e tatuzinhos. Os pássaros, por exemplo, se adaptam, comendo lixo. Volta e meia aparecem garças no Tietê e o noticiário imbecil da TV alardeia que o rio está ficando limpo. Será que chegam a essa conclusão porque as garças são branquinhas e não lembram nem de longe os feios urubus? Burrice. As garças, as maritacas e as seriemas que têm aparecido no meio da hecatombe ecológica não são razão para nos autolouvar e vangloriar tomjobinianamente nossa espetacular natureza brasílica. São bichos, que no auge do desespero, na falta do seu prato predileto, viraram onívoros. Viraram uma espécie de praga, como um certo hominídeo aprendeu a sobreviver aos caprichos da evolução a despeito da sua falta de rabo e de pelo, usando um cérebro inchado de sua condição neotênica. Não quero dar uma de Augusto dos Anjos, mas, cá entre nós, diga-me: não somos verdadeiros axolotles?
E para acabar de vez com o romantismo, o termo pirilampo, sinônimo de vaga-lume, apesar de sua erudita origem, popularizou-se misteriosamente. Como explicar? O padre Raphael Bluteau (1720) nos conta como essa palavra grega pyrilampés, que significa "brilhante como o fogo", reapareceu na língua portuguesa:
PIRILAMPO. Nas Conferencias Academicas, que se fizeraõ no anno de 1696, na livraria do Conde de Ericeira, foy proposto, se ao insecto luzente, vulgarmente chamado Cagalume, se daria em papeis, ou discursos serios, outro nome mais decoroso, como v.g. Pirilampo à imitação de Plinio Histor, que chama a este insecto Lampyris, nome composto de Lampas, que em Grego val o mesmo que Tocha, & Pyr, que quer dizer fogo. A alguns pareceo este nome Pirilampo affectado, outros foraõ de parecer, que se admittisse em obras Epicas; por ser Cagalume incompativel com o nobre & magestoso estylo. Sebastiaõ Pacheco Varella no seu livro intitulado Num. Vocal, pag. 373. fallando neste bichinho, diz: "Quem depois de ver o dia claro, fará estimaçaõ do desprezado Insecto luzente, só porque de noite pareceo Astro brilhante?" Vid. Cagalume.
Haha, teria acontecido algo parecido com as libélulas? No interior, em vez dessa palavra proparoxítona, que é um preciosismo latino (libellulus em latim quer dizer 'balancinha' e tem a mesma raiz de libra "balança"), outros nomes, bem menos nobres, são usados pelo povo. Se ficou curioso, procure nos dicionários para saber quais são.
O lamento acima poderia ser também o de uma pessoa sem intimidade com insetos. Afinal, os vagalumes são belos e agradam a qualquer um. Mas antes de ser etimólogo eu queria ser entomólogo. Os bichos da foto abaixo fazem parte da minha coleção pessoal. Quando pequeno queria estudar zoologia. Fui para a área de Letras. Hoje não mato nem barata.
Perdi um megalóptero, um gigantesco belostomatídeo, todas as minhas libélulas, muitas borboletas e outras queridas lembranças de uma infância cheia de insetos e aracnídeos, os quais nunca mais vou voltar a ver. Sim, eu não sinto falta só dos vaga-lumes. Quando virava uma pedra qualquer em Botucatu, havia sob ela todas as espécies de artrópodes: quilópodes, miriápodes, milhares de colêmbolos, uma bicharada branca, cinza e marrom. São sem graça para quem não aprecia sua diversidade. Talvez você dissesse que eram nojentos. Os tatuzinhos, mais simpáticos, estavam sempre lá, próximos a alguma aranha armadeira; nas folhas das plantas, eram comuns os gafanhotos e os homópteros coloridos. Era lindo. E emocionante: até um raríssimo zoráptero de um milímetro surgiu diante de meus olhos atentos, ao revirar uma pedra. Tive um louva-a-deus de estimação, assim como aranhas prateadas, que eu alimentava com percevejos do maracujá.
Onde está tudo isso? Hoje em dia a terra secou de tal forma, com o calorão, que sob as pedras só há formigas e cupins. Os canaviais do interior de São Paulo contribuíram para acabar com o resto. Surpreendentemente é na capital, próxima da mata atlântica, que encontro nichos, como o quintal de uma casa aqui perto, cheia de tatuzinhos (mas recentemente foi reformada e ficou linda, cheia de flores não-nativas, mas os pobres crustaceozinhos foram para o beleléu). Resumindo: não sinto só falta dos vagalumes, mas também das baratas do mato pretas e cascudas de sob as pedras reviradas, dos desengonçados opiliões dos troncos podres com suas pernas espinhudas, de uma bicharada marrom e sem graça da qual nunca você, ecologista de carteirinha, preocupado com vertebrados coloridos e bonitos, nunca ouviu falar.
Obviamente sinto falta dos outros bichos também. Havia um cerambicídeo azul-pavão com pompons na antena que estava sempre associado a uma plantinha cujo nome desconheço, que dá umas florezinhas ridículas, mas é simpática por causa das bolinhas coloridas cheias de semente. Era um par perfeito. A plantinha ainda encontro, mas cadê esse besouro? Havia dezenas de espécies de elaterídeos, cuja bizarra habilidade natural proporcionada pela evolução eu pensava que mostraria aos meus filhos. Bastava colocá-los de costas no chão (os besouros, não meus filhos rs) e, por defesa, o danado saltava muito alto num estalo. Os gritos de prazeroso espanto de meus filhos não estão reservados a essa maravilha hoje, mas pobre e exclusivamente aos videogames. Todas as espécies desse besouro saltador desapareceram. Uma hecatombe.
Fala-se muito da extinção do mico-leão-dourado, da ararinha-azul, mas e a dos bichos sem cor, sem graça e sem forma? Não é de uma lista de dez espécies que falo. São dezenas de milhares. Nunca mais terei a surpresa de rever outro mantispídeo, tão parecido com o louva-a-deus, mas tão distinto dele evolutivamente? Nunca mais reencontrarei um Bocydium e seu bizarro ornamento que parece uma árvore de Natal?
Quando estive em Maringá, deparei-me com uma série de bichos que não via há muito tempo. Os insetos paulistas estão migrando para as matas preservadas paranaenses. A minha saudosa e frequentíssima Heliconius erato foi a primeira a passar diante dos meus olhos, como que me indagando à moda antiga: reconheces-me?
E que dizer da borboleta monarca (Danaus plexippus), que vinha de longe só para nos visitar, cuja lagarta era sempre encontrada numa planta que na minha terra chamam de leiteira? Vê-la hoje em dia é como admirar um cometa. Sentir falta disso parece bobagem. As pessoas estão correndo atrás de coisas mais importantes, como seus sonhos (apesar de muitas nem saberem quais são exatamente). Sonhos que perecem, enferrujam, que viram lixo no dia seguinte. Onde está a noção de estabilidade? Entramos no rio de Heráclito e as suas correntezas nos arrastam. Pena que hoje em dia são águas sujas e minguadas. Só nos arrastam porque estamos fracos, leves como papel, sem nada que nos ancore e com certo orgulho disso.
Lembrará alguém que sofro de saudade. Duarte Nunes de Leão em Origem da língua portuguesa (1601, cap. XXI) foi o inventor da lenda de que saudade só existe em português. Vejam o seu texto:
Saudade - este aspecto, como he próprio dos Portugueses, que naturalmente são maviosos e affeiçoados, naõ ha lingoa em que da mesma maneira se possa explicar, nem ainda per muitas palavras, que se declare bem. Porque, por o que os Latinos chamaõ desiderium, naõ he isso propriamente. Que, segundo a diffinição de M. Tullio no livro 4 das Thusculanas questoens: "Desiderium est libido videndi eius, qui non adsit", que quer dizer "Desiderium, ou desejo, he vontade de ver alguém que naõ estaa presente", sendo saudade palavra que naõ diz soomente referindo a pessoas, mas a coisas inanimadas. Porque temos saudade de ver a terra em que nascemos, ou em que nos criamos, ou em que nos vimos em algum gosto, ou prosperidade. Polo que parece que mais lhe podia quadrar esta diffinição, que he lembrança de algua cousa com desejo della.
Pois é, tenho saudade de pessoas, mas também de bombilídeos zunindo sobre as flores, de libélulas de asas encarnadas, de escarabeídeos chifrudos rolando bolas de esterco, de ver lagartas de Methona themisto em abundância, comendo os manacás, para não falar de bichos mais raros, como arlequins-da-mata. Sacrifiquei muitos desses animais para fazer minha coleção; parecia que nunca se extinguiriam, mas estão morrendo ou já sumiram do mapa. A culpa não foi só minha, com certeza.
As maritacas apareceram, as seriemas também: nunca as tinha visto em minha infância na abundância com que as vejo agora, mas estão cada vez mais raros os anus (palavra oxítona!) e as almas-de-gato. Desequilíbrio? Aparentemente sim. Certa vez, na Barra Funda, vi uma árvore infestada de bichos-da-cesta (um psiquídeo, provavelmente, Oiketicus kirbyi). Foi a última vez que vi o simpático bichinho.
Mas voltemos à palavra saudade e à bobagem que Nunes de Leão, sem querer, divulgou. Muitos concordaram e, defendem, tanto tempo depois, essa história de "saudade só existe em português" como algo comprovado. Aumenta nossa auto-estima? Os lusófonos seriam menos frios que os franceses e ingleses? Não sei se sabem, mas os romenos falam a mesma coisa da palavra dor que também significa "saudade" (a origem de dor não tem nada a ver com nossa dor: a palavra romena vem do latim dolus, a nossa, de dolor). Para eles, "saudade só existe em romeno".
Isso nos dá a medida da ignorância humana: desconhecemos o vocabulário de todas das línguas do mundo e já nos arrogamos, com nosso etnocentrismo romântico e nossa prepotência injustificada, a sair alardeando essa besteira de geração em geração, até virar verdade absoluta, até cair no vestibular, até virar tema de algum movimento político ou literário. Por acaso alguém checou todas as línguas do mundo antes de afirmar isso?
Perdoo Nunes de Leão. Todo mundo tem direito de falar bobagem. Não perdoo quem a repetiu.
Fico pensando que a saudade num tempo como o dele, em que não tínhamos sequer uma fotografia ou um telefone, devia ser um sentimento muito mais forte do que o da geração pós-youtube. Portanto, ironicamente, até mesmo a saudade que sentia Nunes de Leão, com toda sua intensidade seiscentista, seria intraduzível para a língua portuguesa atual.
A burrice me cansa. Não a burrice própria do desconhecimento das coisas (ou seja, a ignorância, que é tão humana quanto a sapiência), mas a burrice da não-assimilação, aquela coisa que precisa ser repetida milhões de vezes para ser consertada em apenas uma pequeníssima parcela da população; aquela burrice que se mantém por causa da nossa mente tradicionalista, pouco afeita à leitura, ao aprendizado e ao conhecimento. Essa mesma burrice, filha da indiferença, faz que um defensor da ecologia destrua ecossistemas de seu próprio jardim, para embelezá-lo. Entram os gerânios, saem os tatuzinhos.
Há perda? Há desequilíbrio? Há hecatombes? Acho que não. O mundo viverá muito bem sem vaga-lumes e tatuzinhos. Os pássaros, por exemplo, se adaptam, comendo lixo. Volta e meia aparecem garças no Tietê e o noticiário imbecil da TV alardeia que o rio está ficando limpo. Será que chegam a essa conclusão porque as garças são branquinhas e não lembram nem de longe os feios urubus? Burrice. As garças, as maritacas e as seriemas que têm aparecido no meio da hecatombe ecológica não são razão para nos autolouvar e vangloriar tomjobinianamente nossa espetacular natureza brasílica. São bichos, que no auge do desespero, na falta do seu prato predileto, viraram onívoros. Viraram uma espécie de praga, como um certo hominídeo aprendeu a sobreviver aos caprichos da evolução a despeito da sua falta de rabo e de pelo, usando um cérebro inchado de sua condição neotênica. Não quero dar uma de Augusto dos Anjos, mas, cá entre nós, diga-me: não somos verdadeiros axolotles?
E para acabar de vez com o romantismo, o termo pirilampo, sinônimo de vaga-lume, apesar de sua erudita origem, popularizou-se misteriosamente. Como explicar? O padre Raphael Bluteau (1720) nos conta como essa palavra grega pyrilampés, que significa "brilhante como o fogo", reapareceu na língua portuguesa:
PIRILAMPO. Nas Conferencias Academicas, que se fizeraõ no anno de 1696, na livraria do Conde de Ericeira, foy proposto, se ao insecto luzente, vulgarmente chamado Cagalume, se daria em papeis, ou discursos serios, outro nome mais decoroso, como v.g. Pirilampo à imitação de Plinio Histor, que chama a este insecto Lampyris, nome composto de Lampas, que em Grego val o mesmo que Tocha, & Pyr, que quer dizer fogo. A alguns pareceo este nome Pirilampo affectado, outros foraõ de parecer, que se admittisse em obras Epicas; por ser Cagalume incompativel com o nobre & magestoso estylo. Sebastiaõ Pacheco Varella no seu livro intitulado Num. Vocal, pag. 373. fallando neste bichinho, diz: "Quem depois de ver o dia claro, fará estimaçaõ do desprezado Insecto luzente, só porque de noite pareceo Astro brilhante?" Vid. Cagalume.
Haha, teria acontecido algo parecido com as libélulas? No interior, em vez dessa palavra proparoxítona, que é um preciosismo latino (libellulus em latim quer dizer 'balancinha' e tem a mesma raiz de libra "balança"), outros nomes, bem menos nobres, são usados pelo povo. Se ficou curioso, procure nos dicionários para saber quais são.