O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

terça-feira, 7 de julho de 2020

E ESSE FIM QUE NÃO CHEGA?

E com o fim da burguesia e do lumpemproletariado, emergiu luminosa a consciência de classe num contexto em que toda autoridade pública era eleita e revogada pelo sufrágio universal. Toca o despertador. Não, aquele não foi o fim. Que pena! Tampouco o som que ouvi ao despertar foi uma das sete trombetas que, dizem, tocará nos céus, afinal de contas, não li nada nos jornais sobre o tal Absinto, que transformará as águas potáveis em amargosas. Não, ainda não caiu nada sobre a Terra, que anda em parte silenciosa, em parte tumultuada, esperando o fim de um cativeiro a que nos impusemos. Não, nenhuma notícia sobre o início da queda da onda pandêmica. Nada. Pelo contrário, parecemos hoje suspensos, planando como aquelas andorinhas no momento em que não altaneiam nem mergulham. Estou extático, como todas as demais andorinhas. Nada se mexe. O rio de Heráclito não existe, penso eu. No perpétuo devir, o futuro é igual ao passado. O tempo era circular, como dizia aquele índio. E eu sempre pensei que era uma reta! Parecia não fazer sentido confundir amanhã com ontem. A minha teologia foi sempre uma teleologia e na minha lógica havia porquês e para quês, pensei.



Mas se estou parado desse modo, como explicar que não estou morto? Sim, ao menos sei que não estou morto, porque não acredito em malins génies. Parece-me que a inércia estática mais plena viria da falta de ânimo nos minerais. Tudo que é animal ou planta, afinal, move-se pelo seu élan vital, ainda que por floemas e túneis corpóreos concatenados entre si, às custas de sangue, linfa e energia elétrica. Tendo objetivos, planos, planejamentos, inteligência, instinto ou um mero programa etológico, há no ser vivo, por mais que se pareça com cogumelo, com uma esponja ou com uma anêmona, uma vontade de manter-se planando no ar, sem altaneios e sem mergulhos, vontade essa que muda quando lhe dá na veneta, mesmo quando acéfalo e descerebrado. O monge em seu asmitânugama samadhi ainda sabe quem ele é, mesmo não sentindo mais os cheiros, nem ouvindo mais os sons, certo? Pois bem, as pedras será que não teriam - talvez - esse estado de consciência motivada, não pela organização multicelular, mas pela sua geometria cristalina? Ou as pedras estão mortas? A pergunta parece estranha, pois só está morto aquele que já foi vivo e pedras, ao que tudo indica, não são sempre fósseis, isto é, os despojos de algo que viveu. 

Também, convenhamos, não posso imaginar como morto o indivíduo que ainda não nasceu. Então em que estado esse indivíduo-pedra está, se não está nem vivo nem morto? Mas as pedras existem, diferente do indivíduo virtual em estado espermatozoico ou pré-gameta. Então, para sermos justos na argumentação, teríamos de discorrer sobre a vida e, além disso, não só sobre a morte para os que já viveram, vivem e viverão, mas também sobre a existência sem vida nem morte das pedras e outras indíviduos formados por todos os elementos da tabela periódica.

Mas... e o Rio Doce, que não era vivo, como todos os rios não o são, e agora é morto? E tantos montes deformados em nome de um relevo plano, como já previa Drummond? Deixaram de existir, mas não morreram porque nunca foram vivos? Deixar de existir não é sempre uma espécie de morte? Se sim, morre-se também o que nunca foi vivo. Transformações assim são conhecidas como degradações, mas são como desexistências. Estou, contudo, convencido de que algo que não é mais desexiste, não importa se era vivo ou morto. Acho boa essa palavra.

E dizem (eu inclusive já o disse muitas vezes) que o homem faz tudo desexistir, pois sua ansiedade não tem fim. Mesmo de barriga cheia, não pára quieto e precisa mexer-se, brincar, alterar, adaptar, inventar, ousar, mudar. Basta isso para que receba a medalha do maior desexistencificador que existe... Muita arrogância hominídea, como sempre. Formigas promovem muitas Serras Peladas por dia e o empenho de um urso polar caminhando por quilômetros de brancura não deixam nada a dever com a pervicácia humana. Tudo que é vivo gosta de promover desexistificações no mundo: os cipós e filodendros se enrolam na árvore, ocupando o espaço que antes era só dela. No seu caminhar modificam, alteram e já não podemos falar da mesma paisagem, que desexistiu.

Alguém poderia pensar: mas não é esse justamente o eterno porvir? Por que Heráclito estaria errado, ó orador-andorinha plainante? Pois bem, Heráclito só está certo porque Platão estava muito errado, mas um olhava para fora e o outro, para dentro. Nova contradição: não é justamente o interior que se move sem parar, como nos mostrara o monge? Imagino que não. O interior que reconhecemos como nosso é na verdade uma coisa só: uma ânsia sem começo e sem fim. E se algo não tem começo nem fim, não existe. 



Se a vida fosse uma autoestrada sem começo e sem fim e se passássemos por ela de carro, do quilômetro 15 ao 35, onde há uma cidadezinha, diríamos que essa cidade que ficou para trás deixou de existir quando estivermos no quilômetro 90? Com esse raciocínio, apenas o meu automóvel existiria ou nem ele: talvez somente eu, que o faço funcionar, merecesse o título de ser existente. Os mortos que passaram pela nossa vida, no entanto, ainda existem, enquanto eu existo.



Eu tinha um amigo que frequentava minha casa e me acompanhava à igreja nos fins de semanas. Mais jovem que eu, cabelo enroladinho, tocava violão como ninguém. Da voz eu não me esqueço, como não me esqueço da voz de ninguém. Quando adolescente eu era muito tímido e queria dizer-lhe que era meu melhor amigo. Íamos um para a casa do outro, sem avisar. Ele se referia a outro conhecido nosso como o melhor amigo dele e eu acho que o outro nem merecia esse título. Um dia meu amigo se mudou com a família e nunca mais o vi. Até tentei revê-lo. Numa oportunidade, indo à cidade em que morava, avisei-o por carta, com muita antecedência, mas no dia ele se esqueceu e não nos vimos mais. E nem mais nos veremos, porque Wagner morreu num acidente de carro anos atrás. Até o dia em que recebi essa terrível notícia que me trucidou, justamente daquele que ele considerava o melhor amigo dele, Wagner estava vivo para mim e um dia o encontraria ainda, talvez velhinho. Mesmo depois de saber de seu óbito, custa-me acreditar que esse momento de nos revermos jamais existirá. Não será isso que fez tantos de nós imaginarmos que, sim, haverá um dia no pós-vida? Sei que além-túmulos são pura especulação, criados pela mesma dialética humana que gerou mulas sem cabeça. É preciso mentir muito para si mesmo para acreditar neles com sinceridade.

Pois bem, meu amigo não existia antes de nascer, existia antes de eu conhecê-lo, existiu enquanto fui seu amigo e existiu depois que não mais o vi. Deixou de existir num momento em que eu ainda cria que ele existisse, para deixar de existir definitivamente, na minha mente e a contragosto, quando recebi a má notícia daquele que não era o seu melhor amigo de verdade. 

Não param aí as questões da existência do meu amigo falecido. Ao contar a outros amigos meus e a parentes sobre o ocorrido, qual não foi minha surpresa ao saber que eles não se lembravam dele? Não tenho nenhuma foto de meu amigo para lhes mostrar. Como ter certeza de que existiu? Alguém me escreveu aquelas cartas nos primeiros anos em que fui morar fora de casa e há nelas sua assinatura. Bastaria a lembrança da existência de alguém, que se resume aos seus pretéritos cabelos encaracolados e à sua tremenda habilidade com o violão (pois nem sequer me lembro de sua altura, compleição física, cor da tez e dos olhos, formato de nariz)? É o suficiente para afirmar que algo , no caso ele, existiu? E se eu fosse a última única pessoa que o tivesse conhecido, ele morreria definitivamente só quando eu mesmo morrer? Serve-me para declarar a existência algo tão vago, abstrato, nebuloso, resumido ao valor da amizade juvenil infundida, ocupando a mente, tal como o vislumbre da cidadezinha pela qual passei a cem quilômetros por hora? O que se conservou impresso na minha alma não é mais uma parte de mim mesmo do que o objeto sobre cuja existência discorro?

O fim do mundo não chega. O fim da minha vida não chega. O fim das coisas que estão de pé e me dão algum prazer e alento tampouco chega. E mesmo chegando, afinal, trata-se da mais óbvia das expectativas, por que sofrer antes de sua chegada? Sequer sabemos quanto tempo as coisas duram comparando-as à desproporcional certeza da sua inexistência futura. A lógica aboliu a causa e a finalidade de seu instrumental formal: ambas não se encontram nem nos seus conectivos, nem nos seus quantificadores. Reduziu-as a míseras variáveis ou a fortuitos predicados. Fala-se da causa, afirma-se em nome de uma finalidade, mas elas não comporiam o pensamento humano, segundo os lógicos, assim como dão uma banana para o tempo. Será que não foram aceitas na festa da dedução? Apenas pelo prazer de andarmos em círculos na roda do tempo e de provarmos que aquilo que o farol de nosso automóvel ilumina agora é o posto que acabamos de ver e está atrás de nós? Paradoxo divertido e seguro, mas parece irreal. Falamos de existência, falemos de realidade.


O real é outra coisa. Diferentemente do existente, para o real, tanto faz se eu sentia que meu amigo vivia entre a data de seu falecimento e a notícia, vinda anos após o triste acidente na estrada, de cujos detalhes não quis saber. O real é aquilo que foge de nosso controle. Sobre o real não conseguimos profetizar, nem teorizar, nem cantar éclogas. No real não há Jesus futuro, nem ditadura do proletariado. Quando falo do real, não falo de previsões astrológicas: falo de anomalias que nos escapam, como a água esvaindo-se  pela peneira da criancinha que brinca à beira-mar. O real é a estrada sem começo e sem fim: nossa ansiedade seria pura psicose se não fosse a verdade do imponderável. O real, aquela coisa que iluminou Pascal com seu microscópio, está longe de ser o recheio de sanduíche que somos entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno. É o real que justifica nossos medos, aliás, nunca estivemos tão pouco medrosos quanto hoje e isso é assustador. É o real que nos faz tomar ansiolíticos. O medo nos moldou. O homem é o fruto do medo, senão estaríamos caçando frutas, nômades, em perfeita união com a natureza, mas poucos ainda veem alguma realidade nessa essência da humanidade desexistente.

O maior alimento do homem hoje é aquilo que o fim da estrada infinita nos proporcionará. E como crê esse homem que essa estrada tem um fim! Como espera ansioso o momento, ao terminar de dirigir, em que repousará, desatento, distraído e leve, com um sorriso justo no seu rosto cansado!