O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

domingo, 19 de maio de 2024

CLONAZEPAM

Como eu morri mês passado, pude fazer um balanço de todas as coisas e chegar a algumas pequenas conclusões. Peço perdão pela simplicidade.

Não importa o que eu sou, não importa. Sou muitas coisas, de que me orgulho e me envergonho, mas não importa. Importaria talvez somente se essas coisas fossem distorcidas, para você dizer o que não sou, para você tornar feio o que é bonito em mim e para tornar medonho o que é feio. Mas não importa o que você diz. Não importa nem o que eu digo nem o que eu faço. Não importa. Existimos eu e você que me distorce, mas quem importa? Sou um número, sou uma função social, sou uma projeção sua, sou algo que não sou, segundo você. Mas sei que sou, além de tudo isso, também outra coisa: aquilo que não vê, aquilo que ninguém vê, aquilo que eu mesmo tenho dificuldade de ver. Mas sou. Por enquanto sou. E nem sei se, sendo o que sou, isso importa. Não importa, eu sei, mas não conte isso para ninguém.


Não importa o que eu era, não importa. Eu era, sim, eu era. Mas era algo tão diferente de você, que horas e horas mereceriam ser dedicadas, para mostrar-lhe o que eu era. Eu não tenho tempo de contar, eu sei e tampouco você teria paciência, embora finja bem. Desculpe-me, se acreditei na sua paciência e acabei dizendo um pouco do que eu era. Não era nada importante, mas acreditei que me ouviria. Mas não importa. O que eu era já foi. Eu não sou mais quem eu era. E, se o que eu era não importa, nem mesmo para mim, por que você perderia seu tempo querendo ouvir? Deixe para lá o que eu era. Eu era, como todo mundo já foi um dia: algo que não é mais e jamais será de novo.

Por isso, repito, não importa o que eu fui, não importa. O que eu fui encerrou-se no passado. Se o que eu era explica o que eu fui e se uma explicação só vem de um problema, uma vez que aquilo que eu era não é problema para ninguém, muito menos para você, qual a razão de eu ainda lhe dizer o que fui? Se fui, fui. Simples resultado do que eu era. E se não sou mais nem o que eu era, nem o que eu fui, importaria ainda menos contar-lhe o que eu sou. Você deveria perceber isto claramente: não há sequer uma relação de causa e efeito entre o que eu era e o que eu sou! O que eu fui importa menos ainda...

Fui, sim; já não sou porque o fui só um dia ou, talvez, alguma nesga de tempo um pouquinho maior. Nesse ínterim eu fui, admito. Mas esse ter sido está no passado, misturado ao que eu era, com muito pouca relação com o que eu sou. Esqueçamos isso.


Mas algo serei, sem dúvida. Nisso me irmano com você; agradeço, por tê-lo revelado, a quem me fez acordar aos pinotes, no meio da noite, com medo de estar morrendo: seremos uma foto - que aos poucos se desbotará no velho álbum - de alguém de cujos mais próximos ainda se lembrarão. Pouco tempo se passará para que ninguém mais saiba quem éramos. Com um pouco de sorte e fama (repetiu sem piedade o dono da verdade, velho, manco e frustrado, olhando nos nossos olhos marejados de desespero), seremos nome de alguma praça e, com mais sorte ainda, um ou outro curioso buscará saber de quem se tratava. 

Mas sejamos sinceros com os futuros candidatos a famosos, para não lhes darmos esperanças demasiadas: haverá tantas novas praças assim para ser nomeadas? Além disso, convenhamos, a fila dos famosos dia após dia se torna imensa e só aumentará. Suas longas biografias, narradas, com sorte, mal excederão um parágrafo.