Está no livro de Pedro Agostinho Kwarìp: mito e ritual no Alto Xingu (São Paulo: EPU/EDUSP, 1974, pág. 167-170). Entre fascinantes mitos dos kamaiurá sobre a origem do pequi e da mandioca, há um muito peculiar. Diz que em época muito antiga, as ariranhas não tinham ânus, pois eliminavam todo o "ingerido desnecessário" pela boca, como ainda hoje o fazem. Como todo bicho mítico, falavam. Fascinadas com o modo que o herói Katsinin fazia "sua evacuação de alimentos", pediram-lhe um ânus também. Maldosamente, Katsinin afiou bem sua flecha e aproveitou-se da situação para matá-las. Nessa terrível situação, quase todas pereceram. Alertada involuntariamente pela extasiada torcida dos peixes, a última delas conseguiu escapar, bem a tempo, apenas ferida de raspão, pois Katsinin mal havia começado seu procedimento nela. Solenemente o mito termina dizendo que é por causa dessa proto-ariranha sobrevivente que as atuais têm o ânus tão pequeno.
Se abstrairmos o lado grotesco do mito, há algo de maravilhoso nele. Todas as culturas, aparentemente, se preocupam com aquilo que as rodeia e anseiam por uma explicação. Por quê?
Todas as culturas procuram explicar as coisas ao seu modo. É natural que seja assim? Aparentemente sim. É sintomático vermos um povo com uma cultura tão distinta da nossa (ao menos o era na época em que Pedro Agostinho a retratou) fazendo algo tão parecido. Para explicar a origem das coisas, os kamaiurá têm heróis com flecha, nós temos seres sobrenaturais, mas somos todos o mesmo Homo sapiens.
E por que o homem precisa de explicações? Talvez o plus quantitativo do nosso cérebro, comparado com o dos outros animais, faça de fato toda a diferença nesse quesito. Na verdade, sempre duvidei disso. Adoro os trabalhos dos etólogos e, lendo-os, raramente vejo alguma diferença significativa entre nossa tão requintada e autolouvada sabedoria humana e o comportamento das vespas e outros himenópteros, por exemplo. Ainda não vejo claramente por que, para nós, é tão óbvio que sejamos melhores que elas, que fazem tantos prodígios com sistemas nervosos tão simples.
Até hoje não cremos convictamente que a percepção de mundo de qualquer outro animal seja tão digna de louvor quanto a de um ser humano. Sim, têm merecido a piedade de muitos, mas raramente alguém diria que são iguais a nós. Ainda hoje acreditamos que a evolução nos conduziu à uma espécie de perfeição. Os bons evolucionistas sabem que, por meio da evolução, nada se aprimora: apenas...evolui (isto é, modifica-se, adapta-se às condições adversas circundantes), sem qualquer intenção futura que não seja a propagação dos genes.
Dentro da propalada escala fajuta de perfeição, montada pelo nosso antropocentrismo, durante séculos, acreditou-se em culturas melhores que outras, depois - mais seriamente - em culturas mais evoluídas que outras. Segundo esse modo de ver, os kamaiurá explicariam as coisas do modo acima porque teriam um raciocínio primitivo, nada comparável aos milhares de anos de aperfeiçoamento filosófico e científico da Civilização Judaico-Greco-Cristã ocidental. No nível acadêmico, ao menos, esse discurso se atenuou após os horrores da Segunda Guerra. Apostou-se, como tábua de salvação, no relativismo cultural. Uma visão científica mais tolerante tem horror à ideia de que um grupo social seja mais evoluído que outro. Segundo esse modo apaziguador, parte-se de uma inquestionável premissa (aquela lá, propalada desde o século XVIII, mas pouco aplicada, de que somos todos seres humanos, portanto todos iguais nos nossos direitos) para a questionável conclusão (que todos temos razão porque ninguém de fato sabe como foi). Tanto faz explicar o ânus da ariranha por mitos ou por meio de sofisticadas teorias evolutivas. Tudo é relativo.
Dentro da propalada escala fajuta de perfeição, montada pelo nosso antropocentrismo, durante séculos, acreditou-se em culturas melhores que outras, depois - mais seriamente - em culturas mais evoluídas que outras. Segundo esse modo de ver, os kamaiurá explicariam as coisas do modo acima porque teriam um raciocínio primitivo, nada comparável aos milhares de anos de aperfeiçoamento filosófico e científico da Civilização Judaico-Greco-Cristã ocidental. No nível acadêmico, ao menos, esse discurso se atenuou após os horrores da Segunda Guerra. Apostou-se, como tábua de salvação, no relativismo cultural. Uma visão científica mais tolerante tem horror à ideia de que um grupo social seja mais evoluído que outro. Segundo esse modo apaziguador, parte-se de uma inquestionável premissa (aquela lá, propalada desde o século XVIII, mas pouco aplicada, de que somos todos seres humanos, portanto todos iguais nos nossos direitos) para a questionável conclusão (que todos temos razão porque ninguém de fato sabe como foi). Tanto faz explicar o ânus da ariranha por mitos ou por meio de sofisticadas teorias evolutivas. Tudo é relativo.
Sejamos sinceros: apesar de nos julgarmos tolerantíssimos, achamos, no fundo, a história dos kamaiurá um bom entretenimento e ficamos com a nossa própria explicação. Será que, na prática, estamos sendo tão tolerantes assim? A boa intenção do relativismo cultural parece que não se implementou de fato, pois cada um vive com sua explicação. A do outro é obviamente errada, absurda, bizarra.
A minha explicação, por exemplo, seria a evolutiva. Mas há quem acredita que foi Deus quem fez o ânus da ariranha do jeito que é, no sexto dia da criação (Deus? No original hebraico, a palavra Elohim mais parece "deuses", mas deixemos o comentário disso para outra oportunidade). Seja como for, as dimensões anais da ariranha chamou a atenção dos kamaiurá e (talvez) de alguns evolucionistas, mas não há outras explicações, afinal de contas, quem é que sabe o tamanho dele senão alguém com convivência com o bicho? E mesmo entre esses, quem se importa? Talvez apenas o filósofo kamaiurá que o divulgou. Que é uma grande questão senão aquilo que problematizamos? O que é um problema para um kamaiurá pode não ser para um surfista carioca ou para um economista sueco. E o porquê do enigma da ariranha não parece encabeçar as grandes questões da Humanidade. Para piorar, tem gente que confunde ariranha com foca. Aliás, tem gente que nunca ouviu falar de ariranha. Há tempos percebi que um problema só existe quando há algo destoante daquilo com o qual estamos acostumados.
Mas por que somos animais especiais?
Alguns animais têm corpos mais bem adaptados à Terra, outros têm sociedades muito mais bem estruturadas, outros enxergam melhor do que nós. Alguns aparentemente têm melhor memória; outros com certeza criam signos em seus pensamentos parecidos com os nossos, apesar de não os expressarem por meio de uma linguagem articulada. A expressão de informações e de sentimentos se encontram nos seres mais primitivos. Então que nos difere de fato de todos os demais bichos? Sem dúvida, apostaria na primitiva associação entre causa e efeito.
Toda vez que detectamos um problema, implicitamente buscamos uma causa. A causa é o motor do nosso tão orgulhoso pensamento humano. Isso nos arrastou à procura de uma explicação para os enigmas que nos cercam. Talvez antes da linguagem. Por que explicar? Não conseguiríamos viver no estressante caos dos enigmas? Não saber é tão frustrante assim? A evolução talvez tenha uma resposta para isso. Eu não.
O nosso mito diz que a consciência veio da ingestão de uma fruta proibida da árvore do Éden, oferecida por uma serpente falante à tal Eva, que foi mãe de todos (até mesmo de Katsinin). É óbvio que as ariranhas não falam, já as serpentes...
Num século em que impera a informação, eu pareceria um herege se dissesse não ser frustrante desconhecer as causas. Houve épocas em que não estávamos conectados (e isso faz bem pouco tempo). Algo visto uma vez dificilmente se repetiria. Os youtubes tiveram o mesmo papel do retrato e da fotografia quando surgiram. Antes deles, era preciso que retivéssemos na memória cada detalhe (e sabemos que a memória é traiçoeiríssima) e sobre essa imagem mental fantasiávamos, tínhamos saudade, falávamos de nossas experiências a gerações que não tinham visto o prodígio que vimos. Tudo isso desabou. Vivemos num shopping de imagens. Melhor: tudo é de graça!
Mas voltemos à pergunta, refeita de outra forma: é preciso saber? Penso que sim. Quanto mais sabemos, mais tolerantes somos. Não pactuar com intolerâncias antigas, que hoje deveriam parecer anacrônicas (mas que estão vivíssimas nos nossos cyberdias) é dever de todos. Se sabemos, podemos conhecer e se conhecemos, toleramos. Não seremos assaltados pelos nossos medos atávicos, que se transmutam facilmente em preconceitos. Às vezes, penso que nossa espécie tem essa mania de explicar tudo porque tem medo. Homo timens.
E por que não teria? Alguma mutação cruel fez que perdêssemos nossa pelagem. Nus e sem rabo (que é praticamente uma quinta pata, para muitos primatas), o bicho-homem tinha de reagir, senão já seria espécie extinta. A agressividade pode ter contribuído, mas faltava-nos os dentões dos carnívoros e a evolução é lenta demais. A engenhosidade para usar paus e pedras pode estar na explicação etiológica de Kubrick, mas não convence muito. O que salvou mesmo o homem foi a seleção daqueles que viam causas em tudo e, por isso, conseguiam fugir. Com o empurrãozinho da linguagem, efeito colateral do inchaço cerebral, nasceram as religiões, filosofias e ciências como consequências imediatas. Todas com suas causas. Tudo explicadinho. Nasceu a convicção. E, com ela, um ser humano pronto para aniquilar o outro que pensa diferente. Nunca nos livramos do medo primal. O Horla nos circunda sempre.
Saber é fonte de tolerância. Mas se o que sabemos está fundado sobre causas tão relativas, como sabemos que sabemos de fato? Nossa sabedoria pode ser apenas uma alucinação.
Nesse ponto, em que o niilismo bate às portas, penso que, na verdade, há formas de saber. O saber em construção, a meu ver, é melhor que o saber acabado. A dúvida é melhor que a certeza.
Mas não a dúvida estúpida.
Duvidar da existência real das cores que vemos é saudável, pois é possível provar que só existem porque há um cérebro que as interpreta. Duvidar do raciocínio singular que conduziu às provas alavancadas por essa dúvida é estúpido.
Por meio da dúvida adquirimos conhecimento e mais dúvidas. O conhecimento é, na verdade, uma dúvida abandonada. Mas não louvemos demais a dúvida: por meio dela, como visto, também incorremos na estupidez.
Quando, com esse saber em construção, chegaremos à certeza?
Podemos, por exemplo, planejar para nossa vida duvidar de tudo e, uma vez atingido um conhecimento, transmutarmo-lo imediatamente em certeza. Nascida primeiramente da dúvida, não há por que desejar duvidarmos novamente. Alguns conseguem, mas isso pode fazer um mal terrível ao nosso frágil cérebro de primata temeroso.
Pode parecer pouco para um filósofo, mas é melhor que a certeza inconsciente e fanática, que não nasce da dúvida. Acho-a assustadora, porque nasce diretamente daquele medo primal.
Sempre pensei, por exemplo, ser bem saudável duvidar que temos acesso a uma única verdade e que mais importante que a causa das coisas é a nossa consciência. Estamos conscientes de que nossas causas não nos satisfazem? Pensamos nelas o suficiente? Deveríamos. Se não, voltemos ao mito. Ele, ao menos, tem algo de belo.
Pode parecer pouco para um filósofo, mas é melhor que a certeza inconsciente e fanática, que não nasce da dúvida. Acho-a assustadora, porque nasce diretamente daquele medo primal.
Sempre pensei, por exemplo, ser bem saudável duvidar que temos acesso a uma única verdade e que mais importante que a causa das coisas é a nossa consciência. Estamos conscientes de que nossas causas não nos satisfazem? Pensamos nelas o suficiente? Deveríamos. Se não, voltemos ao mito. Ele, ao menos, tem algo de belo.