Eu vivo dizendo que aquisição de linguagem é algo que ocorre a vida toda e não só quando somos bebezinhos. Recentemente, uma nova palavra - vlog - entrou em meu repertório lexical. Decerto já existe há muito tempo. Sei que sou mais dado a coisas arcaicas. Já me chamaram mais de uma vez de renitente às novidades. Injusta acusação nesse caso: sou apenas desinformado (aliás, belíssimo o par mínimo blog: vlog, difícil para os hispanofalantes). Como muitos sabem, a fonética está entre minhas paixões. Sobretudo me intriga a ligação que estabelece entre a dicotomia real / mental (ou, dito de outro modo, ondas/ imagem cerebral). Por isso, pedi aos meus pupilos que fizessem um trabalho de transcrição fonética de alguns desses vlogs. Na correção, fiquei espantado com a quantidade de pessoas querendo externar suas opiniões na internet. Algumas falavam coisas tão próximas do senso-comum, que me causaram não só cansaço, mas infundiram pena. Outras arrojadíssimas, metralhavam seus palpites, beirando a histeria. Outras ainda tinham atitudes tão particulares, que nada poderia impedir o choque de quem as visse e ouvisse. Poucas eram interessantes. De fato, fascínio é algo raro demais hoje em dia. Será que o acostumado com tudo perderá o fascínio pelas coisas? Pensando profundamente sobre essa enxurrada de opiniões banais na internet, acabei projetando-me neles. Lembrei-me do meu blog, sim, deste texto que está lendo. O crítico verá algo de metalinguístico aqui.
Queremos estar presentes em tudo. É um novipecado contra os mandamentos da sociedade moderna, por exemplo, não ter Facebook. Pensa o vulgo que a pessoa que assim age ou é velha demais, ou é antissocial, ou tem algo a esconder. Deixo ao meu crítico a minha classificação exata, pois eu mesmo não sei. Mas será mesmo que uma existência é estar no meio das outras formigas? Não há vez para o ermitão? Foi por isso que algum deus teria criado o Universo? Estava sozinho demais? E depois que se encher das palhaçadas da sua própria criação, vai deletar a conta, como eu fiz com as minhas "redes sociais"? Fará o demiurgo algo assim como quando desligamos a TV, fartos de Big Brother? Essa excitação de ter o poder de ligar e desligar coisas inúteis deve deixar mesmo qualquer um sentindo-se onipotente. Mas não é menor do que a excitação de estar no meio do burburinho, rindo ou ofendendo, integrado em tribos que se autorrivalizam, avaliando tudo com dedinhos para cima e para baixo, nesse voyeurismo esquisito e histérico dos dias de hoje. Aliás, antes fosse mesmo voyeurismo! Mas chochamente não vejo transgressão alguma. É algo como que uma inércia, uma necessidade e, estranhamente, um dever.
Há necessidade de dizer que estamos presente ainda neste planeta e, mais do que isso, que representamos valores, ainda que sejam confusos. Estátuas, quadros e livros eternizararam muitas pessoas que são ponto de partida de nossas discussões e raciocínio, mais tarde foram as fotos e os filmes e isso não teve mais fim. Tudo hoje está à disposição do infeliz primata dono do planeta, seja uma pixação, um blog, um vlog, não importa se é algo redundante ou desnecessário. Senso-comum se mistura com a sapiência, originalidade com o senso-comum, auto-ajuda com a violência, tudo parece estar à busca de um pretenso raciocínio claríssimo e uma vontade imensa de eternizar-se.
Afinal de contas, um indivíduo é um indivíduo, indivisível como se diz. Mas, cá entre nós, há coisa mais sem individualidade que a assombrosa maioria dos indivíduos?
Nessas opiniões de todos os tipos, não me choca apenas a certeza que flui de suas bocas-metralhadoras, sem pausa e sem turno. Qualquer um faz isso hoje em dia. Até mesmo o assassino de Woolwich explicou-nos cartesianamente o porquê de sua atrocidade insana em frente a uma câmera, com seu cutelo ensanguentado na mão. Certeza agora é algo fácil de se ter. Basta ser inseguro, ler duas linhas de qualquer coisa e repeti-las incessantemente. E, melhor de tudo: é de graça.
O que me choca ainda mais é haver opiniões de todos os tipos e que não há mais o medo do ridículo. Alguns aparentemente até têm alguma consciência parcial desse medo. Nos vlogs falam uma besteira e se autocorrigem, rapidinho, improvisando uma autocrítica, animadinhos ou entediadinhos, só para fazer um gênero homogeneamente diferente. Vivemos no meio de um standup comedy coletivo. Que fizemos para merecer isso? Será isso o inferno do fim dos tempos?
Ao mesmo tempo, observo que muitos da minha idade ou mais velhos não padecem dessa enfermidade. Falam da exposição dos mais jovens. O medo da exposição de um sentimento ou de uma convicção se reduz ao medo de termos inimigos? Ou também ao medo de perdermos aliados?
Imaginemos duas pessoas que convivam há muito tempo e nunca expuseram suas opiniões sobre algo. Provavelmente agem assim, porque pensam que sua opinião não seja relevante para o que fazem conjuntamente (mas pode ser por algum outro motivo). Mas eis que a opinião de uma delas aflora, de um modo ou de outro. Imediatamente essa pessoa estará fragilizada. Se a opinião exposta é idêntica à do outro que ocultava, verá que tem um aliado (exceto se o ocultador for hipócrita ou sofrer de autoengano). Mas e se a opinião não for a mesma, ou, pior ainda, for exatamente a contrária? Com muito azar terá um inimigo, mas sem dúvida terá um ex-aliado, com quem não poderá contar com o mesmo entusiasmo e dedicação.
Será por causa desse risco que os mais velhos expõem tão pouco suas opiniões, ao contrário dos mais jovens (que, por definição, ainda não viveram suficientemente e, na sua maioria, não experimentaram situações distintas das que vivem com seus pares)? Talvez seja algo de hoje essa capacidade de vivermos com gente que pensa como nós e expulsar com igual facilidade os que não pensam identicamente? É isso que dá uma certeza quase patética a algumas pessoas quando afirmam asnidades?
No passado, as redes sociais eram reais e bem pequenas. Resumia-se ao contato presencial. Aos mais velhos, durante boa parte de sua vida, exigiu-se mais do que se exige hoje para afirmarem algo como certo, embora errassem mais por causa da falta de informação. Fazia-se o que era possível para aceitar o diferente e a integração era conflituosa devido à máxima de que o certo era o valor da maioria. O choque do indivíduo com essa sociedade idealmente uniforme gerava o pária e o cauteloso. Falava-se de vigiar e punir. Hoje, dizem que felizmente é o contrário. No entanto, para os ermitãos convictos, como eu, tanto faz. Vivemos ainda em círculos limitados. Qualquer restrição é um limite e nunca vi tanta gente restritiva como hoje em dia com seus amos e odeios, com suas tribos e suas convicções dogmáticas avessas a qualquer questionamento. Para mim, isso não é feio nem bonito. Simplesmente não mudou tanto quanto se pensa.
O ermitão corre o risco de ser visto como reacionário. Não entendem que ele é apenas tímido. Aprendi que ser tímido é ser sinônimo de agressivo. Há os que gostam de ser agressivos, eu não. Procuro não ser, pois meu estopim é curto. Sofro, porém, quando sou (obviamente sofrer a agressão é pior do que ser agressivo). Além disso, o reacionário não aceita a mudança. Eu aceito, apenas lamento quando chamam inércia de mudança. Os rótulos me irritam. E toda vez que me acusam de algo ou ouço alguém acusar alguém de algo, fico apatetado e volto à minha caverna. No começo, sentia culpa, mas descobri que amo ser esse troglodita. Jamais seria um bom político, nem odeio quem o seja. Apenas lamento toda má política. Lamento quem não entende que reciclar lixo é bom. Toda vez que vou à padaria, preciso falar que não quero sacolinha de plástico além do invólucro de papel para meu pão (segue-se diariamente um sustinho do funcionário após o gesto automático e gentil de querer mimosear-me com a maldita sacola, gesto repetido, imagino, um milhão de vezes por dia com todos os clientes). Quase um ano depois da primeira postagem neste blog a situação das faixas de segurança pouco mudou. Obviamente, essa situação se perenizará a despeito do bom-senso. É tão difícil assim a lógica delas ou tanto faz?
Ontem por segundos não atropelei um rapaz. Parei na faixa de segurança para uma moça passar. Sorriu simpática e me agradeceu (eu, trogloditamente, mesmo com vontade, nunca retribuo esse agradecimento com a mesma simpatia, porque não fiz mais que a minha obrigação e não quero ser cúmplice de um mais um hábito urbano: não posso envaidecer-me de ser minimamente civilizado, seria injusto, pois ninguém, exceto o doido da vila, agradece ao semáforo por ter ficado verde). O carro do meu lado, como sempre, parou também (fazem sempre isso, não por solidariedade, suponho, mas por falta de personalidade e pelo mesmo motivo instintivo dos homens-formigas do Facebook: aposto que o mesmo motorista não pararia se eu não tivesse respeitado a faixa - sim, até nisso há falta de personalidade, a culpa é sempre do outro). Ok, estamos perante o melhor dos mundos, melhor até do que Leibniz esperaria: um pedestre querendo passar e os motoristas paradinhos. Tudo sob controle. Pois bem, a moça, mesmo assim, quase foi atropelada por um ciclista, que ultrapassava o carro do meu lado pela esquerda, mas se desviou a tempo e chocou-se com outro ciclista, igualmente sem freios que ultrapassava pela direita (ou era muita coincidência ou estavam juntos), o qual foi arremessado por cima do meu carro e caiu na minha frente, quando justamente eu estava começando a acelerar e a mover-me (a moça nesse instante já havia passado por mim). Por um segundo (se eu tivesse acelerado um pouquinho mais) teria passado por cima dele. O ciclista levantou-se, sem qualquer arranhão visível, assustado e irritado com o mico. Nem olhou para mim. Mal se recompôs, jogou a bicicleta com violência na calçada, dando uma bronca no ciclista que se chocou com ele. Fiquei surpreso com a minha fleuma. Já a havia experimentado algumas vezes. Coitado, mais uma vítima da ilusão berkeleyana de que o mundo não existe! Apenas ele e sua bicicleta, velozes numa ladeira feita para seu deleite. Foi duro o chão que o recebeu e refutou sua teoria. Poderia ter sido pior: poderia ter sido o nada da morte. E eu, que há pouco não existia no mundo do ciclista, hoje estaria íntimo de sua família (no mau sentido), respondendo judicialmente pelo seu atropelamento fatal, à caça de testemunhas improváveis e da intangível justiça.
Mas quando justifico minha eremitania (ou ermitãozice, se preferir) criticando meio-mundo, tenho algumas certezas. Reacionário eu sei que não sou. Nem hipócrita. Basta ser meu amigo, vir até mim e lhe contarei o que penso da vida, das pessoas e do mundo. Até quem se arroga mais liberal se choca normalmente quando abro um pouco da minha boca. Um dia talvez tenha coragem de escrever aqui tudo o que penso, mas não sei se todos os que me leem são meus amigos. É mais fácil encontrar um inimigo empenhado em nos entender do que um amigo com a paciência requerida de leitor. Além disso, meus amigos são muito diferentes uns dos outros. Não há muitos fios que amarrem meus amigos entre si. Se não há fios, não há web e, portanto, não há spider. De armadilhas feita com fios de seda estou cheio, embora ame as aranhas e a aracnologia. Com amigos se vive. Amizade, para mim, é o oposto do saber teórico. Tem de ser delírio nietzscheano.
Talvez essa sensação de comunhão da sociedade moderna, advinda de toda a visão parcial do mundo, faça que a transparência de opiniões hoje seja quase total, sem se pensar nos riscos, nas perdas, nas frustrações e nas tristezas da perda. Falar ou escrever sempre foi dar uma opinião. Então por que há opiniões que ofendem, frustram, chocam e outras que simplesmente expõem valores largamente compartilhados e são inócuas? Quanto maior a comunhão, maior será o choque de uma opinião contrária. Como seria a fórmula exata entre (não) concordar, chocar e reagir? Que faz que alguém se mova, com uma bandeira na mão no meio do formigueiro humano? Quebre? Mate? Ame? Chore?
Mais enigmaticamente ainda: por que todos, sem exceção, defendem a sinceridade? Não acreditar nunca na sinceridade alheia é um convite à angústia. Acreditar sempre é um convite à decepção. É estranho: angústia e decepção não deveriam estar em pólos opostos de um continuum. Se estou certo, o que estaria no meio? Se gostamos da sinceridade, por que nos incomodamos com opiniões desastradas, tão comuns nos jovens, mas não exclusivas deles? Talvez infrinjam alguma lei do nosso obscuro bom-senso? Não respeitam o nosso direito à insinceridade, provavelmente. Não entendem que temos medo? Uma única opinião pode ser mal-entendida, gerar um preconceito contra nós mesmos. Rótulos nascem quase invariavelmente de compreensões parciais. Quem teria, oras, capacidade para compreender completamente o outro? Impossível. Não queremos ser vítimas do preconceito. Mas, com nosso recato, reclusão e timidez talvez reforcemos o preconceito, como se afirmássemos que tem raízes reais.
Por ora, não sei como solucionar isso e duvido que alguém saiba. Afinal, estou quase certo, que nas vésperas de algum paroxismo social semelhante a tantos outros narrados pela História, haverá talvez um dia horrendo em que não seja permitido nem mesmo alienar-se.