O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

DEIXE-ME BUZINAR E CHUPAR LARANJA

Como muitos amigos meus sabem, antes de decidir estudar Letras e ser etimólogo, eu queria ser entomólogo. Minha paixão pelos artrópodes era tal, que não via nada além deles na minha frente. Essa obsessão parece um pouco a história que Oliver Sacks conta sobre sua relação juvenil com a química em seu maravilhoso livro Uncle Tungsten. Pois bem, como toda paixão, ela passou da noite para o dia. A transição é meio complicada de explicar, mas já que comecei a falar disso, vamos lá.

No começo, eu tinha dó de matar os insetos, mas minha mãe, misteriosa como a mãe de Sacks e como todas as mães, autorizou-me a fazer isso, dizendo que não era pecado. Com a aprovação de Deus, desde então, lá no início da década de 80, passei a coletar insetos. Os moleques da vizinhança achavam aquilo tão diferente, que me presenteavam com bichos mortos encontrados em suas casas. Somente insetos, aracnídeos e crustáceos participavam das minhas caças solitárias ou em bandos de moleques, entre os quais estavam primos e vizinhos em Botucatu. Íamos para uma região conhecida como Morro do Peru e Bocaina. Não saíamos dos terrenos baldios e das matas. O resultado disso foram milhares de insetinhos mortos: besouros, borboletas, gafanhotos, libélulas e muitos outros. Havia tantos na natureza que jamais pensei que um dia sumiriam, mas sumiram, sobretudo os que eu mais amava, os quais se encontravam com facilidade sob os troncos podres, tijolos e pedras: opiliões, colêmbolos e outros estranhos seres. Aliás, lembro-me que, um dia, revirando pedras, encontrei um zoráptero. Só a história dele daria um blog.


Olhava os pequeninos por um microscópio presenteado pela minha mãe. Não me interessava pela histologia ou pelo interior deles. Amava suas armaduras, seus espinhos e quelíceras, suas maravilhas feitas de queratina, seus olhos e ocelos, suas pernas articuladas. Aos poucos, passei a venerar a nomenclatura zoológica. As leis do ICZN pareciam-me tão lógicas, tão perfeitas, que ainda hoje me fazem pensar que a nomenclatura zoológica foi o feito humano mais próximo da racionalidade. Encantava-me o fato de insetos tão pequenos terem nomes tão complexos. Um primo, que havia cursado seminário, deu-me seus livros de latim e grego e eu comecei a entender o que significavam.

O prof. Benedito Soares, que trabalhava na UNESP de Botucatu e que me tratava como o filho que nunca teve, convenceu-me também a estudar alemão. E como não saía de quatro bibliotecas da minha cidade (a Biblioteca Municipal, a do Centro Cultural, a da UNESP e a do EECA, onde estudava), travei contato com outras línguas: espanhol, italiano, russo, esperanto, bororo. Nesse momento, veio a súbita metamorfose. Resolvi, do dia para a noite, fazer Letras, apaixonado pelos livros de Sapir e Câmara Jr que encontrei. Mudar de paixão foi fácil. O difícil, pensava, seria contar ao prof. Benedito que havia virado casaca. Ensaiei muitas vezes como lhe diria, mas não foi necessário porque ele faleceu quando estava no terceiro ano do Colegial.

Nessa época, mas sobretudo depois dos dezessete anos, resolvi que não mataria mais insetos. Ainda hoje salvo as baratas que entram em minha casa. Uma vez fiz isso com as mãos, mas não recomendo, porque fiquei com uma diarreia horrível, provavelmente psicológica. Sou fiel a esse princípio, tanto quanto um jainista digambara, mas obviamente não pelos mesmos motivos. Não adianta convencer-me que insetos não sentem dor, por exemplo. Todos os insetos espetados que tenho em casa são da década de 80 e os que aparecem datados depois disso foram achados mortos. Essa mudança de atitude, na verdade, resultam de questionamentos elaborados, longe de casa, à lógica de minha mãe. Contudo, penso que, dentro de mim, já tinha a vontade de não matar mais os insetos, afinal, nunca gostei dos estilingues dos moleques. Pela mesma razão, escondia a espingarda de meu pai quando meu primo ia em casa, ávido de matar os pobres anus que se dependuravam no taquaral.


Mas, naquela época, a natureza era tão abundante, que me dava a certeza de que tudo ficaria intocado para sempre. Um dia, pensava, poderia apresentar, vivos, a meus filhos, um a um, os insetos que coletei. Ainda tinha essa sensação quando finalmente busquei minha coleção em Botucatu, a qual se deteriorou por falta de cuidado e manutenção, nos longos anos em que não tinha moradia fixa. Ao ver meu megalóptero irrecuperável pela destruição dos corrodêncios, todas minhas coloridas libélulas coletadas na Bocaina destruídas, o meu enorme belostomatídeo transformado em poeira, ainda me consolava a ideia de que eles estavam por aí, para sempre, e que não fazia mal jogá-los fora, afinal, um dia, quem sabe, encontraria outro espécime morto, que substituiria o estragado da minha coleção. Vão engano.

Ninguém fala disso, mas a extinção dos insetos é real. Nos últimos tempos tem havido uma redução tão absurda na quantidade de espécies, que não saberíamos nem ao menos avaliar qual é a porcentagem atual dos ainda existentes. Borboletas comuníssimas, como a monarca, desapareceram. Que houve na sua longa e milenar rota do hemisfério norte para o hemisfério sul, com pausa para namoro e congelamento no México?  Aliás, para onde foram todas as borboletas? Hoje, no interior de São Paulo, vejo somente alguns pierídeos, um ou outro papilionídeo, mas sumiu a maioria dos licenídeos, inúmeros heliconídeos e centenas de outras espécies comuníssimas. Imaginem as que já eram raras! Faltam olhos treinados como os meus para perceber isso? Certo dia, indo a Maringá, vi várias espécies que cria extintas. A fauna entomológica paulista está indo cada vez mais para o Sul? Por quê?

Na capital, por exemplo, na USP e no Parque Trianon, vejo diversos insetos que não encontro há anos no interior de São Paulo. Um pouco de mata intocada faz esse milagre. Aliás, por incrível que pareça, entre os paredões de concreto da capital, ainda vejo animais que há décadas não se encontram no interior, cheio de canaviais e seus pesticidas. Não são só vaga-lumes, mas todo tipo de inseto. No cemitério da Consolação, por exemplo, há uma linda espécie de borboleta alaranjada que nunca havia visto antes, com as asas posteriores com uma espécie de cauda, semelhante à dos papilionídeos, embora não seja um. A primeira vez que a vi estava perdida dentro da padaria. Há mais de uma década vejo-a zanzando pelas árvores do cemitério e do atual corredor de ônibus. Na Cidade Universitária, perto do estacionamento, flagro periodicamente uma vespa Pepsis, que, por gerações, leva suas aranhas para uma mesma toca, num ritual que eu percebo há mais de vinte anos.



Mas cadê os elaterídeos tão divertidos, com seus pulos imensos, que eu gostaria de mostrar para meus filhos? Sumiram. Crisomelídeos, melonídeos, escarabeídeos e outros insetos tão comuns estão cada vez mais raros.

Entre os desaparecidos está o cerambicídeo Compsocerus violaceus, besouro vermelho com élitros metálicos, azuis ou verdes, com intrigantes pompons na antenas. Uma obra-prima da evolução. Há décadas procuro um em vão. Lembro que, para mostrá-lo para alguma visita em casa, quando criança, bastava ir ao quintal de meu avô, vizinho ao meu, e lá eu achava alguns exemplares em poucos minutos.

E assim andava eu solitário, nos últimos anos, sem meus amigos de infância e, sentado na sala dos professores, eis que vejo na soleira o meu saudoso cerambicídeo. Morto! Alguém, entrando na sala (espero não ter sido eu mesmo), pisou-o de maneira certeira. Estava lá esmagadinho. Coletei-o e já está espetado na minha coleção, todo torto e explodido com o pisão. O anterior, que datava de 1981 estava com a cor apagada e era de uma feiúra que doía. 

Mas fiquei imaginando se não era o último da espécie. Cada inseto que revejo depois de décadas me dá essa sensação. Sei que são danados, que se escondem. Milhões de anos de infortúnios lhes garantiram uma capacidade de adaptação muito maior do que a de nossa frágil e pretensiosa espécie, mas, mesmo assim, o pensamento de que será a última vez na vida que os verei é inevitável. Espero, porém, que não seja a última vez na vida de um ser humano que se importe com eles, pois o espetáculo da existência desses bichos é indubitavelmente algo muito mais admirável que a contemplação de qualquer pintura renascentista. Mas ninguém se importa com os insetos.

Segundo exegetas respeitadíssimos, entre eles, com certeza, o douto Athanasius Kircher diria que, antes do dilúvio, Noé não precisou recolher um casal de cada espécie de inseto em sua famosa arca, pois, afinal de contas, como todos sabiam - pelo menos até chatos como Francesco Redi, Lazzaro Spalanzani e Louis Pasteur provarem o contrário - os insetos empesteariam o mundo de novo, assim que as águas do dilúvio baixassem, brotando espontaneamente da lama. Pena que a abiogênese não seja verdade (ou que tenha sido verdade apenas uma única vez há 4,4 bilhões de anos): os insetos somem sim da face da Terra por muitos fatores (o homem é um deles), mesmo depois de milhões de anos de existência bem-sucedida. Como não têm alma, não posso consolar-me em revê-los nem mesmo no post mortem.


Voltando a casa, fui à internet e eis que tenho uma surpresa. Lendo este site: http://www.revistas.ufg.br/index.php/pat/article/view/2675 descobri que o citado besourinho de pompom nas antenas é uma praga de frutas cítricas em alguns Estados brasileiros. Os agrônomos são muito criativos: chamam-no de besouro-viola. Fiquei muito feliz com a capacidade de adaptação de meu amigo danadinho. Não havia frutas cítricas no Brasil, na época do descobrimento. Os europeus eram incapazes de entender que gabiroba, uvaia ou umbu são frutas também e tiveram de trazer maçãs, laranjas e uvas. Como as frutas nativas eram consideradas mato, privaram de comida milhares de espécies de insetos, que acabaram ou morrendo (quando eram seletivos demais) ou se adaptando, comendo essa comida importada das lavouras humanas. Nosso amigo resolveu atacar os laranjais. Ótimo.

Mas convenhamos: ele, tão simpático e bonitinho, não tem cara de praga.

Decerto, se é bonito, tem alma boa e não teve escolha, diria Rousseau, defendendo nosso bom selvagem. Assim é a vida: adaptou-se e, por isso, vai levar veneno na cabeça, com certeza. Aí, o homem chupa feliz sua laranja com veneno, mas livra-se do inconveniente besourinho de pompom.

Isso me fez lembrar uma reportagem atual (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cienciasaude/198960-a-invasao-das-pererecas.shtml), sobre a invasão da perereca antilhana Eleutherodactylus johnstonei em um bairro de São Paulo. Racional, um biólogo explicou a um jornal da TV que o anfíbio é prejudicial para as espécies nativas (pergunto-me quais são as outras espécies da ampla fauna de anfíbios do Brooklin...).

Ora, uma praga por definição é uma espécie bem-sucedida num ambiente diferente daquele de origem ou uma espécie autóctone que se adaptou e passou a se alimentar das plantas úteis ou belas, do ponto de vista humano. Os lindos aguapés brasileiros viraram praga em alguns lugares da África. Algumas pragas são maléficas, trazem doenças, mas o pobre anfíbio apenas quer cantar, atrair umas pererequinhas para namorar (sim, só os machos coaxam) e como são milhões, não deixam ninguém dormir à noite.

O anunciado holocausto batráquio justifica-se pelo fato de que são incômodas, pois os assobios, medidos em altíssimos decibéis, atravessam até mesmo as vidraças anti-ruído e, portanto, chateiam a espécie mais importante do Brooklin, um primata chamado Homo sapiens. 

Gás tóxico resolverá tudo, pois acabará com a invasora caribenha, mas, raciocinando com o biológo da entrevista, também matará as supostas espécies nativas que deveriam ser protegidas de sua invasão (para não falarmos dos insetos que servem de alimento para aranhas e passarinhos igualmente nativos ou não).

Daqui a pouco choramingaremos porque vivemos num deserto. Quem mandou as pererecas não serem como os pardais, invasores igualmente alienígenas mas quietinhos?


Ninguém quer ser incomodado, sobretudo por pererecas estrangeiras barulhentas, que não têm juízes para defender seus direitos coaxatórios. Nesses casos, face à indiferença e à falta de empatia, a pena de morte parece a única solução. E como são pequeninas, inofensivas e não sabem falar para se defender, quem é que vai ligar quando, após sumirem todas, juntamente com seu incômodo chiado intermitente parecido com o som de engrenagem, a paz se reestabelecer, para que possamos ouvir tranquilos as buzinas dos automóveis que passam pelas avenidas, cantando os pneus, com música de baixo nível em alto volume?

Detalhe sórdido: os anfíbios são a única classe de vertebrados em risco de extinção. Isso já é anunciado há anos. Talvez o Equador tenha ainda uma grande fauna, mas os sapos e rãs do Brasil estão com os dias contados. Com a seca dos últimos tempos, a situação piorou. Vi três sapos atropelados, fugindo de uma lagoa recém-seca na USP, sem ter para onde ir. Nesse sentido, matando as pererecas estrangeiras, só estaremos contribuindo para que os anfíbios sumam mais rápido de nosso planeta, para ficarmos sozinhos nele, comendo nosso hambúrguer e contemplando o pôr-do-sol diante do nosso lindo litoral poluído.  Na certa, mesmo com esse cenário, alguém jobinianamente dirá: como a natureza do Brasil é linda!

A espécie de perereca caribenha achou um jeito de sobreviver, não nas Antilhas, mas aqui no nosso proverbialmente acolhedor país, que a receberá, ao que tudo indica, com um banho de ácido. Assim tratamos as espécies que nos chateiam e abundam demais.

Mas calma, alertam os sapientíssimos repórteres de nossa imprensa: tudo será feito com cuidado, para não afetar a flora e a fauna nativas, igualzinho quando criamos uma hidrelétrica. Garantem-nos os jornais que especialistas, tal como Noé, coletarão exemplares de todos os animais da área a ser inundada, inclusive minhocas, proturos e dipluros que vivem sob as pedras ou nas profundezas do solo. Serão salvas, prometem os jornais, todas as plantas, inclusive o mais reles vegetal indeterminado e inútil à indústria farmacêutica. Anotarão certinho, sem a menor necessidade de voltarmos ao original, todas as inscrições rupestres e gravuras pré-históricas das imediações, mesmo as de cavernas subterrâneas desconhecidas. Todos os fósseis serão coletados, não se preocupe. Toda a vida será recriada num outro solo, com outro pH, num Ararate maravilhoso, com outro subclima. Lá os indivíduos se adaptarão felizes, num hábitat completamente diferente, sem estranhar nadinha. Isso é certíssimo. Como dizia Henfil: deu no New York Times!



Mas e se, céticos dessa competência maravilhosa, em vez disso, deixássemos as pererecas invadir toda a cidade? Teríamos apenas de conviver harmoniosamente com elas e com seu ruidoso rangido. Elas fariam parte do cenário, como a poluição, os carros e a violência, não menos incômodos. Talvez nossos ouvidos evoluíssem para adaptar-se ao barulho enlouquecedor, após longo período de adaptação, no qual teríamos de dormir de dia e trabalhar de noite. Humanos, pensem na sua própria evolução, let them be!



terça-feira, 25 de novembro de 2014

BERKELEY VERSUS NIKON

A discussão epistemológica desenvolvida na Inglaterra, sobretudo no século XVII é, para mim, a mais fascinante de toda a história da Filosofia. Nascida de um Bacon e antecedida de um Duns Scotus, o auge da polêmica, sem dúvida alguma, começa com Locke, contra o qual reagirão Leibniz e Berkeley. A mesma Inglaterra verá nascer o genial Hume e, séculos depois, Popper. No mesmo século de Locke temos Newton e, depois deles, futuros defensores, como o ácido Voltaire, e antagonistas, como Reid, defensor do senso comum. Na França, o pontapé da discussão entre racionalistas e empiristas havia nascido com Descartes e com o terrível Pascal.

Dos argumentos levantados pró e contra, tenho as minhas predileções, que não interessam nesse momento. Talvez seja inquestionável que o mais perturbador de todos esses nomes citados seja o bispo Berkeley (leia-se "Barkly"), cuja filosofia não teve sucessores à altura. Esse filósofo gerou e gera todo tipo de reação: consternação, espanto, admiração, escárnio e fingida indiferença. Todo mundo, até o comentarista mais neutro, acha que Berkeley viajou na maionese e, como que reagindo por um Abwehrmechanismus qualquer, sempre tem um adendozinho sobre o porquê do absurdo de seu raciocínio. Compreensível, mas ninguém pode acusá-lo de falta de lógica.


E é de fato surpreendente o que Berkeley faz com as palavras em seu pequeno livro. A primeira vez que li A treatise concerning the principles of human knowledge, senti-me caindo das nuvens. Os mesmos argumentos usados ali aparecem diluídos num esquisito diálogo entre as personagens Hylas e Philonous. Berkeley estava falando sério? Aparentemente sim. Aliás, é estranho fazer essa pergunta cética quando se trata do maior anticético do ocidente.

A grande questão que Berkeley ataca é a nova ideia newtoniana de que a matéria é algo real. Leitor, quer acabar com os argumentos de um ateu? Negue a matéria. Mas a realidade da matéria nos parece tão óbvia, que negá-la pareceria sinal de loucura. Obviamente, muitos ironizaram esse pensamento, mas estranhissimamente Berkeley era um empirista muito mais radical que Locke e Newton. Partindo das mesmíssimas premissas de Locke, chega a conclusões opostas. "Onde foi que cochilei?", pensa o leitor e voltará a reler em vão as passagens, procurando onde exatamente Berkeley sai do mundo concreto e familiar a todos nós para saltar num mundo completamente alheio à nossa intuição. Não , o leitor não encontrará onde está o pulo do gato. Isso porque o raciocínio de Berkeley é cristalino e terrivelmente lógico.

Berkeley era muito religioso e diz que sua obra é uma tentativa de conter o ateísmo. Imitemos seu raciocínio. O computador em que você está lendo este texto existe, certo? Como sabe disso? Oras, porque você o vê. E de fato, tudo que eu vejo, ouço, cheiro, eu penso que exista. Isso é uma verdade que parece indiscutível. E de fato, eu, você e Berkeley concordamos com isso. E se você, leitor, não concorda, não precisa nem continuar lendo. Você não pensa como Berkeley, pois acredita que está sendo enganado pelo deus maligno das ilusões que Descartes hipotetiza inicialmente para depois refutar no seu Discours de la méthode. Se as coisas que vemos e sentimos não são reais, deduziremos que Deus é mau porque nos engana o tempo todo. Deus seria o malin génie. Se você é fiel à ideia de um Deus bom, tem de acreditar que o que vê existe e que Deus não o engana. Você mesmo terá de concordar que tenho absolutamente certeza de que algo existe apenas quando estou perante algo que eu percebo existir. Esse ("ser, existir") é percipi ("ser percebido"), nos dizeres de Berkeley.


Mas dizer que algo existe não é dizer que algo é real, enfatiza Berkeley. O restaurante em que comi hoje existia totalmente enquanto eu almoçava nele. Voltando para casa, penso que continuará a existir. Tenho tanta certeza, que volto no dia seguinte, pois a comida era boa. No entanto, encontro-o demolido. Longe dos sentidos, eu acreditava tão fortemente que ele continuava existindo quanto no momento em que estava dentro dele, mas me enganava. Mas Berkeley não fala de as coisas existirem apenas para um eu cartesiano. A existência de algo não pode ser relativa.

Se este computador existe porque ele é percebido por mim, o mesmo valerá quando eu sair da sala e não mais o enxergar, pois lá, digamos, há outra pessoa que continua vendo-o. Ele existiu porque é perceptível, por mim ou por qualquer pessoa mas isso não diz nada sobre a sua realidade. Pode não ser mais percebido por mim, que estou na cozinha agora, mas continuará sendo percebido por essa pessoa que continuou na sala. Isso basta para dizermos que existe absolutamente. Portanto, o problema não é que algo existe somente se eu perceber, mas é preciso que alguém perceba. Se x é percebido por alguém, x existe. Até aí não parece que haja nenhum absurdo.



Mas alguém poderá pensar: bom, um século antes de Berkeley não havia microscópios e dois séculos antes, não havia telescópios, então não existiam bactérias antes da invenção dos microscópios e nem anéis em torno de Saturno antes de Galileu os ver? Aliás, essas grandezas infinitas, tão acima e tão abaixo de nossas percepções, entre as quais estamos ensanduichados atormentaram Pascal. Alguém, inspirado nessas questões, fez surgir aquela famosa perguntinha filosófica "se uma árvore cair numa floresta e ninguém à sua volta ouvir, ela fará barulho?" e suas variações (http://en.wikipedia.org/wiki/If_a_tree_falls_in_a_forest). Obviamente Berkeley responderia a essa pergunta que sim, a árvore existe, porque Uma Mente não-humana que a percebe  e essa mente pertence a Deus.

Assim sendo, o que há são apenas mentes percipientes e seres percebidos. A existência desses seres consistem em ser percebidos, sem necessidade de pensarmos na sua realidade material. Esses seres percebidos formam diretamente ideias nas nossas mentes sem qualquer necessidade de abstração: isto é o mecanismo do conhecimento humano, segundo o nosso filósofo irlandês.

Mas, estranho, se tudo que existe se resume, no raciocínio berkeleyano, a mentes (spirits) e ideias, a mente que percebe, por si só, seria também uma ideia? O que ela é se não consegue ser percebida por si mesma? Responde o bispo filósofo que as mentes não são seres perceptíveis, portanto não podemos conhecê-los, mas sabemos que existem. Como não temos ideia do que é a mente alheia, não me parece, à primeira vista, uma inverdade o que diz. Nessa rígida dicotomia entre mentes e objetos, a matéria newtoniana parece não encaixar-se em nenhuma das duas: a matéria não é uma mente e a matéria não é objeto. Não pode existir independentemente da relação mente-objeto se não for um objeto. A fonte disso tudo, de novo, aproveita Berkeley, perante nosso espanto, só pode ser Deus. O proselitismo não perde oportunidades.

Bom, se as coisas existem de fato - e Berkeley não o nega - só temos acesso a elas pela percepção que gera ideias na nossa mente. Nós não somos seres mas mentes percipientes. Nesse sentido, Berkeley acha inúteis conceitos como "abstração" e "realidade": that the things I see with mine eyes and touch with my hands do exist, I make not the least question. The only thing whose existence we deny, is that which philosophers call matter or corporeal substance. As coisas existem, mas a matéria, no sentido newtoniano, não existe, pois não é nem mente nem ideia. 

E ainda há mais: o mecanismo do conhecimento perpetrado pela mente não depende de nós. Não posso estar diante de uma maçã e querer ver uma pera. Nem mesmo uma pessoa que sofre de delírios tem esse poder de escolher o que quer enxergar. Não posso escolher entre enxergar e não enxergar. Se enxergo, enxergarei; se sou cego, não enxergarei. Conclui, portanto, que as ideias que aparecem na minha mente não são fruto da minha vontade, independente de serem reais, sonhos ou delírios. Concordaria com isso a senhora cega que tinha visões, mencionada por Oliver Sacks em seu livro Hallucinations,  devido à Síndrome de Charles Bonnet.


A argumentação de Berkeley parece absurda mas, num exame atento, mostra-se muito consistente. De fato, argumenta que as coisas existem para além do momento atual da percepção de um só indivíduo. Diz também que as coisas existem enquanto são percebidas e se não há quem as perceba, não deixarão de existir. E, por fim, concorda que as coisas existem na mente. A existência não depende da nossa vontade. Deus aí se ingere, no seu discurso, como detalhe necessário para a inexistência de uma matéria independente de uma mente percipiente.

Pensei na época que li Berkeley que raciocínios desse tipo só poderiam ser seriamente considerados depois dos problemas impostos pelos novos dados advenientes da invenção do telescópio e do microscópio. E de fato, o ateu Hume considerava Berkeley um grande gênio. Antes da invenção desses aparelhos, ninguém teria a necessidade de reagir contra o ateísmo dessa forma, isto é, insurgir-se contra a realidade da matéria usando tal tipo de argumento. Dizendo de outro modo, Berkeley jamais teria chegado a essa conclusão se não fosse a conquista tecnológica da época e se tivesse escrito algo antes dessas invenções, não seria considerado um grande religioso, mas um louco ou um herege.

Mas, ainda no terreno das conjecturas, imaginei que se uma outra máquina moderna tivesse sido inventada naquela época, teria dado ainda mais dor de cabeça a Berkeley, que amassaria os seus interessantes escritos e os jogaria no lixo. Por sorte, demorou mais alguns séculos para ser inventada e hoje temos o delicioso texto de Berkeley. A máquina a que me refiro é a câmera fotográfica.

Pois bem, se a foto capta a árvore, não sendo uma mente de um espírito, e, posteriormente, alguém que não viu a árvore, toma conhecimento de sua existência apenas pela sua reprodução fotográfica, ninguém negaria que essa segunda pessoa estaria de fato percebendo-a tanto quanto a primeira. Como explicar isso? Percebendo a imagem (fidelíssima, quando pensamos nas fotos atuais) de algo que existe, estabelecer-se-ia o conhecimento de sua existência, independentemente da existência de Deus ou não. Com certeza, Aristóteles não chamaria uma foto de mímesis. Uma foto não é um quadro , pintado por meio do esforço humano de uma representação, como são nossas memórias. É algo mecânico que depende de um clique. E isso tanto é tão verdade que o surgimento das câmeras pôs abaixo a pintura realista e a arte da pintura só não desapareceu porque surgiram impressionistas, surrealistas, pontilhistas etc. Uma foto, mesmo artística, está mais próxima da realidade do que uma ideia numa mente percipiente, convenhamos. E isso vale tanto para fotos banais quanto para fotomontagens ou fotos artísticas.

Assim sendo, o arrazoado racional parece sucumbir perante a verdade empírica trazida por Berkeley. Prova-se que o que existe é real. E se acha isso óbvio, porque é lógico que seja assim, você estará usando a palavra "lógico" num sentido muito popular. Não é graças à lógica e ao raciocínio que sabemos disso (porque nesse ponto Berkeley é impecável e conseguiu provar-nos o contrário), mas graças à nossa experiência, que diz que, de algum modo, a matéria independe de nossa percepção. E se não depende, por que seria necessário admitir uma Grande Mente que tudo vê? Newton, tão religioso quanto Berkeley, parece ter mais razão sendo contraditório do ponto de vista lógico. Os defensores do materialismo também. Essa intuição, nesse momento histórico, faz que Newton seja considerado um gênio.

Berkeley representa a última tentativa de argumentação racional da existência de Deus da história (tentativas que começaram na Idade Média). Só restará aos religiosos voltar à primitiva ideia de um Deus que dependa da fé tertuliana do credo quia absurdum e não que tenha algo a ver com essas bizarras discussões epistemológicas: que seria Ele, se não é um ser antropomórfico, nem uma supermente, nem o ser spinoziano que se confunde com a matéria, nem o ser que descubro fazendo o exercício de Pascal? Entende-se daí por que as portas do Iluminismo se abriram.




E quem continuará a conversa e nos responderá a essa pergunta será o religioso Voltaire, que dirá: eu não sei, você não sabe, ninguém sabe. Para ele, toda opinião humana é um espetáculo de sua tremenda ignorância. Mas ironicamente, diz-nos Voltaire, saber que ninguém sabe não nos impede de nos matarmos uns aos outros. Todos têm certeza de que estamos obviamente com a razão. E o que é a razão? Algo inútil hoje em dia.

A inteligência da qual a única espécie de hominídeo sobrevivente se vangloria e narcisisticamente imputa a nosso Criador aparentemente tornou-se inútil depois que se inventaram as armas. E isso faz muito tempo. O cérebro se desenvolveu para que o fraco animal pelado e sem rabo sobrevivesse às feras e às intempéries, defendendo-se com sua inteligência. Mas após a invenção da primeira arma, o raciocínio não vale mais nada. Quem tem razão sucumbe ao desarrazoado. De que adianta o cordeiro dizer: a te decurrit ad meos haustus liquor?

Moral da história: concordando ou não com Berkeley, eu não tenho respostas e você - surpresa! - também não tem. Mas talvez haja uma diferença entre sofrer ou não de autoengano... Você saberia dizer se já se enganou hoje? Não precisa responder, afinal isso é uma outra conversa. 

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

POR QUE O PORQUÊ ESTÁ NO AMANHÃ?

O hoje não está com nada. Já amanhã, aí sim! Veremos no amanhã a explicação de tudo. Certamente não será hoje o melhor dia da minha vida, este reles dia cheio de defeitos, que amanheceu nublado, não! Mesmo que hoje tenha sido um ótimo dia, um dia ainda mais belo, o mais belo de todos, virá amanhã (e quando amanhã for chamado de hoje, será o que hoje chamamos de depois de amanhã...). Sim, no dia subsequente, após nosso sono noturno, na aurora de uma promessa cumprida! O amanhã virá, após as agruras das infinitas vinte e quatro horas que nos atormentam. O hoje não vale nada. O legal é o amanhã. Portanto, não façamos nada de substancial hoje, pois o amanhã promete! Em suma, o hoje é fichinha perto do amanhã.



Esse raciocínio é universal, porque a esperança - esse adorável defeitinho de nosso cérebro - nos empurra a pensar desse modo. Com isso, o realmente melhor dia de nossas vidas escorre pelos nossos dedos sem percebermos. Só numa profunda depressão, num amargor nostálgico horrível, damos conta disso. Mas o pensamento de que amanhã será melhor que hoje é com razão a causa de nossas ansiedades e angústias, algo de que muitos outros animais parecem livres.

Nesses pruridos confusos que se costuma chamar de mente racional, descobrimos que há causas. Mas há causas e causas. Se eu chuto a bola e ela vai para a frente (e não para trás), diremos que o chute foi a causa do movimento da bola. Esse raciocínio é tão óbvio e tão entranhado no nosso raciocínio que parece que nada pode contradizê-lo. Contudo, o bicho humano é tão doido que já houve muitos que mostraram que a coisa não é assim.

Leibniz foi um desses doidos. O chute causou o movimento da bola, ok, mas eu tive a vontade de chutar antes do chute. Assim sendo, a minha vontade veio antes do chute e foi a causa dele. Mas de onde veio a minha vontade? Que a causou? Nesse raciocínio, muitos chegaram à identificação da causa primitiva numa palavra que explica tudo: foi Deus.

O universo é algo em expansão, mas para expandir seria preciso que tudo estivesse junto e se estava tudo junto antes do Big Bang, por que necessitou expandir-se? Se no primeiro momento tudo estava numa inércia estática perfeita, porque houve a necessidade de começar a mover-se? Qual teria sido o primeiro motor? Dirão alguns, seguindo o raciocínio aristotélico: Deus.


A vontade de Deus é o que faria as coisas acontecerem. É a causa primeira, o ato de criação. E o que aconteceu antes da criação já foi objeto de especulações infinitas. Leibniz resolveu enfrentar a questão com uma solução muito original. Para ele, existe Deus, obviamente. E Deus, no seu ato de criação, criou umas coisas muito difíceis de se entender, chamadas mônadas. As mônadas não seriam reles átomos físicos. Elas estão longe do lamacento e limitado mundo físico nos seus textos ensaísticos. Parecem-se como microdeuses gerados por Deus, tão complexos quanto Ele, mas limitados pelo fato de não serem Deus, afinal de contas, Deus não deixou de existir quando criou as mônadas, mas Deus seria a maior de todas as mônadas e tem algo que nenhuma delas tem, senão, oras bolas, não seria Deus. A criação das mônadas, portanto, não é exatamente uma mitose de um deus amebóide, pois cada um apresenta dentro de si algo da complexidade do universo. E as mônadas são simples e/ou complexas, tanto faz. Tudo é mônada, sim, num discurso que mais lembra as maluquices atordoantes da filosofia indiana. Pitágoras, Anaxágoras, Nicolau de Cusa, Giordano Bruno e Leibniz devem ter fumado a mesma erva, não é possível! Cada mônada representa todas as outras, contém em si o universo inteiro, é em si mesmo um microcosmo, contém todas as leis do universo, sintetiza toda a história do universo e  - essa é a melhor parte - está tremendamente isolada em si mesmo das outras mônadas.

Sim, pois se eu machuco meu pé e ele dói, Leibniz acha que não há uma relação entre o machucar meu pé e a dor que eu sinto, pois o meu pé já estava predestinado a machucar-se e minha mente desde todo o sempre estava sincronizada, para, nesse momento, sentir dor. Portanto, deduz Leibniz, não há causa entre uma coisa e outra. Não entendeu? Normal. Não há paradoxo algum em um único indivíduo ser louco e inteligentíssimo: o que disse Leibniz, ressuscitando a abandonada causa final e o que diziam pitagóricos, platônicos e neoplatônicos são apenas indícios da encruzilhada para onde leva a loucura da racionalidade. No entanto, isso é loucura e nada mais que loucura. Ídolos, diria Bacon.



O que me deixa intrigado era a capacidade de Leibniz ser do contra. Não é qualquer um que tem a pachorra de escrever um livro como Nouveaux essais sur l'entendement humain, que só é compreensível se lermos o An essay concerning human understanding, de John Locke. A paciência de Leibniz chega ao absurdo de contestar integralmente o texto de Locke. Não há problema algum em achar defeitos na obra de alguém, mas alguma coisa está errada quando não achamos nenhuma qualidade. E a obra de Leibniz é uma resposta quase frase a frase à obra de Locke. Quando Locke morreu, Leibniz desistiu de publicar a obra. Os motivos não são claros, mas especula-se que deve ter havido alguma piedade no seu coração para com o oponente defunto ou então as questões pessoais com a Inglaterra, como a acusação injusta movida pelos newtonianos contra ele a respeito do roubo intelectual que teria cometido, possam ter pesado nessa decisão.

Fato é que somente os alemães não ignoraram a excentricidade do sistema de Leibniz, que estava associada ao seu proverbial otimismo e a uma capacidade inédita à diplomacia. Devemos-lhe a gênese daquilo que hoje chamamos de equipes de trabalho acadêmico. Eu, hoje vendo o desenlace dessas questões, admito que há gênios de todos os tipos.

O que me intriga não é a proposta em si, que revela o lado genial e criativo de Leibniz, mas algo como que um reacionarismo à visão pragmática trazida pela nova ciência da época. Esse reacionarismo é constrante na história da filosofia. Os progressos da Inglaterra na área da Ciência eram inegáveis nessa época. A feliz conjunção das ideias pragmáticas de Ockham e de Bacon com a clareza metodológica cartesiana produziram ingleses seiscentistas notáveis, como Newton e Locke, os quais alavancariam as discussões pertinentíssimas de Berkeley, Hume e, mais recentemente, de Popper. E esses autores antigos não são ateus, pelo contrário, embora talvez alguns de seus seguidores o sejam. Por que havia então tanta reação a essas ideias?

Aparentemente foi uma descoberta científica que gerou toda a comoção da discussão da época: a invenção do microscópio. Esse instrumento atormentou Pascal e puxou o freio de mão de Leibniz. Não foram os únicos. Parecia terrível que houvesse insondáveis universos minúsculos dentro e abaixo do nosso universo visível, da mesma forma que o telescópio de Galileu já havia mostrado, acima dele, universos gigantescos sem uma ordenação compreensível, tal como profetizara Giordano Bruno. Uma onda de humildade assolava esses gigantes intelectuais do século XVII que pensavam do seguinte modo: estaríamos sendo presunçosos demais afirmando que são universais as leis e as verdades na nossa ínfima zona de existência? Seríamos arrogantes demais se pensássemos que somos independentes desse contínuo atordoante? Na verdade, o homem onipotente renascentista, que tenta reerguer-se com a ciência, paradoxalmente leva uma nova chapoletada do homem mísero cristão, a criatura expulsa do Paraíso, que usa, nesse golpe, instrumentos novos, criados paradoxalmente por inventores racionais.

Motivo para sentir-se mísero não falta ao homem e essa tendência já se vê desde que os gregos, outrora tão altivos na sua ágora indefectível, quando foram dominados pelo império macedônio e pelo raciocínio persa, trazido de roldão por Alexandre. De um só golpe, todos os cidadãos se tornaram súditos. "Não" - diz esse homem vencido - "a felicidade não pode mais ser atingida hoje". Desse momento de resignação nasce o paradoxo do amanhã augurante: "contudo, no amanhã" - continuavam - "voltaremos ao estado perfeito de outrora, quer depois que eu morrer (num paraíso, do tipo egípcio), quer durante a minha própria vida, com a liberação das amarras da servidão mediante o mistério do batismo (de sangue, como queriam os taurobolistas, ou de água, como faziam os cristãos)". Não parece à toa que essas ideologias tenham florescido em impérios e não em democracias, entre súditos e não entre cidadãos.


O súdito é visto como uma criança pelo seu lider (escolhido ou imposto), o qual assume o papel de pai que constrange suas vontades infantis. Um verdadeiro cidadão, envelhecido pela experiência, não tem líder, pois sabe que sua opinião é tão respeitável e defensável como a de outro qualquer. Qualquer prática que mistura esses dois polos entre a tirania e a democracia efetiva, é algo bizarro e cheio de defeitos. No entanto, a mistura entre tirania e democracia é a regra prática sobre a qual zanza a maioria dos homens do planeta. Mas quem pensa como Leibniz, tão próximo de seres protetores que o mimam, acredita que há um absoluto, um norte que justifique sua felicidade. Seres afeitos à mordomia de um pai superprotetor são profundamente contrários à ideia da inutilidade de um destino, da ausência real de objetivos, da loucura da existência de um norte preprogramado por um ser melhor e superior. Preferem autoenganar-se para ser reles humaninhos e reles cidadãozinhos, para gozar das benesses de um tirano. Esse norte, tão difícil de se desapegar por causa da nossa preguiça e inépcia mental, é invariavelmente algo bem definido e, nas mentes infantis de tantos adultos, algo extraordinariamente claro.

Diz-se que a criança aprende a mentir logo que nasce, pois precisa do autoengano para suportar esse mundo imperfeito, tão diferente da invariabilidade do líquido amniótico em que estava imerso, como que numa eternidade feliz. O corte do cordão umbilical é o primeiro trauma do recém-nascido, que é obrigado a comer e a respirar. A necessidade de mentir para si mesmo torna-se questão de sobrevivência para essa massa gordurenta chamada cérebro, tão afeita à decepção e à loucura. A sanidade é o objetivo preprogramado pela evolução que nos orienta para entender esse mundo novo pós-uterino. Mas o mundo não nos ajuda, então, entre os objetos de nossa sanidade há algo que se convencionou chamar de absoluto. E esse absoluto parece a razão de tudo.

Mas não é, infelizmente. Não há nada além do que existe. E diariamente confirmamos isso, a tal ponto de ser quase desnecessário comprovar essa sentença. Por que será, então, que é tão difícil que convivamos com essa verdade? O que parece certo e seguro é a infinita dimensão de nossa ignorância. Mas sermos ignorantes não quer dizer o mesmo que haver algo que seja mais sábio que nós. Se houvesse, teríamos matado a charada e teríamos deixado de ser ignorantes. Seríamos, pelo contrário, bem sabidinhos.

E entre os sabidinhos está Leibniz. Pena que sofria desse autoengano. Pascal, que era mil vezes mais religioso, aparentemente percebera isso, no entanto, sofreu ainda mais, durante metade da vida, com a autotortura incessante de seus pensamentos. Será então por isso? Teremos apenas duas escolhas: ou nos autoenganamos ou nos autotorturamos? Talvez. Mas se somos conscientes disso, a experiência já nos mostrou que nascerá uma terceira via.



Pensemos: somos limitados, não há nada além (a não ser o arrepiozinho vago daquele que nos contradiz furioso) e se houver ou houvesse, não seria necessariamente melhor, nem mais perfeito, nem a favor de nós. Seria apenas algo que ignorávamos e nada confirmaria o que já sabemos, pois não há indícios, no meio de nossa imensa ignorância, que já descobrimos e conhecemos o que ignoramos. Isso me é frustrante, mas se eu aceitar isso, sem me achar mísero ou desamparado e se pensar que, apesar de ridiculamente limitado, não devo ficar deprimido nem fazer o que é contrário aos princípios morais e éticos que me ensinaram e me constituem como o indivíduo social que sou, simplesmente descobrirei que não há um legislador supremo que exerce uma justiça real e incompreensível sobre mim. Serei livre, exceto pelos meus escrúpulos e devo responder por eles por não ser um ermitão. Quando chegar nesse grau de raciocínio, pensarei que, aí sim, serei, dentro do otimismo leibniziano, senhor de meus atos neste mundo atual. Se somos os senhores, seremos responsáveis pelo que faremos hoje e pelo mundo futuro que virá após nós. Civilidade e respeito não precisam emanar, por meio de hipóstases misteriosas, de um Bem absoluto. Sabermos que não somos pajeados, nem súditos de ninguém é a única forma de falar sobre um futuro. 

Voltando-nos, como agentes, ao bem individual e comum, não mais regidos por uma causa final, seremos melhores conosco, com o mundo que nos cerca e com o mundo que virá depois. A causa final é inútil, apesar de essa bizarrice aristotélica ter sido abraçada por tantos intelectuais e ressuscitada desesperadamente toda vez que surgia uma nesga de materialismo. Igualmente inútil é a hierarquia do ser. Plotino fumou do mesmo cachimbo que Platão. 

A busca da resposta no além foi e é sempre uma opção, apimentada com a revigorante afirmação de que nosso trajeto de vida é uma soma de escolhas divinas ou das melhores orientações para nosso livre arbítrio e não uma combinação hipercomplexa de casualidades e causalidades. Todavia, se somos como máquinas, devemos ser máquinas complexíssimas. Mesmo se aceitássemos isso, não deduziríamos necessariamente daí que alguém nos tenha construído. A metáfora do relógio pára aí: não há relojoeiro algum. Apesar de complexos, somos tão previsíveis quanto um pardal que cai numa armadilha, pois nossa mente é como que um arremedo simplicíssimo da realidade, essa sim, infinitamente mais complexa, e esse foi o bicho-papão que assustou o bebê recém-nascido, quando abriu os olhos e, ato contínuo, refugiou-se no primeiro projeto de um mundo de autoenganos. Foi essa realidade, a única que nos é possível, associada ao programa genético que nos faz entendê-la, que transforma o caos em ordem.

Mas atenção: trata-se da nossa ordenação e não a ordem de fato, não é a ordem divina, senão seríamos, aí sim, presunçosos demais. Trata-se apenas de uma ordenaçãozinha de uma espécie particular dentre as milhões que já existiram neste planeta, pela qual temos especial afeição a ponto de sentirmo-nos centro do mundo e parelhos às nossas divindades, ou seja, trata-se apenas da ordenação da espécie humana a que eu e você pertencemos.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A FUSÃO E O SER TRANSFORMADO

Eu tenho algumas obsessões que não sei explicar. Quando leio algo de que gosto, leio toda a obra. Foi assim com Platão, Maupassant, Dawkins e Sacks, autores que cito tantas vezes aqui. O mesmo se passa com cineastas: vi todo Kubrick, Truffaut, Jarmusch, Jonze e ultimamente descobri Cronenberg. 



Quando menino, lembro-me da propaganda do filme Scanners no cinema da cidade. Escolheram uma cena particularmente horrorosa, pintada num enorme painel, por um artista local. Naquela época, os filmes ficavam meses, às vezes anos, em cartaz. Tinha de desviar da praça onde estava o cinema, porque aquela imagem me deixava perturbado de medo. Nunca fui muito fã de filmes de terror. E aquele cartaz enchia minha fértil imaginação de medonhos vislumbres. Sempre fui impressionável. Quando leio, por exemplo, sofro com as personagens, muda-se o meu humor, vibro, choro, fico apreensivo: é uma catástrofe. Sempre foi assim. E filme de terror, definitivamente, não era comigo.

Numa crise feia de minha vida, na qual andava muito abatido, vi por acaso na TV um filme horroroso do Rob Zombie  (House of 1000 corpses). Por acaso, comecei a ficar fascinado com esse discurso visual que me era desconhecido. "Por que existe esse lixo?" Pensei. E aonde o diretor quer chegar com esse sadismo? Como que por encanto, uma espécie de catarse ao ver aquela coisarada doentia permitiu que assistisse com olhos mais neutros a cenas dos filmes de apelo exagerado, que pararam de me causar asco imediato. Perguntava-me por que alguns diretores são tão fascinados pelo macabro. Mais: perguntava-me por que isso fazia sucesso num mundo com violência superabundante, Dentro do cérebro humano que construiu pirâmides e sondas espaciais, que local ocupa, na arte, essa aberração da violência humana, que supera em muito a de uma piranha, de um crocodilo ou de felino feroz? Por que alguém sente fascínio com a representação cênica do sofrimento e do sangue alheio? E por que isso se transpôs para a vida, de modo que hoje, cenas violentas têm tantos acessos no youtube? Não consegui responder nem à metade dessas perguntas, mas tive algumas surpresas.

Responder a essas questões não é tão fácil. Mas uma coisa é verdade: o homem não é um superanimal, embora possa tentar sê-lo. O medo é algo que o acompanha desde que saiu do útero. Medo da luz ao abrir os olhos na hora do parto. Medo dos pais, tão pequenos éramos. Medo do mundo, rodeado de perigos.

Pássaros têm medo: basta aproximar-se deles e saem esbaforidos voando como loucos. O homem não tinha asas. Escorpiões têm medo, por isso, valem-se da sua cauda munida com um ferrão venenoso. Os animais mais frágeis são equipados de pelos urticantes, fazem barulhos assustadores, têm um aspecto muito feio. O homem é um macaco pelado. Não tem espinhos, não tem dentes afiados, não tem garras: mal tem pelo suficiente para se proteger do frio. Não tem asas para fugir voando. Está ali, frágil, submetido às intempéries, à escuridão e aos monstros do mundo. Precisou aprender a destruir tudo aquilo que lhe causava medo. E seu maior aliado foi seu cérebro.

Mas o cérebro evoluiu desigualmente. Indo para um lado e para outro nas suas transformações genéticas, deixou coisas arcaicas no nosso id, desenvolveu outras bem confusas em meio às nossas racionalidades esporádicas, como a capacidade de generalizar. Mas o medo estava lá, sempre. O medo de perder essa conquista evolutiva - o cérebro, mesmo com sua pouca racionalidade - sempre foi algo muito presente.

No caso do filme Naked lunch, de Cronenberg, o medo de sua própria obra faz que o escritor beatnik William Burroughs destrua as máquinas de escrever, que se transformam em insetos monstruosos (fico com pena da pessoa que ingenuamente comprou esse filme, pensando ser romântico por causa do título que deram em português: Mistérios e paixões). 

Foi o medo de ser traído que fez o pobre Seth Brundle entrar na máquina junto com a mosca que transformaria seu corpo. Aliás, os insetos e as articulações dos artrópodes inspiram os instrumentos ginecológicos de Beverly, um dos gêmeos de Dead ringers, com os quais acredita ter o dever de mudar as pessoas, belas por fora, mas verdadeiros monstros por dentro. 



Todas as personagens de Cronenberg são seres frágeis que destroem a si mesmo e aos de seu entorno. Max Renn tem medo de que o virtual vire real. A ninhada de Nola Carveth, usando o método psicoplásmico do Dr Raglan, defende-a de seus medos. O bicho falóide que sai da axila da paciente do Dr Keloid usa sua hospedeira para transmitir raiva vampirozumbimorfa e o caos. O medo torna  os protagonistas invariavelmente em dependentes de algo que não conseguem controlar, algo que vem de dentro de si mesmo ou que é arrastado para dentro de si: é assim em todos seus filmes. Seria uma fórmula repetida de Cronenberg ou apenas seu estilo? Seria algo que também nos quer transmitir? Palavras exatas que traduzissem sua mensagem poderiam parecer pesadas demais? Confusas demais? Seja como for, acaba por transformá-la em imagens, que chocam antes que possamos refletir sobre elas.

Aquilo que convencionalmente se chamou de horror em Cronenberg (por vezes, um horror tosco e fadado à superação cada vez maior das técnicas cinematográficas) tem uma função diferente da gratuidade do horror de tantos filmes (exceção feita talvez à Rabid). Definitivamente não é, como em Antichrist, de von Trier, um delírio visual, pois há uma coerência emque não vemos tão facilmente nos horror films convencionais. O roteiro cronenbergiano é morfológico e anatômico: fala-se do encaixe malfeito entre nosso corpo franzino e nosso espírito. 

Não quer o monstro meio-homem meio-inseto fundir-se com sua namorada grávida e tornar-se um só ser? Não é a mesma fusão que ocorre entre os scanners e entre os condôminos de Shivers, infectados por algo que mais parece um Ophiocordyceps unilateralis para humanos? A consciência da monstruosidade é um ponto a mais nas suas obras. Não tem o pobre Spider vergonha de si mesmo e da verdade que está escondida em suas teias? De que adianta a fuga? As pessoas que saem do condomínio fechado, encabeçadas pelo Dr Saint-Luc, promovem o inevitável, do qual é impossível fugir. Dizem que sobreviver é fugir conscientemente da destruição, mas há quem una mais a dicotomia da libido e da morte do que os malucos que se arrebentam nos carros em Crash? Não caminha Eric Parker para longe da sua segurança em Cosmopolis? As personagens bizarras que aparecem na tela de seus filmes sintetizam a situação de nossa mente humana dividida como os gêmeos de seu filme: mente contraditória, megalomaníaca e autodestrutiva. A fusão transforma o homem num ser especial, segundo Cronenberg. Mas necessariamente se trata de uma transformação para melhor. É apenas uma alternativa à fragmentação da evolução, que igualmente caminha a passos largos sem qualquer teleologia. 




Da mesma forma que Spinoza se insurgiu contra a dicotomia cartesiana, dando a entender que não há uma dualidade entre as substâncias (a famosa dicotomia da res cogitans e da res extensa), mas que esses dois lados - corpo e alma - são apenas modos de expressão de uma única substância (à qual teimosamente chama de Deus), enxergo na mensagem confusa dos filmes de Cronenberg a denúncia visual da assimetria e uma tentativa de neutralização entre o físico e o psíquico. Um verme criado em laboratório, um tumor causado por sinais de TV ou uma droga alteram o corpo da mesma forma que a própria mente pode modificá-lo. O mesmo faz o indecoroso plug que liga almas humanas a joysticks semivivos, por meio de cabos que lembram cordões umbilicais, no esquisito eXistenZ. Seria essa fusão a new flesh do seu ainda mais estranho Videodrome? Olhando bem de perto, elementos modificadores são constantes em todos seus filmes. Não se deve esquecer que a lubricidade é inerente à essência desse ser misto, cujo parasita é dono de nossa vontade e do grupo que nos rodeia. A ciência e o cientista se misturam nos experimentos, os quais vêm, por sua vez, de uma mente alterada. Ou, então, criam uma mente diferente da anterior. É nesse paradigma de perder-se dentro da sua própria ideia que eu consigo entender o enigmático e irrecuperável destino de Pascal.

Então, perguntaria o crítico lacônico que não concorda com essa minha breve análise e se pauta pelo gosto-não-gosto twitteriano dos dias de hoje: se há tanta verdade, escondida na trama de seu enredo, por que seus filmes costumam misturar-se nas estantes com quaisquer filmes banais de terror? Por que a estranheza nos faz pensar que estamos diante de algo que despicientemente chamamos de trash? Por que tanta gente não separa o joio desse repasto frumentoso? Nesse ponto, sinto que alguém com essas indagações me quereria espetar com a verdade nua de que meus olhos não são feitos de material distinto dos que também vêm o mesmo que eu vejo, o que soaria como acusação de exercício retórico e vácuo, um verdadeiro non sequitur desnudado por quem me armaria a cilada, subitamente transformado em  filósofo empirista.



Responderia, com a mesma fleuma do Freud de A dangerous method: talvez algo nos impeça de reconhecer naquelas personagens estranhas um pouco de cada um de nós, a saber, algo que é comum à espécie e é pouco honroso ao nosso autotítulo de rei da bicharada. Talvez diluídos na selvageria real e no pouco esforço de sermos super-homens, sucumbiremos para sempre no torvelinho dos nossos abismos, sem que ninguém nos alerte. Quando poucos nos mostram algo de substantivo, como Cronenberg, tapamos nossos olhos e dizemos "isso eu já vi" e transformamos a revelação em adjetivo. Mas não: na verdade não vimos. Para ver de fato, é preciso pensar. E imagens não nos deixam pensar, pois nos arrastam a uma zona agitada em que a fria lógica não reside. 

Por que então Cronenberg apostou em imagens, fadadas ao envelhecimento, num mundo em que o ineditismo e a qualidade da imagem foram progressivamente tornando-se mais necessários que a água à nossa sobrevivência? Seria a tese do próprio dr O'Blivion de que a tela da TV é a retina dos olhos da mente e faz parte da estrutura física do nosso cérebro? Por isso, nas mãos de Cronenberg, a imagem, antes bidimensional, pulsa, adquire ares de ser vivo e tridimensional? Essas perguntas eu não sei responder. 

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

ONDE ESTÁ A FÉ?

Tinha talvez uns sete ou oito anos e ia com um galãozinho de alumínio para a casa de uma prima materna buscar o que se chamava naquela época "leite cru", aquela delícia não-pasteurizada proveniente da vaca particular dessa parenta. Aliviado por não ter encontrado um cachorro que sempre avançava em mim nessa tarefa diária (os pais não eram tão superprotetores como hoje), passei diante da Igreja Menino Deus e fiz automaticamente meu costumeiro nome-do-pai. Nesse mesmo momento, veio-me uma ideia muito clara à minha mente: "E se Deus não existir? Estarei fazendo esse nome-do-pai à toa?". Horrorizado comigo mesmo por causa do pensamento herético, fiquei com vergonha e não acreditava que isso pudesse ter surgido à minha mente. Só podia ser algo diabólico que teria infundido isso em mim.

O ambiente em que vivia era muito religioso. É verdade que meu pai nunca foi uma pessoa muito ligada em religião, apesar de meu avô, um curandeiro de mesa-branca, ser famoso em Botucatu e, segundo alguns, "um santo". Minha mãe, ao contrário, como todos seus nove irmãos, nunca foi indiferente à religião, um dos temas mais comuns entre as rodas da minha família. Contava que o pai dela, um andaluz católico meio fanático, todos os dias, fazia-os rezar o terço, com um cinto sobre o joelho. Bastava algum tio meu mais novinho começar a rir ou cutucar o irmão ao lado e a lambada vinha certeira. Em seguida, obrigava que todos recomeçassem a reza. O resultado dessa tortura diária era esperado: ninguém virou ateu, mas cada tio meu passou para uma religião diferente e foram poucos que permaneceram no catolicismo. Meu avô, porém, continuou até o fim com suas convicções, a ponto de um dia quase conseguir rasgar ao meio a minha Enciclopédia Barsa quando minha mãe lhe mostrou algo de que não gostou sobre um papa medieval.

De início, minha mãe era católica também. Na verdade, todos éramos quando cometi a heresia involuntária. Irriquieta com as contradições que via na igreja de Roma, começou a frequentar centros espíritas, Seicho-no-Ie e, por fim, virou Adventista de Sétimo Dia. Quando morreu, havia sido batizada nessa denominação. Quem a converteu foi minha professora particular de alemão, que se dizia judia, mas ao mesmo tempo era Testemunha de Jeová e adventista. A professora Charlotte, após o falecimento do marido, vendeu tudo e mudou-se para Israel, local onde convictamente cria que deveriam estar os justos, arrebatados no juízo final. Não sei o fim da professora Charlotte, mas que eu achava isso tudo excêntrico, ah, isso achava. De qualquer forma, minhas irmãs hoje são ainda adventistas e eu me sinto indiretamente responsável por isso.




Mas voltemos a mim. Batizei-me e fiz minha primeira comunhão na Igreja Católica, mas não fui crismado. Ainda bem jovem engracei-me com uma moça bonitinha da Igreja Presbiteriana, filha adotiva do pastor e muito moderna para a época. Sim, essa foi a minha grande motivação para frequentar as escolas dominicais, onde não achei o ritual tão mecânico quanto o católico, mas vi nos estudos bíblicos uma espécie de embrião filosófico que me atraiu, coisa tão rara na cidade em que vivia. Em época de Ditadura, com disciplinas como OSPB e Educação Moral e Cívica, convenhamos, discussões sobre a literalidade das passagens bíblicas em grego e hebraico, tidas em toda essa atmosfera como de autenticidade inquestionável, era um grande avanço para uma mente curiosa como a minha. Adulto, nunca deixei de admirar as arquiteturas das igrejas católicas e a antiguidade heteróclita dos seus ritos.

Antes de ser protestante, estava imerso na supersticiosidade de minha mãe, que tinha planos para mim desde antes de eu nascer, talvez com inveja de sua xará Virgem Maria e de seu filho prodígio. Queria que eu fosse mais ou menos como eu acabei nascendo, mas parece que não pensou nas consequências de moldar um filho à sua imagem e semelhança. Entre algumas revelações (não me lembro se em sonho ou consultando alguma cartomante) ela dizia que eu seria padre antes de morrer. Depois que eu me for, por favor, leitor, dê um jeito de contar-me se isso se realizou.

Um dia, bem criança, vi umas luzinhas esquisitas sobre o altar durante a missa, as quais ninguém mais via. Mais de trinta anos depois, graças ao livro Migraine, de Oliver Sacks, descobri que eram escotomas (ontem mesmo tive um lindo), mas, para minha mãe, as luzinhas eram inquestionavelmente um milagre. A narração na boca dela adquiria um sabor andaluz-caipira inconfundível, a ponto de preferir a versão dela do milagre à minha, mais racional, que parecia tão prosaica.

Milagres eram constantes na minha vida: certa vez apareceu no culto, do nada, a menina por quem tinha um amor platônico imenso e que não dava a menor bola para mim (ou dava e eu era tímido o suficiente para acreditar que não merecia). Por uma coincidência incrível, eu havia rezado para que ela se convertesse e, sem explicação alguma, ela se converteu de fato, na mesmíssima igreja que eu frequentava. Pensei como seria bom se a paquera secreta continuasse no céu por toda a eternidade.

Continuei frequentando a Igreja Presbiteriana e fiz até minha profissão de fé. Foi triste, porque ninguém da minha família foi. Na véspera, minha mãe, já adventista, contou a duas irmãs de igreja, que se abalaram até a minha casa, a fim de provar-me, por A mais B, que se eu fizesse isso, iria direto para o inferno, porque afinal a própria Bíblia deixa claríssimo nas leis de Moisés que o sábado é o dia sagrado e não o domingo etc. Uma dessas religiosas era uma geneticista: nunca entendi como podia compatibilizar as duas coisas, mas, enfim, o coração tem razões que a própria razão desconhece, dizia Pascal. A tentativa foi boa, mas não desisti, apesar de ter sido uma noite torturante: não dormi um segundo e, quando fiz minhas declarações públicas no culto, não sentia mais nenhuma vontade de estar ali. Parecia-me insuficiente que Deus testemunhasse o que estava fazendo, sem que nenhum ente querido me fizesse companhia naquele momento importante de minha vida.




E toda noite eu rezava, de joelhos, às vezes chorava, pois meu grande pedido era que minha mãe sarasse da glomerulonefrite que a torturou a vida toda. Mas não foram poucas as vezes que me sentia ridículo naquele movimento solitário, falando com um Pai que não respondia ou se mostrava insensível à decadência paulatina da saúde da dona Maria. Se Deus me respondia, era por enigmas e charadas indecifráveis. Sentia-me mais sozinho do que na solidão eterna do meu quarto no porão onde estavam meus vidros de química, minhas pedras, minha coleção de insetos e o gambá que eu mesmo empalhara. Era constante a sensação que minha voz durante as preces apenas ecoava na minha cabeça e não havia deus nenhum que me escutava. E ficava mal de pensar assim.

Li a Bíblia inteira pelo menos três vezes durante esse período e pretendo um dia lê-la em hebraico e grego, se tiver tempo. Minhas leituras eram sempre diferentes das dos pastores com quem convivia. O versículo que mais me intrigava era o de Efésios 2:8 "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus". Ok, o texto é ambíguo, como muitas outras passagens, pois "isto" pode ser tanto a graça quanto a fé, mas sendo a fé: que poderia eu fazer? Se Deus dá a fé a quem ele quer, pois isso está dentro de seu plano inconcebível para nós humanos, por que não me dava, se eu era tão aplicado, se eu era bom, enfim, se eu queria ter fé? Seria uma tortura, certamente, se continuasse pensando nisso para sempre: eu queria acreditar, mas não conseguia, pelo menos não acreditava de verdade, de todo o coração, não acreditava para valer. Há uns espertinhos que dizem que isso é um dilema fácil de resolver: basta que nos convertamos na hora da morte e tudo se resolve. Para mim, isso é quase o mesmo que a aposta de Pascal, que diz que se acreditarmos e estivermos errados, não perderemos nada, mas se acreditarmos e estivermos certos, seremos recompensados e, por outro lado, se não acreditamos e estivermos certos, também não perderemos nada, mas se não acreditarmos e estivermos errados, seremos julgados e condenados para toda a eternidade. A esse dilema, Dawkins nos pergunta "suppose the god who confronts you when you die turns out to be Baal", piada pronta, utilizada para o Porta dos Fundos: https://www.youtube.com/watch?v=t11JYaJcpxg

Era justamente isso que me incomodava. Eu não queria dar uma de espertinho com o Deus da minha família. Eu queria ter a fé sincera, como todos eles tinham. Queria ser coerente. Não queria ser idiota de tentar enganar um ser tão poderoso e onisciente dizendo que cria, não crendo. Queria crer de verdade. Parece que Pascal conseguia fazer isso quando se entregava às ladainhas. Os mantras obnubilam o nosso lado racional, essa maldição do pecado original. Mas eu sempre gostei do raciocínio e por mais que lesse filósofos que provassem a existência de Deus pelo intelecto, jamais me sentia convencido. Ou se tem fé, ou não se tem e eu, definitivamente, tinha nascido sem ela. Uma pena.

Nunca foi fácil admitir isso. Hoje vejo tantos que se dizem neo-ateus com orgulho. Eu sempre fui ateu contra a vontade e tinha vergonha disso. Hoje não mais: para mim, essa questão é indiferente. Como perseguem, roubam e matam em nome de Deus, penso que o engajamento do ateu moderno não é de todo despropositado. Contudo, não acredito em quem me diz ter virado ateu lendo The God ilusion de Dawkins. A função maior desse livro, a meu ver, é ajudar a assumir-se ateu, parar de dizer que é agnóstico ou de ser contraditório, como os ateus que acreditam numa "força" maior.

Desde que saí de minha cidade, ao ler os gregos, vi semelhanças tão grandes entre pagãos e cristãos que foi difícil manter a fé da minha família. A fonte das palavras que amamentaram minha alma e que diziam ter nascido com Cristo já aparecia séculos antes de seu nascimento: via-me desarvorado. Estudando a história, deparei-me com coincidências tão grandes que não foi possível continuar acreditando nem na originalidade da mensagem bíblica, nem na verdade única, nem nas qualidades extra-humanas das divindades, nem na causa final, nem em mundos invisíveis tão parecidos com o nosso, nem em livros sagrados que permanecem inalterados por milênios. Parece que via em tudo a limitação do homem como uma marca inegável.




O homem não sabe voar, mas deu um jeito de construir aviões. Criou submarinos, foguetes, bombas, decifrou enigmas de milênios, erigiu monumentos admiráveis, criou a escrita e técnicas incríveis de arte, soube descrever em palavras sentimentos e relações difíceis de analisar.

Sejamos justos; não foi o Homem, mas um ou outro ser humano especial, porque os demais apenas repetiram seus passos e, na maior parte das vezes, repetiram bem mal.

Mas tirando esse pequeno detalhe, podemos dizer que o homem cresceu enquanto espécie no planeta quando aumentou sua potência destruidora, quando se impôs sobre as demais espécies. O homem é um portento, mas está naquela zona intermédia de que nos fala Pascal, ensanduichado entre dois infinitos, um apontando para a imensidão do universo e outro, para o mundo subatômico. Nesse sentido, é apenas um intervalo entre o contínuo da realidade.

Mas se pensar nisso deprime, como aconteceu com Pascal, não penso que tampouco deva fazer-nos perder o rumo, pois o único mundo que conhecemos é o nosso e não o gigantismo das galáxias, nem o interior das veias da perna de um ácaro. Qual o problema se não somos onipresentes? Nunca fomos e nunca seremos.

Seria o mesmo que sofrer infinitamente por não ter nascido libélula ou por não ter nascido em outro país ou em outro planeta. Temos saudade, por acaso, da época de quando não existíamos? Por que lamentar quando deixarmos de existir? Para que tanto consolo, imaginando uma Cocanha privée, um paraíso no post mortem? Não basta que vivamos o dia de hoje e que nos toleremos, que não nos matemos, que sejamos enfim pacientes uns com os outros? Com ou sem religião, há intolerância com a raça, com o credo, com a cor do outro. Com ou sem religião, as pessoas se matam. Com ou sem religião, não somos civilizados e lançamos frustrações no convívio com todos ao nosso entorno.

Diferentemente do que diziam alguns gregos e foi adotado pelo cristianismo, aprendi que não preciso amar meu inimigo, nem perdoá-lo de coração, mas não devo odiá-lo, pois isso não fará bem nem a mim nem à sociedade que me vê odiando. Simplesmente devo ignorar o ódio que nasce no meu coração e no dos outros. O ódio é algo tão natural quanto o amor, mas um ser que se diz racional deveria saber controlá-lo para não se parecer com uma fera acuada. Acredito que é importante que não nos odiemos, mesmo que façamos isso a partir do vão orgulho de sermos os seres racionais que pensamos ser (mas não somos), haja vista a força imensa que fazemos para manter nossa racionalidade.

O homem é sim um portento, mas há limitações intransponíveis. Jamais lerá a mente do outro. Jamais contornará a morte. Jamais deixará de envelhecer. Jamais impedirá tudo o que o constrange. E o pobre homem se constrange com tudo. Sua curiosidade não tem fim e sua ignorância é imensa. Por isso, paradoxalmente, tem tanta certeza de tudo que não sabe. E quanto mais ignora, mais tem certeza sobre o que ignora. E dessa certeza nascem soluções que se parecem muito com o próprio homem.

Nessas horas, penso que o homem não é um portento maior do que qualquer outra espécie que tenha sobrevivido ao teste da seleção natural: não é menos fascinante que uma gaivota, que uma anêmona, que um besouro rola-bosta. Cada espécie tem suas capacidades que são inimitáveis por outra espécie. Que diferença faz se a nossa capacidade inimitável é uma consciência que nos tortura? Que diferença faz que vençamos todos os demais seres, plantas ou animais, que superemos as dificuldades dos climas, que voemos até o espaço? Não venceremos as nossas espécies rivais desarmados, não superaremos indefinidamente as intempéries, não voaremos indefinidamente rumo ao infinito. Mas esse sonho, que se consubstancia em imagens, crenças, medos, lendas e outras quimeras numa infância muito tenra, é o que deve ser vivido, segundo alguns.




Então se me perguntarem o que eu sou, que devo responder? Que sou ateu? Mas uma vez batizado católico, continua-se católico até a excomunhão e eu não fui excomungado. Então sou um ateu católico. Mas eu também fiz profissão de fé na Igreja Presbiteriana. Então sou um ateu católico presbiteriano. Mas dizem que uma mulher judia transmite o judaísmo aos filhos e a mãe da mãe da minha mãe, segundo a lenda familiar, era uma portuguesa judia. Então sou um ateu católico presbiteriano judeu. Vejo que não posso mais rir da minha pobre professora Charlotte. Os rótulos são as coisas mais ridículas que o ser humano criou. 
E se fôssemos felizes com nossa ignorância, desencanados com nossas dimensões e com nossos limites dessa zona intermediária, se deixássemos para lá a enfadonha questão de que morreremos certamente, se pensássemos melhor nas consequências de estragar o nosso entorno, se deixássemos o ideal e tentássemos consertar o real de uma forma equânime e justa, se tentássemos não ferir ninguém e não nos arrastássemos à tentação paranoica de acreditar que de um além proveniente da zona que nos foi negada pelo acaso da espécie surgirá algo melhor ou pior que nos surpreenderá? Não teríamos economizado uma energia cerebral enorme para fazermos o que nos dá prazer e talvez até sobraria tempo para darmos prazer aos outros? Por que então esse cérebro temeroso nos perturba com escuridões que não existem mais há milênios, com doenças que não nos matam mais, com tigres dentes-de-sabre que já demos um jeito de extinguir desde que somos os soberanos do planeta? Qual é a utilidade da fé? Serve para o desespero físico ou existencial? Queremos sermos enganados por nós mesmos? Se isso diminui o desespero, só posso acreditar quão frustrado se sente Dawkins em acreditar em vão que tudo isso poderia ser superado pela racionalidade. Na verdade, talvez o brilhante cientista não se deu conta de que a fé, que reside nos nossos miolos, é mais uma tentativa maluca que a evolução nos aprontou, algo ziguezagueante que aportou em nós, como tantas outras coisas estranhas e inúteis que sobrevivem no nosso corpo e na nossa mente.

Por isso, o fato de eu não ter fé pareceu-me sempre algo estranho, como se uma daquelas pessoas que sofrem por não ter medo de nada. Um ser sem fé como eu é uma espécie de alexitímico perante o desconhecido. Se pudesse comprar um pouco de fé no mercado, comprava. Penso que tudo seria mais fácil e todos procuram facilitar suas vidas. Talvez, ao envelhecer, perdendo neurônios, ela apareça em algum canto sombrio do meu cérebro e se ajuste em alguma esquina de meu raciocínio. Mas, como em tantas outras ocasiões da minha vida, por enquanto, ainda estou sozinho, sem a companhia dela.

domingo, 6 de julho de 2014

O VALOR DE UMA CONVICÇÃO

Após refletirmos muito, chegamos sempre a uma espécie de iluminação, que nada mais é que o doloroso óbvio. Mas sempre me intrigou muito por que algumas obviedades não são unânimes. E buscando a resposta para isso no passado, vejo a gênese de muitos vícios de raciocínio já na Antiguidade. E como esses vícios se encontram em culturas diferentes, dificilmente associadas por algum elo criado por algum contato, não consigo deixar de imaginar que algumas dessas obviedades sejam naturais. O difícil sempre foi e será ver-nos como objeto de contemplação e dizer: voilà, isto é natural e isto é cultural. Aliás, esse assunto dá pano para a manga e penso que posso falar disso depois.
 
No momento me intriga a convicção em si. Quando me convenço de algo não posso afirmar que aquilo seja óbvio para todos, mas que aquilo é óbvio para mim. E por que não é óbvio para todos, se o é para mim? Aqui está o mistério do provérbio "cada cabeça uma sentença". Ao mesmo tempo, os discursos relativistas e os céticos são irritantes. Parece que se seguirmos tanto Protágoras quanto Diógenes estaremos diante do nada, do absurdo que incomoda a vida, que precisa ser vivida a despeito de nossas convicções. Contudo, esses dois parecem que mais convergem no seu pensamento do que se opõem.
 
Como disse, temos uma vida e precisamos vivê-la. Isso é óbvio. Perante essa obviedade, Protágoras parece dizer-nos: por que a vivermos cheios de convicção? No mesmo acorde também nos indaga Diógenes de dentro de seu barril: por que não a vivermos sem convicção alguma? Tanto Protágoras quanto Diógenes tinham suas convicções e desprezavam as dos outros, que não tinham chegado a tal iluminação. Contudo, Diógenes a punha na prática, diz a lenda, ao passo que Protágoras ganhava a vida convencendo os outros de que sua convicção estava certa. Diógenes se incluía em tudo que afirmava, Protágoras não. Saber se Protágoras fazia isso conscientemente ou não é pedir demais dos fragmentos e dos testemunhos de sua prática. Diógenes dá-nos hoje a impressão de um louco; Protágoras, o de um  hipócrita, mas talvez estejamos sendo duros demais com ambos. Se Protágoras não era tão louco quanto Diógenes, com certeza também era alguém embriagado por sua convicção. Quantos não conhecemos assim?
 
 
 
 
Cumpre ainda prestar atenção no fato de que ambos os supostos antagonistas que descrevemos não eram contemporâneos e não poderiam nunca ter dialogado entre si. Protágoras é da geração de Empédocles, um pouco mais jovem que Parmênides, Anaxágoras e Zenão. Bem mais jovem que Heráclito. Protágoras tinha quase a mesma idade de Leucipo, a meu ver, seu maior antagonista, mas não de Demócrito. Também era mais velho que Sócrates. Platão mal tinha nascido quando Protágoras se foi. Por outro lado, entre a morte de Protágoras e o nascimento de Diógenes temos quase meio século, época em que floresceria o jovem Aristóteles.
 
Pois bem, já relatei outro dia que o que me impressiona em Parmênides é que, para ele, o pensamento também é um ser. Isso quer dizer que não só o vento, as pedras e as estrelas-do-mar são seres, nem que não só os elementos materiais e imateriais o são, mas que o modo como a nossa mente concebe essas coisas também o é. E isso explica sua convicção de que o não-ser não exista. Ora, não poderia existir mesmo, pensando desse modo, pois se pensamos no não-ser estaríamos, segundo seu modo de entender, criando um novo ser (ou seja, o pensamento) e o impensável não é algo sobre o qual não consigamos pensar. As aporias de Zenão, seu discípulo, são mais facilmente compreensíveis quando entendidas em uníssono com Parmênides. Se o pensamento é um ser, Aquiles nunca alcançará a tartaruga e ponto final. 
 
Reflexões similares devem ter impressionado Protágoras. Se o pensamento é um ser e o pensamento é tão diverso entre os homens, é impossível encontrarmos a verdade. Não haveria assim nem o bem nem o mal. Não há, raciocinando desse modo, nem verdadeiro nem falso. Enfim: Protágoras achou um jeito de viver a vida sendo sofista e deixar de lado uma convicção final, como tiveram os filósofos anteriores. Não é à toa que Protágoras afirma que as opiniões devem ser medidas pela utilidade: afinal, se não existe a verdade, tampouco existe a sabedoria e aquilo que para o saudável parece doce, para o doente parece amargo. O que os distinguiria é o fígado de cada um. Mas qual é o melhor fígado, se cada pessoa é um sistema independente a ponto de gerar pensamentos independentes? O fígado ideal não poderia estar nesse mundo, obviamente, como raciocinou  Platão mais tarde. Nascem então todas as obsessões do Ocidente e, com ele, o Cristianismo, fruto direto das reflexões gregas.
 
 
Mas, fazendo essa digressão, estamos novamente nos esquecendo de Diógenes: sem ele, o Cristianismo não teria esse ar cavernoso e tétrico que assumiu no início e que tanto assustava os romanos, impressionados com a nova religião que comia seu próprio Deus durante os cultos. Se Protágoras descobriu que a verdade não existe (e viveu bem, apesar disso, dando aulas sobre isso até ser expulso de Atenas), a voz de Diógenes se parecia mais com uma incômoda vuvuzela. 
 
Ideias filosóficas originais já vinham há muito do oriente, primeiramente jônico, com incríveis similaridades com reflexões de terras longínquas (como se entrevê lendo Laozi e Heráclito ou então, comparando as conclusões de Sidarta Gautama e do próprio Parmênides). Não se pode esquecer também do monismo crotonense, de substrato semelhante às ideias religiosas egípcio-hebraicas, visível desde os pitagóricos e escancarado por Xenófanes ou Platão (e tardiamente por Plotino, espécie de Kant neoplatônico). Essas ideias, combinadas e recombinadas, atingiam como um furacão o materialismo jônico que só sobreviverá em poucos, como Demócrito ou Aristóteles. Tentativas de síntese são poucas, mas se vê em Anaxágoras. Enfim, ler Descartes, quase dois milênios depois, lutando contra suas convicções provenientes quer de um génie malin terrível, quer da obviedade do real, nos faz entender que esse embate é antigo e que deveríamos refletir nele.
 
No entanto, esses embates salutares foram cedo abortados pela hipocrisia relativista, que sobreviveu à margem de Platão e de Aristóteles e ressuscitou sobretudo por causa do barril de Diógenes. O modelo dos grandes impérios orientais havia chegado ao Ocidente. De nada serviu o heroísmo de Leônidas no desfiladeiro das Termópilas, pois a alma grega já estava vendida. Era tarde demais. O pensamento persa, que remoera e simplificara o panteão alucinante das divindades indianas, vinha agora, fatal e desejado pelos gregos, na forma do maniqueísmo mais tosco e simplista. Os próprios hebreus preferiram Ciro e Dario a Nabucodonosor. O insidioso pensamento persa não era escrito, mas vazou pelos diálogos (como há muito já se fazia entre Oriente e Ocidente por meio de mercadores poliglotas e dos mercenários). O fim da pólis e o surgimento do império macedônio, que engoliu o império persa, serviu de modelo para os romanos, famosos caipiras da Itália que se assenhorearam do mundo. A primeira globalização estava em curso. O nascimento da Europa já dava os seus primeiros alvores e, daí, a conquista do mundo por ambiciosos que se diziam cristãos ou muçulmanos.
 
Pois bem, no meio dessas engrenagens que, aparentemente, poderiam ter sido paradas a qualquer momento por um acaso qualquer (se tivessem sido, gosto de pensar que hoje teríamos impérios astecas dando trabalho para a ONU), há figuras emblemáticas: vários jesuses e vários diógenes.
 
 
 
A noção de que existe uma Humanidade para além do tribalismo etnocêntrico e que o próximo deve ser respeitado na sua integralidade, a despeito das suas diferenças não é uma questão religiosa, mas propriamente filosófica e política, advinda da necessidade de convivência desse novo mundo que unia gregos e bárbaros. É um pensamento fácil, pois o contrário é sempre o convite à guerra e, portanto, indesejado. Como diz Camus "pestes et guerres trouvent les gens toujours aussi dépourvus". O império macedônio criou também a ideia do ser humano desprotegido e submisso, bem diferente daquela ágora fremente e arrogante que condenava ao degredo ou à cicuta. O modelo oriental de império, finalmente trazido por Alexandre, fez o civilizado sentir-se bárbaro, pois passou a ver o bárbaro como um irmão em nada pior, como faziam preconceituosamente até o tempo de Aristóteles. Por isso, os mercenários gregos admiravam as táticas de guerra persas e os romanos admiravam os gregos pela sua cultura. Cada vez mais viu-se o lado positivo do irmão bárbaro. A noção de amor ao próximo só é uma pequena decorrência, que deveria ser devidamente formalizada mais tarde, assim como fazem os manuais de auto-ajuda. Trezentos anos antes de Cristo, Epicuro aceitava nobres e não-nobres, livres e escravos, homens e mulheres em seu jardim. É devido ao Helenismo nascente e não ao Cristianismo que devemos a primeira ideia ocidental de que é preciso haver tolerância entre os homens. Quando Jesus pregou, isso já era consabido e divulgado como conhecimento geral da população, se não da região onde nasceu, de todo o entorno.
 
Também o batismo de João não era novidade. O centro do antigo poder político, antes traduzido como decisões próximas, como se via na atuação da Ágora ou de algum tirano. Agora, encontrava-se longe do cidadão, particularmente impotente às decisões da nova figura do imperador. Frustrado e deprimido, o cidadão, amarrado pelas novas leis sociais, pensava no renascimento de uma nova vida, mas não num renascimento pitagórico-platônico qualquer por meio da metempsicose, mas num renascimento maravilhoso, num mundo melhor e utópico. O renascimento da alma nesse mundo perfeito (e não mais no mesmo mundo defeituoso de onde proviera) era a única resposta possível ao desespero existencial da época. Mesmo não nascendo como escravos, todos eram subordinados ao poder invisível do império e não mais a um chefete democraticamente eleito ou a um tirano escolhido por consenso dos mais poderosos de sua cidade. A distância longínqua do líder fazia todos sentirem-se órfãos. O consolo do batismo que marcava essa nova vida nascera, portanto, como prática religiosa, seja por revigorantes e solenes banhos, seja por sangrentas práticas taurobólicas.
 
 
 
Esse contexto, no entanto, permaneceu plural até os exageros políticos de Santo Ambrósio. E a salutar divergência de opiniões, que ainda sobrevivia entre gregos e persas, sempre me faz pensar involuntariamente numa cena de filme bem ruim, Conan the Barbarian, que vi com meu primo no seu lançamento em 1982. Gostaria de rever a cena, a qual imagino existir de fato nesse filme, se não é mais uma pegadinha da minha memória. Schwarzenegger, bem fortão, limpando sua espada estava sentado com um peregrino (que não me lembro quem é) filosofando sobre religião. Alguém dizia acreditar nisso ou naquilo, mas aquele que ganha a discussão aponta o céu como sendo o maior dos deuses. E o céu da cena era imenso na tela do cinema, algo que realmente derrubaria qualquer argumento.
 
Pois bem, como vimos, esses discursos circulavam na época de Diógenes: o de que os seres humanos são iguais e o de que é possível renascer para uma outra vida melhor do que a porcaria em que vivemos. Mas faltava algo: o desprezo pelo conhecimento e o fanatismo, que acabaria com todo o blablablá grego. O grande marco do cristianismo foi opor-se à razão. Se não de forma acintosa e violenta, como fazia Taciano, Minúcio e Tertuliano, ao menos de forma equilibrada, como vemos num Santo Agostinho. De qualquer forma, todos os religiosos acreditariam que a fé é superior à razão senão não seriam religiosos. Mas para chegar a esse ponto, é preciso desqualificar a razão, tão procurada pelos gregos com ou sem lanterna. Por sorte, os filósofos realmente grandes nunca se convenceram totalmente da necessidade do aniquilamento da razão: Orígenes, Anselmo, Tomás, Descartes e mesmo Guilherme de Ockham entendiam a razão como um modo de chegar às verdades, uma vez que a ignorância e a intolerância ao racionalismo sempre lhes pareceram odiosas.
 
Mas como fazer isso? Desde a época de Fílon não era fácil o equilíbrio entre razão e fé nos livros bíblicos, que é um amontoado heterogêneo de textos escritos em línguas diferentes, em épocas diferentes e por autores diferentes. Poucos conseguiam defender a importância da dúvida, como Abelardo, pois era claro que ela provinha de Satanás, essa figura persa e tardia que mal aparece no Velho Testamento. Quando vejo um Roger Bacon afirmando que a verdade é filha do tempo, sinto que a dúvida e o ateísmo eram uma tentação sempre frequente no atormentado mundo medieval. Ainda mais atormentado quando os livros aristotélicos passaram da mão dos árabes para os sempre atrasados europeus que finalmente conseguiram lê-lo por meio de traduções em latim.
 
Pois bem, Diógenes não poderia ser cristão, por causa da época em que nasceu, mas dizia coisas parecidas com os futuros cristãos, por exemplo, que somente por meio de exemplos e de ações se chega à felicidade. Dava a entender também que devemos focar nossa individualidade (não como pensariam os cristãos, isto é, para salvarmos egoistamente nossa alma, mas para tornarmo-nos independentes dos outros). Seu modelo era o de Hércules. Diógenes escancarava seu total desprezo pelos prazeres, não porque os prazeres mundanos se opõem aos espirituais, pois essa distinção não existia ainda, mas falava apenas dos únicos prazeres que um ser humano pode experimentar enquanto vive, fazendo coro, nesse ponto, com os ascetas budistas e com São Francisco. Recusando a vida comum e coletiva, apontou-nos a redenção para uma filosofia pessoal, numa afronta total às regras sociais, atitude, aliás, de que também eram acusados os primeiros cristãos no tempo de Ambrósio. Sua parresía era na verdade uma chave para a liberdade e o prazer era visto como um obstáculo. Aceitando sua apatia, criava-se a singular situação de vermos o óbvio mas sermos indiferente a ele. Eis aqui o que mais liga a filosofia cínica (da qual Diógenes é porta-voz) das atitudes futuras (estoica, cética ou cristã). É impossível ler Marco Aurélio e não pensar num intercâmbio de ideias circulando oralmente, como na cena do anacroniquíssimo filme Conan.
 
Para esse mundo de poderes, de violências e de apatia ao óbvio, Aristóteles, contemporâneo de Diógenes, não era particularmente sensível. A maioria dos pensamentos aristotélicos permaneceram letra morta, até seu ressurgimento incômodo na Idade Média, tendo sobrevivido paralelamente entre os árabes.

Assim sendo, parece que há, no pensamento ocidental, dois tipos de convicção bem diferentes.
 
 
 
 
Um primeiro tipo de convicção se vincula ao óbvio e ao  racional (não necessariamente ao positivista), algo que paradoxalmente pode ser refutado pela própria razão (como quer Popper), mas que é obtido mediante perspicazes soluções controladas, as quais são tão esporádicas, que quase sempre são chamadas de geniais. Esse tipo de convicção, por vezes é provisoriamente destruída pelas ilusões provocadas pela limitação de nossos sentidos, no entanto, sai fortalecida, afinal, mediante os próprios sentidos e pela cognição humana, que nos fornece dados contraditórios sobre a matéria. Só na Inglaterra regicida, com Francis Bacon e com a salutar discussão iniciada por Locke e terminada com Hume, o europeu retomou lentamente o gosto por esse tipo de pensamento que já estava presente nos jônicos desde Tales. Podemos, antes dos ingleses, citar raros precursores admiráveis como Ramón Llull. Essa convicção nos fez compreender os saltos qualitativos na organização e na hierarquização dos princípios. Ainda que, por vezes, se diziam em franca oposição a Aristóteles, sempre estevem mais próximos do estagirita do que imaginaram.
 
O segundo tipo de convicção está no desprezo do óbvio. A ele se vinculam o pitagorismo, o platonismo (e não necessariamente o socratismo), o cristianismo, muitos renascentistas, Pascal e Spinoza. Mais natural, pois independente da razão policiada, converte-se rapidamente em obsessão pessoal ou social. Mais emocional, alia-se facilmente ao sentimento de desamparo humano frente a magnitude esmagadora do universo e à transitoriedade da vida, como em Rousseau. Como a raposa diante das uvas, diante desse espetáculo grandiosíssimo da vida que nos minimiza, voltamo-nos contra esse universo, negando-lhe poder e autocoroando-nos (assim como hoje fazem tantos nervosinhos munidos de arrogância intelectual, vaidosa e vazia diante da impotência colossal que nos oferecem as infinitas informações da internet). Recusando a própria vida, hierarquizam-se os fatos concretos não mais mediante o raciocínio, mas de maneira utilitária e muitas vezes tradicional, mas nada mais é, a meu ver, que a via mais fácil para as nossas certezas. Por muitíssimas vezes, essa atitude pareceu uma saída "racional" à questão das ilusões provocadas pela limitação de nossos sentidos. Mais surpreendente é vê-la exposta engenhosamente em filosofias reacionárias (ou convenientes) de personagens extremamente inteligentes como Berkeley, Leibniz, Hegel, para não falarmos de quase todos os filósofos modernos.
 
Associada a algum tipo de poder fanático ou a um excepcionalismo dedutivo, a verdade demagoga do segundo tipo de convicção torna-se por vezes uma arma mais perigosa do que o escancaramento das estranhas verdades obtidas por meio do primeiro tipo. Para mascarar esse poder terrível que detém em suas mãos, o segundo tipo vale-se muitas vezes do discurso renascentista da inquestionável superioridade humana e da manipulação emocional das consequências da desobediência à ordenação primitiva, que se não é abertamente divina, tem algo dela. Psicoanalisados de perto, revelam-se, no fundos, profundos medos nascidos no período infantil, os quais sobrevivem até o último suspiro.
 
Combinemos, meu amigo, que, como eu, se incomoda com o ceticismo radical: da próxima vez que dissermos que temos certeza de algo, perguntemo-nos de qual desses dois tipos de certeza estamos falando antes de proferirmos a próxima frase.