O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

O MÁXIMO IDIOTA (1999) (cap. I-IV)

Baltasar Creamundos
 
 
O MÁXIMO IDIOTA
 
Autobiografia
  
 
1999
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Baltasar Creamundos (1968-1999) é pseudônimo de José Joaquim Beligerante Manso do Rego dos Prazeres Soares Barbosa Lima e Silva Sobrinho. Nasceu em uma colônia indígena no alto Solimões e foi raptado por um naturalista belga que caçava neurópteros e se compadeceu da fragilidade do menino, que seria imolado como oferenda a um deus indígena. Quando chegou a Natal, o naturalista deixou o menino nas mãos de Ermengarda de Jesus, sóror-chefe do convento das Irmãs da Nossa Senhora do Parto Doloroso. O menino foi criado como mulher até a idade dos dezoito anos quando lhe foi revelado o verdadeiro sexo. Casou-se com Maria Epitácia Negrimelenas, que lhe apôs o sobrenome Lima e Silva. O sobrenome juntamente com uma rocambolesca árvore genealógica que provinha de Abraão, envolvendo diversas figuras fantásticas, desde reis, condes e barões até um pirata escocês de três braços foram inventados pela própria Ermengarda. Baltasar nunca soube que seu pai verdadeiro era o índio Ñaqyburema Papyrunganga, que também pouco se interessou pelo filho, mas recebe os direitos autorais de sua obra. Maria Epitácia morreu dois meses depois do casamento, ainda virgem, segundo relatos do próprio Baltasar. Apaixonado por Flamínia Tília do Vale, tenta raptá-la, mas volta para seu esposo Adamastor Vale da Tília. Baltasar escrevia compulsivamente, até doze horas por dia. Estocava quatro toneladas de escritos num galinheiro aberto, sujeito a intempéries inúmeras e à imundície dos animais, muitos dos quais estava durante sua vida em estado deplorável e ilegível. Um dia antes de sua morte explodiu o galinheiro. O pouco que sobrou foram fragmentos, reunidos em edição póstuma por Jesuíno da Paixão Redentora, seu único amigo, que publicou sem nexo nem ordem sob o título Neodadaismo acidental. A capa do livro, em que aparecem penas de galo, foi idealizada pelo artista plástico Manuel della Mattavendetta, pseudo-irmão de Baltasar. Baltasar salvou da explosão somente o Máximo Idiota, que aqui vem impresso. Ele mesmo justificou a exceção: “neste livro tenho uma síntese de todas as toneladas de papel que foram pelos ares. Neste livro sintetizo a mim e ao mundo, escarrando com deboche a seriedade da loucura ou desesperando-me diante da alegria que não me diz respeito”. Sobre o porquê da estranha atitude, explicou: “nunca fui com a cara do galo”. No mesmo dia, Baltasar engasgou-se com uma azeitona. Todas as tentativas de salvá-lo foram vãs. Suas últimas palavras: “Que saco! Estava tão boa aquela empada!”
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CAPÍTULO I

 

Gênesis

 



H

á muita coisa que não existe. E é tão fácil saber o porquê: o concreto é uma coisa muito difícil de entender, pois se encontra no limiar do óbvio, dentro da plena definição do normal. Por isso abunda mais o que não há. Não há a justa democracia, o sublime das explicações racionais, o sucesso do amor-livre. Nãoum deus-irmão, apenas um deus-amigo, um deus com o qual se une o interesseiro. O não-há reina sobre mim e sobre ti, assim como aquele círculo prateado que despeja sua luz tosca sobre nossos corpos. Círculo que se afigura perfeito devido à nossa imperfeição da visão. Assim como a ilusão de um momento que nunca chega, que nunca chegará, ao menos contigo. Círculo que lança sua bênção sobre nós, amaldiçoando-me particularmente. Sua cara prateada ainda parece que vejo. O arrepio daquele momento ainda parece que sinto. O quarto inunda-se com a luz tosca, luz que me faz definir pouco os objetos caoticamente arranjados. Tosca como o futuro que assinei sob sua bênção. O calor dos corpos ainda se sente. Quem não sentiria? Também sou comum, embora me esqueça sempre. Também sou animal: é isso que há. Mas não se procura entender o que é ser animal. Todos preferem contentar-se com o que não há. O animal que não é tão animal. Isso deveriam ser todos e o são. Por que eu não seria? Por isso sinto ainda o beijo suado no chão. Sobre nós, o que não há: a transcendência.

O amanhã estava assinado hoje, nesse momento. Como se o passado não houvesse. E há o passado... O amanhã estava naquela bênção-ameaça, amor obrigatório, incontestável, testemunhado por toda legião de seres que não há. Se queres, leitor, são demônios. Outros diriam que são deuses. Prefiro não classificar. Estavam ali, apesar de não existirem. Sua luz macia e luminosa tocava nossos corpos e sua delicadeza parece que ainda sinto. Também tenho dúvidas, leitor. Será que há o único do momento? Nunca mais revivi, ao menos. Reviverei? Certamente, o passado repete-se a todo momento. É incrível como não saímos nunca do lugar, apesar de andar tanto.

Mas não quero falar do futuro. Muito se falou sobre o que não há, e com muito mais propriedade do que eu poderia fazê-lo. Quero descrever aquela luz sedosa e ereta, que vinha direita da janela, sobre os corpos que se moviam. Estavam ali, sob ela, como se não pudessem estar em nenhum outro lugar. A luz poderia se espalhar, iluminar qualquer outro objeto, mas estava sobre nós... e pesava. Ao menos em mim pesava muito, embora eu flutuasse dentro duma bolha que me fazia não ouvir nada do meu arredor. Uma bolha?

Mas isso tudo não houve. O quenão foi ali. Está no papel, assinado. Está numa festa e em apertos de mão. Em champanhe, em compromissos civis. Isso há. Mas por que não falo disso? Não foi menos sublime. Ali também estavam muitos dos deuses, mas não todos, como na noite enluarada. Os corpos cheirosos daquele dia nem pareciam os mesmos deste dia banhado de suor. A aliança concreta quedeveras não tem comparação com o tudo que preenche o nada, que existe ainda mais do que a aliança. Aquilo é matéria, isso é matéria divinizada. Portanto, sobre a verdade embebida do não-há é que falarei, e não fui o primeiro. Haveria outro modo de fazê-lo?



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CAPÍTULO II

 

O Velho

 

A

o leitor, pouco se lhequem são esses corpos. A mim, não. Estão aqui, ao meu lado como a lembrança de alguém muito querido. Semprealguém muito querido, ou não? Querido por quem? Essa é a única pergunta de peso que te farei, leitor. Sim, porque o amor recíproco é a mais absurda das contradições. Antes do dia da conjunção, houve algo. Parece distante, pré-genético. Algo ancestral, arquetípico, longínquo. Um velho sentado lia com pervicácia e com a competência de sua letra de semi-alfabetizado. Esse ancestral lia sobre tudo o que não há naqueles livros embolorados. Devorava trechos, não importando se estava em língua estranha, incompreensível para ele ou para qualquer um. Do lado de fora, dois demônios. O rosto do velho está apagado entre suas imensas orelhas. A fala dele revela que um de seus pés está em margem segura e o outro afundado na lama. Desde o queantes da letra se percebe isso. Eu ao menos percebo. Velho relógio, que lança em mim o temor em forma de líquido cronometrado. O sem-sentido do velho sempre venerarei, assim como a desconfiança do inconcreto que se . A água benta cai suja sobre minha face. Vejo sua face irada, mas isso não tem a ver com o momento da varanda. Ele e os dois demônios estão fora. Não esperam: fazem o momento. O momento do triunfo da juventude. Sim, demoniozinhos pequeninos estão . Vê-se o fumaréu, ouve-se o estalido, que se torna estrondo por causa da longa corneta de concreto, cuja boca está na varanda. A pólvora fedida e o estrondo imenso desexorcizam o velho. Trazem-no para o que há, para afundá-lo ainda mais no que não há. Afinal de contas, é essa a função dos demônios. Esse velho agora tem mais uma prova que se mescla às que nunca existiram a não ser para ele. Como aquela prova, que houve, aquela imagem, esculpida em fruta roubada, armada qual um espantalho em seu quintal, criatura à imagem e semelhança dos demônios. Mete-se a foice naquela careta hedionda, esculpida no mamão, apaga-se a vela metida dentro da fruta, queimam-se as pernas e braços trabalhosamente amarrados, pulveriza-se, reza-se sobre a maldita aparição. Riem os demônios enquanto vêem o velho se afundar. Sim, uma vez dentro do não-há poucos podem escapar. Eu sou um deles. Saí de . Não conheço ninguém que tenha feito o mesmo.

Lembro-me da primeira vez que tentei sair. Levava um pote de leite nas mãos e uma igrejinha compeliu-me a persignar-me. Será que Deus existe mesmo? Engoli aquele pensamento a seco, sem o leite, persignei-me de novo. Era o Diabo que falara em meu ouvido? Não, mais tarde descobri que um daqueles demônios que torturara o velho tinha sido eu mesmo. Então quis segurar a mão do meu colega, mas era tarde. Há muito havia havido. Ri-me naquele momento, agora devo chorar. Não disse que sempre ficamos no mesmo lugar? Aquele velho está em mim, quando te vejo e te desejo. O cuitelo do fictício amante da esposa do velho não era fictício quando perseguia sua esposa. O choro da velha parece-se tanto com o teu gozo de amor. Acredito que está explicado o porquê desse amante estar entre nós. É meu convidado e tu, perplexa, me perguntas por quê. Agora entendo bem por que eu, demônio, quis vingar-me desse velho. Como pude perceber tão a tempo? Se deixasse para mais tarde, ele teria morrido sem minha vingança de antemão. Meu mandamento é este: vinga-te assim que puderes e prazerosamente. Eis a moral que deves extrair daqui e que me ensinaste. Vinga-te de mim, imploro. Mas me torturas: tua vingança é não me obedecer!



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CAPÍTULO III

 

O segundo demônio

 

Q

uem era o segundo demônio? Bem o sei, pois ainda o é, ao passo que eu não posso sê-lo. O segundo demônio vive em mim e, às vezes, o desejo, assim como ele sempre me desejou e talvez ainda me deseje. Por isso, a luta imensa e a necessidade de exagerar seu poder é tão grande entre nós. Agora, não tanto, porque não sei ser demônio. E como anjos não há, sou apenas alguém. Disfarço o demônio resignadamente. Consola-me saber que o dever tolhe o poder, jamais o querer. E esse querer ferve nas profundezas do dever. Sua superfície é lívida e tranqüila, mas da região bêntica está vindo uma explosão que levanta metros de sujeira. Não sou nem superfície nem explosão. Bóio nessa região intermediária que sentirá a terrível turbulência daqui a pouco. Mas e o demônio? Pergunta-me impaciente o leitor. que sei de tudo, não me contento com a onipotência. Quero também a ti, maldito leitor. Ou esqueceste das funções do demônio? Se não vais para baixo, meu colega, que pode estar a teu lado te levará. E farás companhia ao velho. Quanto ao segundo demônio, pouco sei, a não ser do desejo mútuo. Ele derrubava qualquer paliçada que obstasse seu caminho. Na sua procura pelo nada, diz ter arrombado a alma de tudo. Sofre muito, com certo prazer esse demônio. Primeiro, teve de mudar sua imagem magra e engordar, ficar atraente. É o que ele me diz a mim, que nada sei dele. Nem parece que se lembra daquele detalhe imenso que me pertencia e do qual se ria muito. Esse detalhe, leitor, pode ser o que quiseres. Desde o mais vil detalhe da carne, até o mais elevado dom da alma. Não tendo conseguido me usurpar, usurpou a um mais fraco e reina absoluto. Não poderia ser diferente. Agora mostra-me os altares que erigiu. Quebra alguns por capricho, pois quer mostrar-me que os tem. Como se dissesse: “faz o mesmo”. Erigi um altarzinho, até bem caprichado e ele derrubou o seu, que parecia cópia do meu, não fora levantado antes. Em seu lugar, construiu um monumento formidavelmente horroroso, ao qual tive de me render. Invejo-o do profundo das minhas entranhas. E ele, sabendo de minha inveja, finge sentir saudade do altar destruído e descreve-me cada momento da construção do horrível colosso, monstro hediondo e disforme, cujas pernas e mãos aos milhares se manifestam. Olhando o colosso, não se sabe para que lado parece ir. Quero levá-lo comigo, mas este não cabe no meu bolso, como tantas outras coisas que roubei ao demônio. Resigno-me a admirá-lo e uma dor me consome. não posso ser como o demônio. Se o fui, não reconheci minha chance. Minha vingança é escrever sobre o que ele me nega e para esse colega de carne e osso, sangue de meu sangue, dedico minha inveja. Ele esteve no dia do velho, mas não no dia da conjunção. Ele deveria ser meu futuro e estava nas entrelinhas, quando o luar nos abençoou, mas era engano meu. Apenas um caso de compreensão inadequada. Esse engano me acorrentou ao que há e agora não posso ser um demônio. Como vês, leitor, culpo o luar de não me deixar ser aquilo que jamais seria. Com ou sem luar, não seria demônio. Ë preciso ter o dom, que me foi negado por mim mesmo. Não, nem o velho, nem o demônio, nem o luar, nem tu sois culpados. Ele está ainda mais fundo, sob a explosão. Procuremos.



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CAPÍTULO IV

 

Doutores

 

L

indo um dia achou alguém o fato de o menino Jesus estar conversando com doutores da Lei. Eu sei quem é esse alguém. Hoje é fácil dizer seu nome. Sonhou para mim mesmo destino e construiu-o tijolo sobre tijolo. Se houve mais alguém além dela, está numa bruma tão cerrada que nada posso ver. Seu desejo se fez carne e fugiu desembestadamente. Tanto que quis pará-lo e não pôde. Essa carne, o primeiro demônio, esse desejo, sou eu? Desculpa-me, leitor, é claro que não sabes responder. Mas esse desejo era o dela mesma. Pode-se dizer que ela gerou ao que lhe foi vetado. Palavras geram atos, isso é a coisa mais óbvia que alguém pode pronunciar. Mas os atos ferem e a cura de nossas feridas é o futuro e o futuro faz-se, com amor ou sem ele. E vem na forma da vida, que carrega toda a culpa daquele que agiu. Dar à luz é vingar-se. Eu sou uma vingança e não consigo deixar de sê-lo. A hóstia no momento da comunhão odiosa daquela que gerou a vingança feriu toda sua língua. Queimou-a tanto, que quis vingar-se no último instante de sua vida. Quis sorvê-la de novo. Também desobedeceu a ordem que me gerou. Tarde demais descobriu que nada lhe podia ser vetado. Algo que com medo, digamos, pois não é fácil lutar contra nossa imagem no espelho. Se nada lhe tivesse vetado, eu seria o primeiro demônio, mas não o sou. Ela lançou-se no não-há, tão profundamente que nunca a pude seguir. Na beirada do poço via, por vezes, sua imagem rodando, rodando e era tão fundo que me impressionava que alguma luz ainda estivesse e que pudesse vê-la. Essa imagem me levou aos doutores. E foram muitos, muitíssimos, diria, tantos que nem ousaria especular um número. Nesse momento, a história se torna complexa. Mas falo de alguns a seguir. Agora cumpre lembrar-me daquele homem, estendendo-me uma cédula barata como recompensa de meu espetáculo. A figura girava, girava e o menino escrevia, escrevia. Amigo da escrita bustrofédica, diria alguém mais tarde. No momento queria ir na direção contrária à dos pais. Vingança? Vejamos mais tarde. Mas dizia instintivamente querer seguir seus passos, mas o contradizia a seqüência da prolação, previamente combinada, qual uma senha, que dava algo que um sentido passageiro àquela inutilidade. Uma nota de alguns cruzeiros. Isso realmente há. Quantos doutores havia? Pensas. Não te digo, leitor. O que importava então era a lousa repleta e a consciência da minha pouca animalidade. Incrível como tudo é simbólico. No momento, apenas era importante para o menino cumprir a profecia. Raptado, o menino percebera que sabia. Terrível momento. Fora numa pequena e inocente manifestação de um colega. Esse menino cruel pisoteou-o com sua arrogância. O sono suave e homogêneo retratado por aquele pequeno futuro amigo foi indesculpavelmente interrompido por uma fanfarra militar barulhentíssima. E nem sentido havia nessa fanfarra, feita apenas para impressionar. E conseguiu. Ei-lo entre os doutores. Quem era esse coleguinha? Impossível saber agora. No momento, o importante não era ele, era a profecia. E eu, isto é, aquele menino, tinha aquela missão. Vingou-se de mim algum dia? Não sei. Há pouquíssima chance de fazê-lo agora. Os doutores seguintes foram pálidas caricaturas daquele que estendia a nota, como verás. Para dizer a verdade, pouco importa quantos e quem foram. A profecia seria completada com ou sem ele. Quem determinou isso foi aquele padre. Aquele, que vetou aquela que me gerou. Parece-me que sinto o fundo do poço onde ela gira. Sim, cheguei ao fundo do poço. Há aqui embaixo um túnel. Muitíssimo escuro, diga-se de passagem. Não sei o que encontro . Certamente apenas o nada que é o tudo.
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(continua)