O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

ONDE ESTÁ A FÉ?

Tinha talvez uns sete ou oito anos e ia com um galãozinho de alumínio para a casa de uma prima materna buscar o que se chamava naquela época "leite cru", aquela delícia não-pasteurizada proveniente da vaca particular dessa parenta. Aliviado por não ter encontrado um cachorro que sempre avançava em mim nessa tarefa diária (os pais não eram tão superprotetores como hoje), passei diante da Igreja Menino Deus e fiz automaticamente meu costumeiro nome-do-pai. Nesse mesmo momento, veio-me uma ideia muito clara à minha mente: "E se Deus não existir? Estarei fazendo esse nome-do-pai à toa?". Horrorizado comigo mesmo por causa do pensamento herético, fiquei com vergonha e não acreditava que isso pudesse ter surgido à minha mente. Só podia ser algo diabólico que teria infundido isso em mim.

O ambiente em que vivia era muito religioso. É verdade que meu pai nunca foi uma pessoa muito ligada em religião, apesar de meu avô, um curandeiro de mesa-branca, ser famoso em Botucatu e, segundo alguns, "um santo". Minha mãe, ao contrário, como todos seus nove irmãos, nunca foi indiferente à religião, um dos temas mais comuns entre as rodas da minha família. Contava que o pai dela, um andaluz católico meio fanático, todos os dias, fazia-os rezar o terço, com um cinto sobre o joelho. Bastava algum tio meu mais novinho começar a rir ou cutucar o irmão ao lado e a lambada vinha certeira. Em seguida, obrigava que todos recomeçassem a reza. O resultado dessa tortura diária era esperado: ninguém virou ateu, mas cada tio meu passou para uma religião diferente e foram poucos que permaneceram no catolicismo. Meu avô, porém, continuou até o fim com suas convicções, a ponto de um dia quase conseguir rasgar ao meio a minha Enciclopédia Barsa quando minha mãe lhe mostrou algo de que não gostou sobre um papa medieval.

De início, minha mãe era católica também. Na verdade, todos éramos quando cometi a heresia involuntária. Irriquieta com as contradições que via na igreja de Roma, começou a frequentar centros espíritas, Seicho-no-Ie e, por fim, virou Adventista de Sétimo Dia. Quando morreu, havia sido batizada nessa denominação. Quem a converteu foi minha professora particular de alemão, que se dizia judia, mas ao mesmo tempo era Testemunha de Jeová e adventista. A professora Charlotte, após o falecimento do marido, vendeu tudo e mudou-se para Israel, local onde convictamente cria que deveriam estar os justos, arrebatados no juízo final. Não sei o fim da professora Charlotte, mas que eu achava isso tudo excêntrico, ah, isso achava. De qualquer forma, minhas irmãs hoje são ainda adventistas e eu me sinto indiretamente responsável por isso.




Mas voltemos a mim. Batizei-me e fiz minha primeira comunhão na Igreja Católica, mas não fui crismado. Ainda bem jovem engracei-me com uma moça bonitinha da Igreja Presbiteriana, filha adotiva do pastor e muito moderna para a época. Sim, essa foi a minha grande motivação para frequentar as escolas dominicais, onde não achei o ritual tão mecânico quanto o católico, mas vi nos estudos bíblicos uma espécie de embrião filosófico que me atraiu, coisa tão rara na cidade em que vivia. Em época de Ditadura, com disciplinas como OSPB e Educação Moral e Cívica, convenhamos, discussões sobre a literalidade das passagens bíblicas em grego e hebraico, tidas em toda essa atmosfera como de autenticidade inquestionável, era um grande avanço para uma mente curiosa como a minha. Adulto, nunca deixei de admirar as arquiteturas das igrejas católicas e a antiguidade heteróclita dos seus ritos.

Antes de ser protestante, estava imerso na supersticiosidade de minha mãe, que tinha planos para mim desde antes de eu nascer, talvez com inveja de sua xará Virgem Maria e de seu filho prodígio. Queria que eu fosse mais ou menos como eu acabei nascendo, mas parece que não pensou nas consequências de moldar um filho à sua imagem e semelhança. Entre algumas revelações (não me lembro se em sonho ou consultando alguma cartomante) ela dizia que eu seria padre antes de morrer. Depois que eu me for, por favor, leitor, dê um jeito de contar-me se isso se realizou.

Um dia, bem criança, vi umas luzinhas esquisitas sobre o altar durante a missa, as quais ninguém mais via. Mais de trinta anos depois, graças ao livro Migraine, de Oliver Sacks, descobri que eram escotomas (ontem mesmo tive um lindo), mas, para minha mãe, as luzinhas eram inquestionavelmente um milagre. A narração na boca dela adquiria um sabor andaluz-caipira inconfundível, a ponto de preferir a versão dela do milagre à minha, mais racional, que parecia tão prosaica.

Milagres eram constantes na minha vida: certa vez apareceu no culto, do nada, a menina por quem tinha um amor platônico imenso e que não dava a menor bola para mim (ou dava e eu era tímido o suficiente para acreditar que não merecia). Por uma coincidência incrível, eu havia rezado para que ela se convertesse e, sem explicação alguma, ela se converteu de fato, na mesmíssima igreja que eu frequentava. Pensei como seria bom se a paquera secreta continuasse no céu por toda a eternidade.

Continuei frequentando a Igreja Presbiteriana e fiz até minha profissão de fé. Foi triste, porque ninguém da minha família foi. Na véspera, minha mãe, já adventista, contou a duas irmãs de igreja, que se abalaram até a minha casa, a fim de provar-me, por A mais B, que se eu fizesse isso, iria direto para o inferno, porque afinal a própria Bíblia deixa claríssimo nas leis de Moisés que o sábado é o dia sagrado e não o domingo etc. Uma dessas religiosas era uma geneticista: nunca entendi como podia compatibilizar as duas coisas, mas, enfim, o coração tem razões que a própria razão desconhece, dizia Pascal. A tentativa foi boa, mas não desisti, apesar de ter sido uma noite torturante: não dormi um segundo e, quando fiz minhas declarações públicas no culto, não sentia mais nenhuma vontade de estar ali. Parecia-me insuficiente que Deus testemunhasse o que estava fazendo, sem que nenhum ente querido me fizesse companhia naquele momento importante de minha vida.




E toda noite eu rezava, de joelhos, às vezes chorava, pois meu grande pedido era que minha mãe sarasse da glomerulonefrite que a torturou a vida toda. Mas não foram poucas as vezes que me sentia ridículo naquele movimento solitário, falando com um Pai que não respondia ou se mostrava insensível à decadência paulatina da saúde da dona Maria. Se Deus me respondia, era por enigmas e charadas indecifráveis. Sentia-me mais sozinho do que na solidão eterna do meu quarto no porão onde estavam meus vidros de química, minhas pedras, minha coleção de insetos e o gambá que eu mesmo empalhara. Era constante a sensação que minha voz durante as preces apenas ecoava na minha cabeça e não havia deus nenhum que me escutava. E ficava mal de pensar assim.

Li a Bíblia inteira pelo menos três vezes durante esse período e pretendo um dia lê-la em hebraico e grego, se tiver tempo. Minhas leituras eram sempre diferentes das dos pastores com quem convivia. O versículo que mais me intrigava era o de Efésios 2:8 "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus". Ok, o texto é ambíguo, como muitas outras passagens, pois "isto" pode ser tanto a graça quanto a fé, mas sendo a fé: que poderia eu fazer? Se Deus dá a fé a quem ele quer, pois isso está dentro de seu plano inconcebível para nós humanos, por que não me dava, se eu era tão aplicado, se eu era bom, enfim, se eu queria ter fé? Seria uma tortura, certamente, se continuasse pensando nisso para sempre: eu queria acreditar, mas não conseguia, pelo menos não acreditava de verdade, de todo o coração, não acreditava para valer. Há uns espertinhos que dizem que isso é um dilema fácil de resolver: basta que nos convertamos na hora da morte e tudo se resolve. Para mim, isso é quase o mesmo que a aposta de Pascal, que diz que se acreditarmos e estivermos errados, não perderemos nada, mas se acreditarmos e estivermos certos, seremos recompensados e, por outro lado, se não acreditamos e estivermos certos, também não perderemos nada, mas se não acreditarmos e estivermos errados, seremos julgados e condenados para toda a eternidade. A esse dilema, Dawkins nos pergunta "suppose the god who confronts you when you die turns out to be Baal", piada pronta, utilizada para o Porta dos Fundos: https://www.youtube.com/watch?v=t11JYaJcpxg

Era justamente isso que me incomodava. Eu não queria dar uma de espertinho com o Deus da minha família. Eu queria ter a fé sincera, como todos eles tinham. Queria ser coerente. Não queria ser idiota de tentar enganar um ser tão poderoso e onisciente dizendo que cria, não crendo. Queria crer de verdade. Parece que Pascal conseguia fazer isso quando se entregava às ladainhas. Os mantras obnubilam o nosso lado racional, essa maldição do pecado original. Mas eu sempre gostei do raciocínio e por mais que lesse filósofos que provassem a existência de Deus pelo intelecto, jamais me sentia convencido. Ou se tem fé, ou não se tem e eu, definitivamente, tinha nascido sem ela. Uma pena.

Nunca foi fácil admitir isso. Hoje vejo tantos que se dizem neo-ateus com orgulho. Eu sempre fui ateu contra a vontade e tinha vergonha disso. Hoje não mais: para mim, essa questão é indiferente. Como perseguem, roubam e matam em nome de Deus, penso que o engajamento do ateu moderno não é de todo despropositado. Contudo, não acredito em quem me diz ter virado ateu lendo The God ilusion de Dawkins. A função maior desse livro, a meu ver, é ajudar a assumir-se ateu, parar de dizer que é agnóstico ou de ser contraditório, como os ateus que acreditam numa "força" maior.

Desde que saí de minha cidade, ao ler os gregos, vi semelhanças tão grandes entre pagãos e cristãos que foi difícil manter a fé da minha família. A fonte das palavras que amamentaram minha alma e que diziam ter nascido com Cristo já aparecia séculos antes de seu nascimento: via-me desarvorado. Estudando a história, deparei-me com coincidências tão grandes que não foi possível continuar acreditando nem na originalidade da mensagem bíblica, nem na verdade única, nem nas qualidades extra-humanas das divindades, nem na causa final, nem em mundos invisíveis tão parecidos com o nosso, nem em livros sagrados que permanecem inalterados por milênios. Parece que via em tudo a limitação do homem como uma marca inegável.




O homem não sabe voar, mas deu um jeito de construir aviões. Criou submarinos, foguetes, bombas, decifrou enigmas de milênios, erigiu monumentos admiráveis, criou a escrita e técnicas incríveis de arte, soube descrever em palavras sentimentos e relações difíceis de analisar.

Sejamos justos; não foi o Homem, mas um ou outro ser humano especial, porque os demais apenas repetiram seus passos e, na maior parte das vezes, repetiram bem mal.

Mas tirando esse pequeno detalhe, podemos dizer que o homem cresceu enquanto espécie no planeta quando aumentou sua potência destruidora, quando se impôs sobre as demais espécies. O homem é um portento, mas está naquela zona intermédia de que nos fala Pascal, ensanduichado entre dois infinitos, um apontando para a imensidão do universo e outro, para o mundo subatômico. Nesse sentido, é apenas um intervalo entre o contínuo da realidade.

Mas se pensar nisso deprime, como aconteceu com Pascal, não penso que tampouco deva fazer-nos perder o rumo, pois o único mundo que conhecemos é o nosso e não o gigantismo das galáxias, nem o interior das veias da perna de um ácaro. Qual o problema se não somos onipresentes? Nunca fomos e nunca seremos.

Seria o mesmo que sofrer infinitamente por não ter nascido libélula ou por não ter nascido em outro país ou em outro planeta. Temos saudade, por acaso, da época de quando não existíamos? Por que lamentar quando deixarmos de existir? Para que tanto consolo, imaginando uma Cocanha privée, um paraíso no post mortem? Não basta que vivamos o dia de hoje e que nos toleremos, que não nos matemos, que sejamos enfim pacientes uns com os outros? Com ou sem religião, há intolerância com a raça, com o credo, com a cor do outro. Com ou sem religião, as pessoas se matam. Com ou sem religião, não somos civilizados e lançamos frustrações no convívio com todos ao nosso entorno.

Diferentemente do que diziam alguns gregos e foi adotado pelo cristianismo, aprendi que não preciso amar meu inimigo, nem perdoá-lo de coração, mas não devo odiá-lo, pois isso não fará bem nem a mim nem à sociedade que me vê odiando. Simplesmente devo ignorar o ódio que nasce no meu coração e no dos outros. O ódio é algo tão natural quanto o amor, mas um ser que se diz racional deveria saber controlá-lo para não se parecer com uma fera acuada. Acredito que é importante que não nos odiemos, mesmo que façamos isso a partir do vão orgulho de sermos os seres racionais que pensamos ser (mas não somos), haja vista a força imensa que fazemos para manter nossa racionalidade.

O homem é sim um portento, mas há limitações intransponíveis. Jamais lerá a mente do outro. Jamais contornará a morte. Jamais deixará de envelhecer. Jamais impedirá tudo o que o constrange. E o pobre homem se constrange com tudo. Sua curiosidade não tem fim e sua ignorância é imensa. Por isso, paradoxalmente, tem tanta certeza de tudo que não sabe. E quanto mais ignora, mais tem certeza sobre o que ignora. E dessa certeza nascem soluções que se parecem muito com o próprio homem.

Nessas horas, penso que o homem não é um portento maior do que qualquer outra espécie que tenha sobrevivido ao teste da seleção natural: não é menos fascinante que uma gaivota, que uma anêmona, que um besouro rola-bosta. Cada espécie tem suas capacidades que são inimitáveis por outra espécie. Que diferença faz se a nossa capacidade inimitável é uma consciência que nos tortura? Que diferença faz que vençamos todos os demais seres, plantas ou animais, que superemos as dificuldades dos climas, que voemos até o espaço? Não venceremos as nossas espécies rivais desarmados, não superaremos indefinidamente as intempéries, não voaremos indefinidamente rumo ao infinito. Mas esse sonho, que se consubstancia em imagens, crenças, medos, lendas e outras quimeras numa infância muito tenra, é o que deve ser vivido, segundo alguns.




Então se me perguntarem o que eu sou, que devo responder? Que sou ateu? Mas uma vez batizado católico, continua-se católico até a excomunhão e eu não fui excomungado. Então sou um ateu católico. Mas eu também fiz profissão de fé na Igreja Presbiteriana. Então sou um ateu católico presbiteriano. Mas dizem que uma mulher judia transmite o judaísmo aos filhos e a mãe da mãe da minha mãe, segundo a lenda familiar, era uma portuguesa judia. Então sou um ateu católico presbiteriano judeu. Vejo que não posso mais rir da minha pobre professora Charlotte. Os rótulos são as coisas mais ridículas que o ser humano criou. 
E se fôssemos felizes com nossa ignorância, desencanados com nossas dimensões e com nossos limites dessa zona intermediária, se deixássemos para lá a enfadonha questão de que morreremos certamente, se pensássemos melhor nas consequências de estragar o nosso entorno, se deixássemos o ideal e tentássemos consertar o real de uma forma equânime e justa, se tentássemos não ferir ninguém e não nos arrastássemos à tentação paranoica de acreditar que de um além proveniente da zona que nos foi negada pelo acaso da espécie surgirá algo melhor ou pior que nos surpreenderá? Não teríamos economizado uma energia cerebral enorme para fazermos o que nos dá prazer e talvez até sobraria tempo para darmos prazer aos outros? Por que então esse cérebro temeroso nos perturba com escuridões que não existem mais há milênios, com doenças que não nos matam mais, com tigres dentes-de-sabre que já demos um jeito de extinguir desde que somos os soberanos do planeta? Qual é a utilidade da fé? Serve para o desespero físico ou existencial? Queremos sermos enganados por nós mesmos? Se isso diminui o desespero, só posso acreditar quão frustrado se sente Dawkins em acreditar em vão que tudo isso poderia ser superado pela racionalidade. Na verdade, talvez o brilhante cientista não se deu conta de que a fé, que reside nos nossos miolos, é mais uma tentativa maluca que a evolução nos aprontou, algo ziguezagueante que aportou em nós, como tantas outras coisas estranhas e inúteis que sobrevivem no nosso corpo e na nossa mente.

Por isso, o fato de eu não ter fé pareceu-me sempre algo estranho, como se uma daquelas pessoas que sofrem por não ter medo de nada. Um ser sem fé como eu é uma espécie de alexitímico perante o desconhecido. Se pudesse comprar um pouco de fé no mercado, comprava. Penso que tudo seria mais fácil e todos procuram facilitar suas vidas. Talvez, ao envelhecer, perdendo neurônios, ela apareça em algum canto sombrio do meu cérebro e se ajuste em alguma esquina de meu raciocínio. Mas, como em tantas outras ocasiões da minha vida, por enquanto, ainda estou sozinho, sem a companhia dela.