O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A FUSÃO E O SER TRANSFORMADO

Eu tenho algumas obsessões que não sei explicar. Quando leio algo de que gosto, leio toda a obra. Foi assim com Platão, Maupassant, Dawkins e Sacks, autores que cito tantas vezes aqui. O mesmo se passa com cineastas: vi todo Kubrick, Truffaut, Jarmusch, Jonze e ultimamente descobri Cronenberg. 



Quando menino, lembro-me da propaganda do filme Scanners no cinema da cidade. Escolheram uma cena particularmente horrorosa, pintada num enorme painel, por um artista local. Naquela época, os filmes ficavam meses, às vezes anos, em cartaz. Tinha de desviar da praça onde estava o cinema, porque aquela imagem me deixava perturbado de medo. Nunca fui muito fã de filmes de terror. E aquele cartaz enchia minha fértil imaginação de medonhos vislumbres. Sempre fui impressionável. Quando leio, por exemplo, sofro com as personagens, muda-se o meu humor, vibro, choro, fico apreensivo: é uma catástrofe. Sempre foi assim. E filme de terror, definitivamente, não era comigo.

Numa crise feia de minha vida, na qual andava muito abatido, vi por acaso na TV um filme horroroso do Rob Zombie  (House of 1000 corpses). Por acaso, comecei a ficar fascinado com esse discurso visual que me era desconhecido. "Por que existe esse lixo?" Pensei. E aonde o diretor quer chegar com esse sadismo? Como que por encanto, uma espécie de catarse ao ver aquela coisarada doentia permitiu que assistisse com olhos mais neutros a cenas dos filmes de apelo exagerado, que pararam de me causar asco imediato. Perguntava-me por que alguns diretores são tão fascinados pelo macabro. Mais: perguntava-me por que isso fazia sucesso num mundo com violência superabundante, Dentro do cérebro humano que construiu pirâmides e sondas espaciais, que local ocupa, na arte, essa aberração da violência humana, que supera em muito a de uma piranha, de um crocodilo ou de felino feroz? Por que alguém sente fascínio com a representação cênica do sofrimento e do sangue alheio? E por que isso se transpôs para a vida, de modo que hoje, cenas violentas têm tantos acessos no youtube? Não consegui responder nem à metade dessas perguntas, mas tive algumas surpresas.

Responder a essas questões não é tão fácil. Mas uma coisa é verdade: o homem não é um superanimal, embora possa tentar sê-lo. O medo é algo que o acompanha desde que saiu do útero. Medo da luz ao abrir os olhos na hora do parto. Medo dos pais, tão pequenos éramos. Medo do mundo, rodeado de perigos.

Pássaros têm medo: basta aproximar-se deles e saem esbaforidos voando como loucos. O homem não tinha asas. Escorpiões têm medo, por isso, valem-se da sua cauda munida com um ferrão venenoso. Os animais mais frágeis são equipados de pelos urticantes, fazem barulhos assustadores, têm um aspecto muito feio. O homem é um macaco pelado. Não tem espinhos, não tem dentes afiados, não tem garras: mal tem pelo suficiente para se proteger do frio. Não tem asas para fugir voando. Está ali, frágil, submetido às intempéries, à escuridão e aos monstros do mundo. Precisou aprender a destruir tudo aquilo que lhe causava medo. E seu maior aliado foi seu cérebro.

Mas o cérebro evoluiu desigualmente. Indo para um lado e para outro nas suas transformações genéticas, deixou coisas arcaicas no nosso id, desenvolveu outras bem confusas em meio às nossas racionalidades esporádicas, como a capacidade de generalizar. Mas o medo estava lá, sempre. O medo de perder essa conquista evolutiva - o cérebro, mesmo com sua pouca racionalidade - sempre foi algo muito presente.

No caso do filme Naked lunch, de Cronenberg, o medo de sua própria obra faz que o escritor beatnik William Burroughs destrua as máquinas de escrever, que se transformam em insetos monstruosos (fico com pena da pessoa que ingenuamente comprou esse filme, pensando ser romântico por causa do título que deram em português: Mistérios e paixões). 

Foi o medo de ser traído que fez o pobre Seth Brundle entrar na máquina junto com a mosca que transformaria seu corpo. Aliás, os insetos e as articulações dos artrópodes inspiram os instrumentos ginecológicos de Beverly, um dos gêmeos de Dead ringers, com os quais acredita ter o dever de mudar as pessoas, belas por fora, mas verdadeiros monstros por dentro. 



Todas as personagens de Cronenberg são seres frágeis que destroem a si mesmo e aos de seu entorno. Max Renn tem medo de que o virtual vire real. A ninhada de Nola Carveth, usando o método psicoplásmico do Dr Raglan, defende-a de seus medos. O bicho falóide que sai da axila da paciente do Dr Keloid usa sua hospedeira para transmitir raiva vampirozumbimorfa e o caos. O medo torna  os protagonistas invariavelmente em dependentes de algo que não conseguem controlar, algo que vem de dentro de si mesmo ou que é arrastado para dentro de si: é assim em todos seus filmes. Seria uma fórmula repetida de Cronenberg ou apenas seu estilo? Seria algo que também nos quer transmitir? Palavras exatas que traduzissem sua mensagem poderiam parecer pesadas demais? Confusas demais? Seja como for, acaba por transformá-la em imagens, que chocam antes que possamos refletir sobre elas.

Aquilo que convencionalmente se chamou de horror em Cronenberg (por vezes, um horror tosco e fadado à superação cada vez maior das técnicas cinematográficas) tem uma função diferente da gratuidade do horror de tantos filmes (exceção feita talvez à Rabid). Definitivamente não é, como em Antichrist, de von Trier, um delírio visual, pois há uma coerência emque não vemos tão facilmente nos horror films convencionais. O roteiro cronenbergiano é morfológico e anatômico: fala-se do encaixe malfeito entre nosso corpo franzino e nosso espírito. 

Não quer o monstro meio-homem meio-inseto fundir-se com sua namorada grávida e tornar-se um só ser? Não é a mesma fusão que ocorre entre os scanners e entre os condôminos de Shivers, infectados por algo que mais parece um Ophiocordyceps unilateralis para humanos? A consciência da monstruosidade é um ponto a mais nas suas obras. Não tem o pobre Spider vergonha de si mesmo e da verdade que está escondida em suas teias? De que adianta a fuga? As pessoas que saem do condomínio fechado, encabeçadas pelo Dr Saint-Luc, promovem o inevitável, do qual é impossível fugir. Dizem que sobreviver é fugir conscientemente da destruição, mas há quem una mais a dicotomia da libido e da morte do que os malucos que se arrebentam nos carros em Crash? Não caminha Eric Parker para longe da sua segurança em Cosmopolis? As personagens bizarras que aparecem na tela de seus filmes sintetizam a situação de nossa mente humana dividida como os gêmeos de seu filme: mente contraditória, megalomaníaca e autodestrutiva. A fusão transforma o homem num ser especial, segundo Cronenberg. Mas necessariamente se trata de uma transformação para melhor. É apenas uma alternativa à fragmentação da evolução, que igualmente caminha a passos largos sem qualquer teleologia. 




Da mesma forma que Spinoza se insurgiu contra a dicotomia cartesiana, dando a entender que não há uma dualidade entre as substâncias (a famosa dicotomia da res cogitans e da res extensa), mas que esses dois lados - corpo e alma - são apenas modos de expressão de uma única substância (à qual teimosamente chama de Deus), enxergo na mensagem confusa dos filmes de Cronenberg a denúncia visual da assimetria e uma tentativa de neutralização entre o físico e o psíquico. Um verme criado em laboratório, um tumor causado por sinais de TV ou uma droga alteram o corpo da mesma forma que a própria mente pode modificá-lo. O mesmo faz o indecoroso plug que liga almas humanas a joysticks semivivos, por meio de cabos que lembram cordões umbilicais, no esquisito eXistenZ. Seria essa fusão a new flesh do seu ainda mais estranho Videodrome? Olhando bem de perto, elementos modificadores são constantes em todos seus filmes. Não se deve esquecer que a lubricidade é inerente à essência desse ser misto, cujo parasita é dono de nossa vontade e do grupo que nos rodeia. A ciência e o cientista se misturam nos experimentos, os quais vêm, por sua vez, de uma mente alterada. Ou, então, criam uma mente diferente da anterior. É nesse paradigma de perder-se dentro da sua própria ideia que eu consigo entender o enigmático e irrecuperável destino de Pascal.

Então, perguntaria o crítico lacônico que não concorda com essa minha breve análise e se pauta pelo gosto-não-gosto twitteriano dos dias de hoje: se há tanta verdade, escondida na trama de seu enredo, por que seus filmes costumam misturar-se nas estantes com quaisquer filmes banais de terror? Por que a estranheza nos faz pensar que estamos diante de algo que despicientemente chamamos de trash? Por que tanta gente não separa o joio desse repasto frumentoso? Nesse ponto, sinto que alguém com essas indagações me quereria espetar com a verdade nua de que meus olhos não são feitos de material distinto dos que também vêm o mesmo que eu vejo, o que soaria como acusação de exercício retórico e vácuo, um verdadeiro non sequitur desnudado por quem me armaria a cilada, subitamente transformado em  filósofo empirista.



Responderia, com a mesma fleuma do Freud de A dangerous method: talvez algo nos impeça de reconhecer naquelas personagens estranhas um pouco de cada um de nós, a saber, algo que é comum à espécie e é pouco honroso ao nosso autotítulo de rei da bicharada. Talvez diluídos na selvageria real e no pouco esforço de sermos super-homens, sucumbiremos para sempre no torvelinho dos nossos abismos, sem que ninguém nos alerte. Quando poucos nos mostram algo de substantivo, como Cronenberg, tapamos nossos olhos e dizemos "isso eu já vi" e transformamos a revelação em adjetivo. Mas não: na verdade não vimos. Para ver de fato, é preciso pensar. E imagens não nos deixam pensar, pois nos arrastam a uma zona agitada em que a fria lógica não reside. 

Por que então Cronenberg apostou em imagens, fadadas ao envelhecimento, num mundo em que o ineditismo e a qualidade da imagem foram progressivamente tornando-se mais necessários que a água à nossa sobrevivência? Seria a tese do próprio dr O'Blivion de que a tela da TV é a retina dos olhos da mente e faz parte da estrutura física do nosso cérebro? Por isso, nas mãos de Cronenberg, a imagem, antes bidimensional, pulsa, adquire ares de ser vivo e tridimensional? Essas perguntas eu não sei responder.