O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

EVOLUIR SEM PROGREDIR

Ando chateado, pois desde que a revista em que escrevia foi extinta por causa da crise atual, perdi meu ritmo mensal ensaístico, tal como se pode ver pelas frequentes interrupções das postagens mensais de meu blog, mas planejo retomá-las ano que vem com a mesma periodicidade antiga. O dia-a-dia também se me mostrou bem cruel neste ano de 2015 e em janeiro já sabia que não haveria este ano em minha vida, tantas foram as atribuições, tarefas e compromissos de minha agenda.

Por causa da ressaca de 2015, que está já no seu fim, talvez deva escrever, por falta de melhor assunto, algo sobre uma micropolêmica surgida do conhecimento casual da pouca opinião que há sobre as minhas linhas. Já faz um bom tempo, uma amiga me disse que um amigo dela começou a ler meu blog e ficou chocado com algo que escrevi. Opiniúdos e opiniosos há por toda parte, mas o que me espantou foi que ela dizia que ele achara estranho que eu tivesse dito (talvez mais de uma vez) que não entendia Hegel. Um professor universitário não pode dizer isso, dizia. Claro que posso, ri.

Mas talvez por "entender" ele tenha entendido outra coisa. Sou obviamente limitado como todos o são, mas ao confessar não entender Hegel não quis dizer que sou limitado a ponto de não tentar entender o que Hegel diz. Pelo contrário, se me destaco por algo é pelo meu esforço para entender o outro, muitas vezes frustrado porque as regras do jogo proposto pelo outro, na maior parte das vezes, não são expostas, mas inferidas. Mas se é assim na vida, não é preciso que seja na exposição do filosofar.

Hegel me impressionou quando era jovem, mas hoje em dia, de fato, tirei-o de cima do pedestal do meu jardim dos grandes filósofos e coloquei-o no chão do lado do bebedouro dos passarinhos. Sem dúvida, trata-se de um filósofo com magnífica verve. Nietzsche também o é e nunca me incomodou, porque a proposta de Nietzsche é ser pura verve. Mas o que me chateava à medida que entrava no cipoal das imagens de Hegel é que ele queria querer me ensinar algo e ao mesmo tempo não queria que eu estivesse ali. Como não tenho talento para ser cuspido, perguntei-me sobre o porquê de sua atitude.


Qualquer um fica impressionado quando Schopenhauer azedamente chama Hegel de impostor. Não chego a tanto, até porque não o conheci pessoalmente para fazer esse julgamento. Nem é por isso que preciso tomar partido em relação a um dos dois grandes filósofos, tão diferentes um do outro. Não sei se Hegel foi um impostor, se reciclou ideias de Fichte, de Schelling e dos gregos que conhecia tão bem, fazendo-as suas. Se fez isso, por mais que o culpássemos por infringir o dogma romântico da criatividade, sua escrita continuaria tão original que não parece justo reduzi-lo plagiário. Quanto ao que sinto hoje em dia por Hegel, só posso apresentar sob a forma uma admiração murcha. Vejo-o a distância, tal como aconteceu com outras figuras e obras pelas quais minha primeva ignorância alimentava alguma admiração simbiótica. O meio dizia que Hegel era legal, eu concordava. Até que o enfrentei, com todo o respeito e com a melhor das boas intenções.

E não eram quaisquer pessoas que aumentavam em mim a promessa de encontrar na leitura de Hegel um portento: eram os escritores que mais me haviam influenciado e moldado meu modo de pensar. Penso que, indiretamente, até mesmo meu estilo, que julgo tão meu, veio indiretamente daqueles que amava, os quais por sua vez amavam Hegel. Aquela coisa de tese, antítese e síntese me arrepiava e me dava óculos para ver tudo, enquanto não havia lido Hegel de fato. Sim, pensava, Hegel bebera decerto em alguma fonte divina para ter tido essa ideia genial.

Quando descobri que tinha talento para epistemologia lendo e compreendendo Locke, Berkeley, Leibniz, Hume, Popper, entusiasmei-me. Cheguei a Kant e tive a real dimensão da minha limitação, pois Kant também me cuspiu de seu texto na primeira leitura. Não que Kant seja inacessível, não é isso. Tanto não é que voltei a enfrentá-lo e a cada releitura, entendo-o mais. Mas lê-lo de forma correta requer que sentemo-nos em silêncio excepcional e dediquemo-nos ao seu raciocínio. Trata-se de um pensamento muitíssimo sutil, algo como estudar uma língua completamente nova, como observar fascinantes detalhes por meio de um microscópio, como montar peças de um enorme quebra-cabeça. Kant, compreendido, dá-nos um sentimento de respeito reverencial misturado com medo ou espanto, algo que em inglês se diz awe. Impossível não pensar: como alguém pôde conseguir manter seu juízo de forma tão constante e direcionada? Kant devia ser um alienígena.



E o aspecto crescente do progresso, de Locke a Kant, não parava aí. Fichte, que dizia basear-se em Kant, antes da fase em que não estava com medo de perder seus cargos e começou a falar asnices germanófilas, criou um admirável sistema "kantiano" com foco no individual. De kantiano, o próprio Kant percebeu que não tinha nada, mas o que Fichte escreveu tem momentos admiráveis, de uma originalidade que beiram o lírico, não fosse de fato filosofia.

O que se segue, com Hegel, foi algo bem diferente. Explico: a dialética de Hegel prevê sempre um status quo, seu dramático aniquilamento e uma espécie de reconstrução dourada feita das ruínas do primeiro estágio com o que há de bom do segundo, ou seja, uma espécie de outro status quo novinho em folha, muito melhor que o primeiro. Essa visão positiva de progresso incomoda qualquer pessoa honesta.

Para que possamos engolir isso, temos de aceitar que a realidade não é mais substância alguma, mas apenas sujeito e espírito, daí a sensação de a filosofia hegeliana (e fichteana) não se assentar no mundo real: caminha e se transforma sem parar. Bom, Heráclito já tinha dito isso nas auroras do Ocidente. Até aí, morreu o Neves. 

Quando Hegel coloca a Religião após a formação do Espírito em sua Fenomenologia e dela extrai o Saber Absoluto, meio que desprezando a passagem da Lógica para a Mecânica, Física e Física Orgânica, ordenando, a seguir, seu produto numa nova sequência: Arte, Religião e Filosofia (sobretudo a filosofia alemã, especificamente a dele, se pensarmos no seu crescendum ininterrupto), aí uma pessoa sensata deveria atenuar um pouco sua admiração pelo grande filósofo, fechar o livro, pensar um pouco e perceber que está diante de alguém que está forçando a sua amizade com essas tríades que vêm de algum mundo plotiniano. Até mesmo Platão acharia isso um delírio.

Por que são sempre três e não sete etapas? E eis que Hegel se mostra, nesse seu raciocínio tortuoso e embriagado, antes de tudo, sob a veste de um grande orador, alguém que não conseguimos acompanhar sempre, pois entre etapas claras há sempre o levantar de uma fumaceira verbal que não nos permite seguir seu raciocínio. Aí vem as regrinhas dos exegetas: só entendemos a cientificidade de sua metafísica se dilatarmos alguns significados, se especificarmos outros, se aceitarmos seus paradoxos, enfim, se estivermos no mesmo mood de seu palavrório.

Mas se não estivermos, cometemos algum pecado contra o pensamento filosófico ocidental? 

No caso de Hegel, não basta projetar-se no momento histórico para entendê-lo como figura histórica. É preciso segui-lo como um discípulo segue um mestre, senão leva-se a pecha de grosseiro ignorante. Por mais louvavelmente aplicado, inteligente e obcecado que Hegel tenha sido com suas questões (na verdade, tanto quanto qualquer outro filósofo deva ser), vejo que em Hegel, assim como na maior parte dos que o sucedem, habitava (e habita) o sentimento de impor que o que afirma é algo maior do que o de seus sucessores, ou porque eram mais limitados ou porque eram muito esquecidiços. 

Ora, ninguém poderia mais negar as questões e as soluções levantadas por Kant, mas o filósofo de Königsberg humilhara demais seus leitores com seu bem-sucedido projeto de vida dedicado à filosofia. O falto de imaginação ou de talento não aceitaria que a fala kantiana era o fim da conversa: claro que era possível fazer mais, avançar, modificar, melhorar, superar, mas quanto conseguiriam isso doravante? Perante à quantidade absurda de informações hoje em dia, às vezes vejo que estamos de novo perante o mesmo problema, mas não quero me dispersar misturando passado com presente.

A geração mimada que recebeu toda a volumosa informação encadernada e organizada numa estante tem vontade de jogá-la toda no chão e botar fogo em tudo. Por quê? Talvez o nosso lado chimpanzé explique paradoxal apego e ódio simultâneos à geometria, mas não levantemos razões biológicas desta vez. 

Essa vontade de jogar tudo que é belo e perfeito para o alto se justifica não por um mecanismo obscuro numa dimensão oculta da História, mas porque o indivíduo quer reinar, dane-se a conquista da mente coletiva. Sim, o tal Espírito hegeliano nada mais é que o Eu fichteano travestido com palavrório. Não é grandioso, mas mesquinho e muito egocêntrico. Esse Espírito que navega no tempo, imponderável e quase inimaginável, só supera as aquisições reais pelo simples fato de ser impalpável, vago, subjetivo e, acima de tudo, contraditório. Na verdade, supera uma pinoia. Em vez de antítese e síntese, o que eu vejo de fato é destruição e perda.

Os cristãos não superaram Platão. Fizeram um sincretismo cuja separação ainda hoje é difícil de desfazer. Houve perda quando o conhecimento egípcio se desfez, para não falar dos maias e de tantos povos que da barbárie migraram para o nada. Onde está a síntese? Ninguém honesto conseguirá enxergar porque sobrou muito pouco do progresso do passado.

Em vez de afirmações, refutáveis por meio de novos pressupostos e dados, oferece-nos Hegel uns círculos místicos e umas espirais enigmáticas. Por que têm esse formato e não são pirâmides, dodecaedros ou esferas infinitamente concêntricas? Também essas formas geométricas estão lá no meio de nossos estranhos arquétipos humanos e são formas fáceis para nos convencer sem que haja de fato argumentos para seu formato. A redação hegeliana hipnotiza, não convence o leitor aplicado que confessa não entendê-lo. Sentimo-nos um discípulo sempre a interpretar a fala solipsista do mestre e isso, de alguma forma, já estava superado no momento em que Hegel propõe sua dialética. A proposta da clareza dos ingleses nunca convenceu a mente barroca alemã, desde o tempo de Leibniz. Voltou tudo para trás. Não houve síntese, houve antítese após antítese.



O estranho é que Hegel não nos esconde isso. Pelo contrário, dá-nos muitas provas de ter consciência do que faz: compara, por exemplo, sua dialética com um triunfo báquico. Pergunto: por que então tanta coisa se erigiu sobre um terreno construído por ébrios? Por que se parou de discutir o que vinha sendo ponderado seriamente por Hume e por Kant e o sólido ficou fluido? Será que porque, dando um saltinho para o lado, temos algum modo de escapar das questões de dentro do círculo e, em terreno fora dele, podemos ironicamente debochar de quem está procurando sentido nas palavras dentro dele? Na verdade, o que vejo de original em Hegel é a descoberta dessa fórmula, copiada por todos os que vieram depois, com talento para filosofia ou não. O triunfo báquico é o triunfo do preguiçoso e do que despreza o leitor. Está aí o Transgressing the boundaries de Alan Sokal como prova de que ninguém mais se importa em ser desprezado.

Convenhamos: Hegel não se contenta em ser antítese de Kant pois se acha com talento para ser síntese. Mas, caramba, quem foi então a antítese de Kant para chegarmos à síntese de Hegel? Fichte? Schelling? Hegel não tem dúvida que ele próprio é uma síntese e seus precursores são antíteses: essa egolatria lhe custou perder a amizade de Schelling.

Mas o leitor adora e quer ser seu novo amigo.

Lemos Hegel à cata de uma dica sua que nos ilumine. Aceitamos suas contradições com complacência. Entendendo-o, pensamos que somos seus camaradas. Mas é com base em benevolências e em fisiologismos que se aufere o tão desejado saber? Ou a busca da verdade foi abandonada no exato momento em que se instituiu esse comportamento? As aulas lotadas de Hegel, odiadas com inveja por Schopenhauer, deram às hordas cada vez menos hábeis o salvo-conduto de transitar no Mundo das Ideias, vestidos com mantos de reis, tal como o batismo prometia, com seu poder libertador do mundo carnal, até então, único, antes mesmo do surgimento dos cristãos. Dica: basta usar o abracadabra "Hegel" e tudo o mais lhes será acrescentado.

Essa êxtase que se vê escancaradamente em Nietzsche é a coluna cervical velada do hegelianismo e da filosofia seguinte, coisa fácil de se fazer no mundo pós-Hegel. Não podes com o peso da história? Lança no meio da cerração tudo o que te incomoda. Eis a fórmula para a máquina dialética sempre caminhar adiante e progredir sem que olhemos os precipícios em volta da estrada. Canta no teu trajeto, ó neófito hegeliano, o seguinte mantra: "toda coisa é um silogismo". Triunfo báquico.

A tempo: "superar", por fim, não é uma boa tradução para o famoso e propositalmente ambíguo verbo alemão aufheben da metalinguagem hegeliana. Melhor seria "suspender", que aparecem em algumas traduções. A imagem é clara: criar-se-ia um suspense enquanto a síntese não se efetuasse. Nesse suspense, tudo fica em suspenso: a lógica, a vontade de entender, a própria dialética que supõe existir. Paradoxo: tudo parou quando os conceitos começaram a rodar ininterruptamente. Finalmente houve a vitória da ambiguidade alemã sobre a definição inglesa!

Enfim, há quem goste. Mas, pergunto-me, onde está a limitação de quem pensa de modo contrário e não suspende completamente suas ideias para desenvolver algo belo, como quando uma bailarina necessita de um apoio no chão para seu rodopio, algo que nos causa tanto awe quanto a embriaguez? A tríade invocada por Hegel, se não vem de Deus ou de um mundo imaterial, parece ser apenas um engenhoso mecanismo retórico e não uma verdade atingida. Não funciona, em última análise, como bom pressuposto de nada. 


Já dizia Mario Bunge em seu Chasing reality que os pressupostos não são suficientes para caracterizar coisa alguma e que a mudança é sempre fruto da emergência ou da submergência de propriedades. Kant descobriu a estrutura dos fenômenos e da razão no nosso conhecimento, mas o realismo, no sentido de Bunge, parece bem mais produtivo se um dia fosse alcançado. Mas os produtos racionais da imaginação embriagada, mais fáceis e mais belos, são mais atraentes. Enfim, é atrás deles que vamos para superar nosso infinito tédio de primata consciente da própria morte. Não tenho esperança, como os materialistas, de que isso um dia seja aceito por todos.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

IGNOTO CONHECIMENTO

Uma das coisas que sempre me fascinou foi o conhecimento. O acaso me fez, aos dezessete anos, perdido numa cidade grande e desarraigado das minhas comodidades familiares, conhecer aqueles que me contaminariam com seu prazer pelo puro conhecimento. Se sempre me intrigou por que os insetos ou as línguas eram tão distintos, ainda mais me intrigava ser infinita a pesquisa que me alimentava com o conhecimento. A pluralidade necessita de olhos treinados.

Lembro-me de ter ficado fascinado com os livros Explicações científicas e Definições, de Leônidas Hegenberg, que mencionei em todos os cursos que ministrei e que supunha já falecido há muito tempo quando, em 2012, nos googles da vida, deparei-me com a notícia de seu falecimento, poucos meses antes, aos 87 anos. Hegenberg me apresentou a lógica e a filosofia da ciência de uma forma que, imagino, ninguém o teria feito melhor naquele momento.




Desarraigado e desajustado, tentei reproduzir na cidade grande tudo que fazia na minha primeira vida interiorana: andar de bicicleta, lutar karatê, frequentar a igreja presbiteriana. Tudo em vão. Não era a mesma coisa porque não eram as mesmas ruas e os prédios de minha cidade. Entediado com o trânsito paulistano, ia a pé da pensão da Liberdade ao Centro Cultural de São Paulo e, depois, da moradia estudantil no Crusp à antiga Biblioteca de Pinheiros, que ficava do lado do Shopping Eldorado e lia de tudo, num arremedo do que fazia na Biblioteca Pública de Botucatu e no Centro Cultural da mesma cidade. Foi nessas bibliotecas primevas que conheci o casal Soares, primeiro em livros e depois ao vivo. Foi lá que eu tive contato com Rubens Romanelli, Edwin Williams, Menéndez-Pidal, Sapir, Mattoso Câmara Jr e Pottier. Foi ali que sonhei em aprender todas as línguas do mundo, embora só tivesse à disposição inglês, francês, alemão, latim, grego, esperanto e bororo.

Como os títulos da Biblioteca de Pinheiros não me davam nenhum tesão especial, resolvi ocupar meu tempo de moradia estudantil lendo-os conforme a ordem da estante e não foram poucas as porcarias com que me deparei. Lá havia um calhamaço de um maluco chamado Pietro Ubaldi. Aliás, encontrei seu opus magnum num sebo um dia desses. O título já diz tudo: A grande síntese, uma espécie de sistema que juntava espiritismo, darwinismo e física. Aliás, um pequeno desvio no assunto, motivado talvez pelo delírio das lembranças do conhecimento pleno ubaldiano: nesse mesmo tempo de juventude, nas mesmas prateleiras li outra obra igualmente maluca, o clássico Mahabharata.


Deixando a tergiversação, volto ao tópico do conhecimento puro, introduzido em minha alma por Hegenberg. Lembro-me que um amigo de um amigo me havia recomendado o livro Filosofia da Ciência, de Rubem Alves, obra que devorei e reli mil vezes, tornando-me fã incondicional desse mineiro e antropofagicamente delirava ser igual a ele, na presunção juvenil da época, embora nenhum dos filósofos citados tivesse sido lido até então. 

Foi aí que tomei coragem de enfrentar a linguagem da filosofia. Afinal de contas, pior que o da religião não deveria ser. Apaixonei-me pelo Discurso do Método, de Descartes, anacronismo que logo consertei tentando ler a obra completa de cada filósofo em ordem cronológica. Delirei com os pré-socráticos e lamentei com a certeza de que nunca mais o homem terá a liberdade de pensamento daquela época.

Depois disso, meti-me no cipoal de Platão, cuja obra inteira li até os 19 anos. Logo depois, desilusão: fui cuspido pelas Categorias de Aristóteles, que tentei ler em muitas línguas, até mesmo em grego. O meu interesse pela filosofia era alimentado pela enigmática colega de graduação Cândida, que nem sei se está viva ou morta. Desisti da minha grandiosa empreitada e só uma década depois a retomei, ainda fielmente em ordem cronológica, mas não a obra completa. Aristóteles me convenceu que era loucura. Não era, mas enfim, parece ser.

A filosofia substituía os meus inquéritos religiosos da puberdade. Demorou muito para eu substituir meus heróis Platão, Pascal e Descartes por outros: Bacon, Locke, Berkeley, Berkeley, Hume, Kant e Popper. Esses autores me fizeram entender que havia um tipo especial de filosofia que me agradava. Era a Epistemologia e não aquela que se afundava no obscurantismo, como a de Hegel, Comte, Heidegger e caterva, exceção feita ao grande Nietzsche, que sempre me agradou, talvez pelo tom de profeta, mas não vejo esses autores como representantes de uma Filosofia, no sentido estrito da palavra. Para mim, todos os problemas da filosofia foram explicitados até Kant. De lá pra cá, só restam alguns atores de teatro, cuja performance místico-literária se desenrola numa espécie de palco com holofotes e, para mim, é muito desanimador ler a maioria dos filósofos do século XIX em diante (exceção feita a um Schopenhauer, com certeza). O primeiro desses fanfarrões talvez tenha sido Leibniz e o mais enfadonho, sem dúvida, seja Hegel. Realmente a França deu um mau exemplo para o mundo, que a Alemanha e os Estados Unidos imitaram.

Mas se, por um lado, a teoria do conhecimento virou arte do desencanto, na verve obscura de um Rousseau, de um Voltaire, dos Stürmer (dos quais Goethe devia envergonhar-se de ter criado na sua provecta idade), dos insuportáveis filósofos românticos e de sua ainda mais insuportável fama (bem que Hume avisara quando propõe a sua chocante destruição dos livros inúteis), por outro lado, a arte posterior à minha época preferida (rarissimamente, diga-se de passagem) também toca a questão do conhecimento, assunto predileto dos meus filósofos prediletos.

A arte cinematográfica, porém, costuma tocar nesse assunto de forma canhestra e atrapalhada, quando penso num Glauber Rocha ou num Godard. Mil vezes o entretenimento que nos presenteia um Truffaut ou um episódio dos X-men à transformação da sala de projeção em uma sala de doutrinação, quase o método de tortura terapêutica em Laranja Mecânica, do divino Kubrick!



Recentemente me vi surpreendido com um filme japonês muito curioso a que assisti a bordo do avião. Trata-se de 暗殺教室 (Ansatsu Kyôshitsu), traduzido para o inglês como Assassination classroom. O que era para ser um entretimento que beirava o nonsense enredou-me sobre o Atlântico com pensamentos muito inusitados, a ponto de eu assistir ao filme duas vezes para acreditar no que estava vendo.

É verdade que hoje em dia somos bombardeados com imagens asquerosas de violência. Nosso mundo se tornou aos poucos num grande culto visual ao Éros e ao Thánatos, cujos limites estão ainda para ser definidos. O exibicionismo de pessoas que seriam naturalmente ignoradas pelo mundo, não fosse pela desproporção das atitudes, hoje filmadas ou orquestradas, vem desde a época em que postulei a morte da minha filosofia predileta e só aumenta cada vez mais ano após ano. Tendo sido tais pressupostos já enrijecidos com uma certa convicção, que graça teria para mim Assassination classroom, cujo enredo, se é possível de ser resumido, trata do objetivo comum da humanidade de matar um professor em sala de aula? Ainda mais sendo eu mesmo um professor, por que não refutei o tema do filme com asco?

Há três figuras de professores no filme. Um deles é um monstro alienígena amarelo, sorridente e extremamente educado, com corpo de polvo e velocidade extraordinária, batizado de Koro-sensei pelos alunos. Uma segunda professora era inicialmente uma aluna intercambista com intuito comum de matar esse mesmo monstro e que se torna sua amante. Um terceiro é um professor sadomasoquista que também tem a intenção de matar o professor-monstro, como todos à sua volta. O desejo do assassinato do monstro não era apenas motivado pelo fato de que ele prometia destruir a terra, mas também por haver uma recompensa em dinheiro.

Os alunos estabelecem, ao longo do filme, uma relação ambígua com o extraterrestre, pois se estão incumbidos de dar um fim à sua vida (algo que ninguém consegue, dada a sua velocidade), por ser uma ameaça, por outro, tornam-se tão polidos e cultos quanto ele.

Diacho, que significa "matar o professor"? Perguntava-me. Uma metáfora para a superação dos discípulos? Se fosse isso, este filme talvez seja o maior poema visual encomiástico à figura docente que eu conheço. Não é à toa que os alunos desajustados o prefiram ao professor sádico.

Uma aluna-robô, criada com o intuito de destruí-lo, também não consegue a empreitada e ainda por cima atrapalha as aulas com seu tiroteio ininterrupto. Seria uma crítica à internet? O lado irônico é que, não tendo amigos, tal aluna é transformada em rede social após conhecer os perfis (fornecidos pelo próprio professor extraterrestre). Inofensiva, após essa metamorfose, torna-se, como os outros, incapaz de matar/superar o professor Koro (e o seu conhecimento?).

Se estou certo na minha interpretação, um elogio tal à figura do mestre só poderia ter vindo mesmo de um país oriental. Não foram poucos, porém, que me querem convencer que eu esteja viajando na maionese. Pode ser. Precisaria rever. Mas, supondo que esteja errado, eu não seria o primeiro a pensar que se o construto mental não condiz aos fatos, danem-se os fatos. Apenas seria incoerente com o que penso acreditar.

Revi esses dias outro filme mais cult com os mesmos óculos. Dessa vez, trata-se de um filme completamente diferente, mas, segundo a minha vontade, com a mesma temática.

Sim, vontade, pois se persigo linha por linha o que um Kant fala, levando a sério a sua obsessão que nunca o fez sair de Königsberg, faço-o porque tenho obrigação de entendê-lo. Outros, que julgo não ter a intenção tão séria, como um Hegel, que se contradiz o tempo todo, ficará para sempre dependente da minha vontade ou não como qualquer obra de arte ou filme do cinema.



O segundo filme com a mesma temática do conhecimento, se não sobrevejo novamente, é Only lovers left alive do impagável Jim Jarmusch. Vampiros de quatro gerações, um deles contemporâneo de Shakespeare, outro do final do século dezoito, outra do período romântico e uma quarta mais moderna, retratam o tédio que causa a vida, na solidão de um mundo estrangeiro, não povoado por iguais.

Os não-vampiros são chamados depreciativamente de "zumbis": são eles que ditam as leis e, para continuarem impercebidos, submetem-se a elas. O custo da vida longa para os entediados e exangues vampiros é perceber a decadência de seu entorno em vários âmbitos, por exemplo, a decadência moral, ecológica e estética que os circunda.

O que me fez evocar esse filme no meio deste assunto do conhecimento é o lamento igualmente frequente na fala dos vampiros acerca da decadência intelectual. Cultíssimos, os vampiros viveram com as maiores personalidades literárias, filosóficas, científicas e artísticas. Falam delas com intimidade: Shakespeare era um idiota, Byron era um cretino, Wollstonecraft era deliciosa. Seu conhecimento vem da vivência e da leitura, conforme a idade. A vampira, mais jovem, idealiza essas figuras e gosta de ouvir as histórias do companheiro. O mais velho é, aliás, o próprio escritor Cristopher Marlowe.

O paraíso estava no passado, tese do filme. Não é à toa, penso, que se chamam Adam e Eve. O conhecimento, aliás associado à maldição da mortalidade causada pela fruta proibida edênica, é o que mais abunda nas suas longuíssimas vidas vampirescas. Não são imortais, mas a longevidade é uma tortura, pois veem esse conhecimento decair ou levar à destruição do planeta. Têm sede da antiga beleza, anseio faminto que se torna irrefreável ao verem um casal apaixonado. Que mais belo poderia haver que o amor? Que escolha poderiam ter se não desejassem o belo? Platão concordaria plenamente. A busca do conhecimento é, em última instância, a busca do belo.

Desajustados como eu era, saindo da minha cidade, e sou, por não quase nunca encontrar afinidades intelectuais e estéticas, a maldição de quem anseia o conhecimento é ter uma vida longa demais entre zumbis. Diferente das ficções, nem sempre há monstros para pautar nossa existência e que nos instiguem a superá-los.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

O FIM DA ORIGEM

Dizem que quem não faz algo de maneira racional, perde-se na bagunça dos seus resultados e de seus pensamentos. A racionalidade, essa alcandorada faceta humana, é pintada como o ápice de nossos feitos, nosso último ato animal e nosso primeiro passo rumo ao divino. Sem a organização, esse magnífico subproduto da razão, não progredimos, não vamos além da nossa condição animal e do desgraçado ramerrão dos nossos dias medianos. Como seres que queremos cada vez mais, dialeticamente negamos o passo anterior e preferimos pisar degraus desconhecidos, aventurando-nos em escadas hipotéticas.

Mas aquilo que não existe é às vezes algo muito mais concreto do que o mundo captado pelos sentidos. E, para isso, sempre nos valeremos da contradição, palavra amaldiçoada por lógicos, taxada de pecado, irracionalidade, bestialidade e outras palavras de doesto.


Entretanto, o pensamento racional deve ter sido expelido de nossas circunvoluções cerebrais. Não por um gênio, mas por um animal muito medroso ou muito preguiçoso. Se não raciocinasse, o animal cairia na armadilha de quem o espera com a boca escancarada. Se não raciocinasse, teria de fazer a mesma coisa inúmeras vezes. Para que repetir uma tarefa, se posso ficar sem fazer nada? "Melhor pensar do que me esfalfar", concluiu o primeiro sábio, depois de dar um urro e bater no peito com êxtase. Conclusão: a origem da inteligência (humana ou não) é o medo ou a preguiça. 

Mas se Kant foi o mais inteligente dos homens, não seria injustiça dizer que era também o mais medroso ou o mais preguiçoso de todos? Algo medroso talvez ele fosse, pois Kant jamais ousou ferir-se: não se casou, não se mudou de Königsberg, mal viajou para fora de lá: ficando onde estava, tornou-se proverbialmetne previsível como a circunvolução de um planeta que circula o sol. Atitude inteligente, para quem cedo se cansa das aventuras da vida, as quais nos pontuam com prazeres muito fugazes e nos marcam com dores muito atrozes. Para evitar a loucura dos audazes que se dão mal e a decepção dos que querem manter o gozo eternamente, fica-se onde está. Foi o que Kant fez: não se conhece vida mais monótona que a dele, nem uma psique mais extraordinariamente rica, racional e organizada. 

Prova-se, portanto, que Kant foi medroso, mas seria injustíssimo dizer que foi igualmente preguiçoso, pois escreveu compêndios extensíssimos de forma organizada com a finalidade de vislumbrar, com olhos quase transcendentais, aquilo que ninguém havia visto e que, ainda hoje, mesmo acompanhando seus passos sem qualquer cochilo, é difícil de ver. Ora, quem organiza as ideias desse modo, trabalha-as de forma sistemática e as redige de forma tão primorosa não pode ser chamado de preguiçoso.

Conclui-se, em flagrante contradição com o anteriormente dito, que Kant era racional, portanto medroso, mas de modo algum preguiçoso como teria sido o hipotético primeiro racional. Contradição? De modo algum. Apenas um silogismo bastante falho. Se é certo que foi a preguiça que criou a razão, como argumentamos acima, a razão de modo algum permanece, depois de inventada, numa mente preguiçosa. A preguiça física é muito distinta da preguiça mental. E uma vez parida a razão, tornamo-nos escravos viscerais dela e de seus frutos bizarros. A razão passa a funcionar sozinha como um monjolo em moto perpétuo: cria um mundo muito distinto daquele em que vivíamos antes de a criarmos por preguiça, aliás, um mundo tremendamente agitado.

Esse mundo da racionalidade é algo que não tem pé na realidade. Se por "realidade" entendemos aquele nível de percepção em que seres com nossas dimensões vivem, concluo que, por mais genial que tenha sido o seu encadeamento lógico de ideias, Kant, por não ter ampolas de Lorenzini, jamais entenderá o que um tubarão ou uma arraia sentem quando se aproximam de uma fonte eletromagnética. A realidade do tubarão é diferente da de Kant. Sem esse elemento, o genial prussiano terá entendido como a mente humana funciona, jamais a mente elasmobrânquia.

O racional, provado está, só funciona para nossa espécie e, ao fim e ao cabo, trata-se apenas de uma loucura qualquer, como todo comportamento estranho de um inseto ou de uma anêmona, que jamais teremos condição de avaliar mesmo sendo etólogos gabaritados. Já que não avaliamos o que as outras espécies fazem e não teremos jamais a sua opinião, por falta de manifestação, a bicharada se dá mal na reunião que decide quem é o bicho mais sabido. É voto vencido quando se põe em sufrágio quem é o mais bacana do reino animal. Claro que somos nós. 


Algo parecido fizeram os homens ao inventar as línguas. O mundo todo está recortado em formas lexicais, categorias morfológicas, regras sintáticas que me são compreensíveis mas não a ti, ó falante de náuatle ou de chinês que não me lê. Aliás, no mundo categorial, tão alheio ao mundo real e ao mundo mental, nascem bizarrices que se interporiam o tempo todo nos nossos silogismos, não fossem alguns que se detivessem pormenorizadamente na sua ilogicidade intrínseca - entre eles o mais hábil de todos, Kant - expurgando o que é inútil na nossa tosca argumentação, como um médico que retira um tumor.

No mundo real, uma cadeira é algo inimaginável, pois não há uma única perspectiva a partir da qual devemos olhar, senão a nossa mesma. No mundo mental, uma cadeira é uma experiência abstrata a partir de seres muito distintos que julgo iguais e existentes e ainda mais abstrata quando comunicada a outrem. No mundo categorial, uma cadeira é simplesmente uma coisa feminina que não é verbo. Pergunto-me: se para além desses três mundos não há nada, onde mora exatamente a racionalidade da qual nos vangloriamos se sequer sabemos o que é uma cadeira ela-mesma?

Kant sabia disso. Não era simplista e tinha a real dimensão do quão limitado era tudo o que fazia, da mesma forma que Pascal também sabia. Diferentemente dele, porém, não se entregou conscientemente à loucura, pois lamentava, no seu íntimo tão reservado, que seus pseudosseguidores do idealismo alemão fossem para um caminho que não o da razão. Mesmo assim, detectara que a razão é um prurido do intelecto, afinal, o inato e o percebido juntos não produzem por si só a razão. A razão é um non sequitur. 

Aquilo que é belo, por exemplo, não é um elemento do intelecto. O juízo estético não se funda apenas na beleza mas também no sublime. Fruir a beleza é apenas um dos inúmeros prazeres estéticos possíveis. Se soubesse como Hegel leria isso, jamais teria escrito.

Mas voltemos a Kant. Todos nós sabemos que apreciamos com as pernas bambas aquilo que é colossal, o que é inimaginavelmente grande e o absurdamente pequeno, o que tentamos alcançar com o atrevido e hiperbólico nome de "ilimitado". O que nos emociona e nos assusta atinge nossa alma pouco afeita ao blasé. Um vulcão e um furacão são sublimes, pois entre sua magnipotência e nossa nauseante condição mortal instaura-se uma dramática consciência de finitude e de insignificância. 

O desmedido é irmão do imagético e - ai! - vivemos num mundo em que a imagem nos informa e, ao mesmo tempo, embota qualquer senso de comedimento. Tornamo-nos entediados perante tantas imagens. Nesse crescendum do universo das imagens, perderemos um dia nosso senso de sublime? Vivemos num mundo performático e nada mais nos surpreende. Nosso exibicionismo tende a fracassar se não tocamos no osso dos valores alheios. Somos sabidamente desesperados e mais do que nunca temos chance de sermos alguém com uma atitude extremamente covarde que tenha visibilidade. Cuidado! Um novo homem está surgindo. Mais frágil e, portanto, mais agressivo. 

Antes, o ser humano servia-se de inofensivas pedras, fogo, flechas, balas e bombas. Hoje serve-se de letais fotos e câmeras. O arremedo de Übermensch atual destrói monumentos milenares, continua matando covardemente inocentes, mas, diferentemente de antes, hoje filma seu próprio assassinato. O novo homem tem lançado aviões apinhados contra montanhas.

Esse novo ser age desse modo, na frente de todo mundo, porque está mais desesperado do que nunca e faz de tudo para que a sua existência seja conhecida e divulgada. Haverá sempre alguns insanos que aprovam seus feitos no meio da grande massa que quer assustar. Contudo, o importante mesmo para o cameralgoz é que não seja ignorado, que não seja apenas mais um na massa amorfa da humanidade. Se não age na frente de todos, fá-lo perante seus colegas. Novas tribos brotam da massa das pessoas inexpressivas que se julgam imensamente diferentes umas das outras.

Silêncio. O homem atual está falando. "Aqui está meu carimbo para quem recicla lixo, para quem come carne de porco, para quem não comunga da minha opinião política, para quem não acredita no meu deus". O homem atual é irracional? Não. Tem excesso de razão. Age por meio dela. Como sabemos, a razão divide, classifica de forma inquestionavelmente lógica, como os animais daquela enciclopédia chinesa de Borges que mimetizava os anseios de John Wilkins. Tudo que é minimamente diferente é imensamente distinto na razão. Com a razão, veem-se imensos abismos onde só há deserto. E, pior, mata-se por isso. Talvez seja o momento para admitirmos que a nosso prazer pela destruição seja apenas algo demasiadamente humano, justamente por sermos racionais. Distinguimos o indistinguível pela razão.

O tédio nos impele a isso, assim como nossa baixíssima auto-estima, mas nada mais que nosso desespero de perceber que somos um ridículo nada alavancará nosso potencial desejo de destruição. Uma lei moral tão simples quanto a de não fazer a outrem o que não queremos para nós mesmos parece ser esquecida por seres sem empatia ou então perversamente quebrada por puro tédio. Confundem-se facilmente valores sociais e valores humanos. Isso ocorre já faz tempo: num mesmo conjunto de conhecidos mandamentos, matar alguém pesa tanto quanto pronunciar uma palavra monossílaba em vão ou quanto desejar para mim algo belo que não me pertence. É muito difícil manter o equilíbrio mental quando não vemos diferenças entre coisas naturalmente tão distintas. Reunimos o irreunível pela razão.


Nosso problema, portanto, não é a irracionalidade de alguns, mas a racionalidade de todos. A animalidade do homem mata menos que a razão. E não é o nosso intelecto que nos tem feito conviver bem. O bom convívio, como qualquer um sabe, é pautado em regras que, de longe, são meros construtos práticos: só podem ser chamadas de racionais no sentido de que são pactos em que, a contragosto, nivelamos as nossas diferenças. Esses pactos só são atingidos após longas guerras e enquanto está viva a memória de suas consequências.

Decerto haverá pessoas que pulam nas jugulares das outras e comem-lhes as carnes como leões, mas, convenhamos, essas são minoria. A barbárie humana é mais comumente arquitetada na mente. Há muito de recorte social e psicológico. Há muito do que é tolerável para outros integrantes do seu bando, minoria ou maioria na sociedade em que vive. 

Mas a barbárie não se contenta em destruir o próximo. O novo homem tem atingido também memórias recalcadas. Destruir quadros, livros, relíquias, templos e estátuas, para além do seu asqueroso caráter midiático, parece querer apontar para outro paradoxo: busca-se o fim da origem. O que age assim pensa: "quem sabe se nascermos de novo, de outra forma, seremos algo mais que criaturas limitadas?". Nesse autoengano, talvez o mais grave sintoma de nossa esquizofrenia social moderna, parece que estamos todos de acordo.

A tabula rasa, de tempos em tempos, é enaltecida, para depois dar azo a um remorso muito estranho. Sim, acabou a origem. E daí? Conseguimos recriar algo de fato? Ou nossa imaginação é pasteurizada demais para isso? Valeu a pena destruir a semente dos nossos tormentos? Ou ela jaz imaterial e fantasmagórica na nossa mente, como avejão que arrasta correntes, perturbando nosso sono? Terei de fato destruído algo? Ou terei criado um monstro ainda mais incompreensível que me atormenta? Somos pais do nosso próprio Horla. Um iconoclasta com alguma consciência saberá do que estou falando. 

quarta-feira, 1 de julho de 2015

OFENDEIS-VOS DIARIAMENTE? DEVERÍEIS

Palavras sempre são um amontoado de sons, que criam imagens sonoras e significados, em qualquer língua do mundo. Esses significados são elásticos e não unívocos. Uma vez pedi a um grupo de alunos que me escrevessem num papel o que era uma pessoa patife e que exemplificassem com algum tipo de situação. Esperava alguma heterogeneidade na resposta, mas não tanta. Praticamente não houve duas pessoas que entendessem a palavra do mesmo jeito. Para uma, patife era uma pessoa fraca à ingestão do álcool, para outra era um arrematado mau-caráter, para outra era uma pessoa boba e fácil de ser enganada, para uma quarta era uma pessoa que dizia coisas desagradáveis, para uma quinta era uma pessoa muito covarde, para uma sexta era ainda outra coisa. Todos estavam concordes com algo, porém: se fosse chamado de patife, partiria para cima do ofensor. Patife antes de significar qualquer coisa era uma palavra ofensiva e nada mais.

Foi aí que pensei que o que se chama "significado" em linguística, psicologia e em tantas outras áreas na verdade são duas coisas distintas. Um significado descritivo (que variava muito entre as respostas dos alunos) e um significado valorativo (que era o mesmo). Definitivamente, patife não era uma palavra que poderíamos usar para elogiar.

Ou era? Um namorado carinhosamente poderia chamar a amada de patife, com outra entoação e num outro contexto e ninguém sairia ofendido. Essa entoação, que dizem não ser tão importante no português quanto no chinês, significava alguma coisa extra. Nasce o vaguíssimo conceito de contexto.



Para mim, quem quer entender o significado das palavras no sentido científico usa de uma carta na manga quando evoca essa entidade do além chamada "contexto". Na verdade, se pensarmos bem, o contexto não é nada. Ou é tudo. Em que consiste o contexto quando o amado chama sua amada de patife e ela sorri em vez de ficar emburrada ou brava? O contexto são os dois envolvidos, seu histórico e a aparente contradição absurda entre a palavra, pronunciada de forma particularmente incomum, e a certeza da projeção do sentimento alheio. Em outra situação, chamaríamos de contexto qualquer outra coisa. Nada é mais vago e impreciso que o conceito de contexto e se alguém diz que é cientista evocando essa alma penada, engana-se. Não há definição suficiente para a variável "contexto".

Assim sendo, dependendo da situação, ofendemos ou não. E o que é a ofensa? Hoje essa pergunta não é ociosa, pois estamos numa época de fortes suscetibilidades. Pessoas se identificam com grupos, amam ser rotuladas e rotular os demais, exigem a leitura unânime e inequívoca das palavras. Não há, no mundo de hoje, dez mil sentidos para "patife". Há um só. E ele deve ser procurado nas redes sociais para que não sejamos politicamente incorretos. E ai de quem não o faz.

Ilusão. Há, sim, milhões de sentidos e sempre haverá, infelizmente nem sempre tão ricos quanto deveriam para honrar a afamada inteligência da espécie humana. A maioria desses sentidos ou é hipervaga ou hiperespecífica. Não saberíamos dizer quantos seriam realmente necessários.

Mas enfim, há o sentido corrente ou da moda. E se alguém é displicente com isso ofenderá necessariamente.

A medida de uma agressão, contudo, é mensurável de forma mais clara pelo agredido do que - obviamente - pelo agressor. Uma pessoa que machuca, magoa ou maltrata não poderia de modo algum ser o mesmo que legisla sobre o limite do que é e do que não é agressão. Isso é óbvio e vale para situações que são qualificadas como ofensas físicas, morais e mentais. Essa ideia é, em tese, perfeita e mais do que defensável.

Mas como dizíamos, estamos lidando sempre com situações e com palavras. Se as situações, com ou sem palavras, definem um quadro onde a justiça pode atuar, já o terreno das palavras é muito pantanoso. Pois, com palavras, não apenas interagimos para comunicar objetivamente uma ação, mas também subjetivamente. Às vezes funcionam ao avesso, como no caso dos namorados citados acima.

Além disso, com as palavras podemos fazer arte. E qual o limite entre a agressão deliberada em arte e a provocação, que tanto sucesso fazia em outras épocas? A provocação tende à crítica subjetiva mais do que à descrição objetiva. Será que o reino do subjetivo corre riscos?

Uma crítica artística a um cenário incômodo do que se passa ou se passou ou se passará na sociedade real ou fictícia é, quase sempre, uma provocação. Seria ela também uma agressão? Devia ser sempre um caso de justiça? Num pesadelo, sim, mas de olhos abertos, melhor não. O teatro, os romances, os poemas e as exposições sempre estiveram cheios de elementos provocativos, exceto talvez nas tiranias que delimitavam o que é arte e o que é entartete Kunst.




Se Tarantino me incomoda muito e me agride, censurá-lo seria uma opção? Ouvir um sim causa um aumento da democracina no nosso sangue, antecedido de arrepios e de aumento do nosso globo ocular. Como? Será que alguém um dia poderia cogitar esse absurdo? Às vezes acho que a resposta a isso é tão incerta quanto o que fará um inexperiente numa corda-bamba.

Na dicotomia agredido-agressor, mesmo que um autor seja eximido por liberdade poética (algo que sempre foi feito nas épocas esclarecidas do vaivém da humanidade), devemos pensar na situação da agressão de forma mais ampla, que nos faz pensar num teorema interessante: havendo grupo agredido, necessariamente o grupo não-agredido é, por definição, o agressor? Veja, não digo mais nada sobre indivíduos agredidos, mas sobre grupos e o número de conjuntos possíveis com a totalidade dos indivíduos tange o infinito!

Supondo que haja dois grupos A e B. Historicamente A oprimiu B, mas hoje B não é mais oprimido por A. O grupo A tem a característica X e o grupo B tem a característica Y. Por causa dessa característica X é que A justificou sua opressão histórica sobre B. Hoje, não importa se as pessoas são X ou Y. Ainda há alguns A que oprimem alguns B por causa da característica X, mas isso é um caso de polícia. Não é desses que quero falar. Quero falar de C, que também tem a característica X e de D, que tem a mesma característica Y. É justo deduzir que A e C são iguais, mesmo que C nunca tivesse oprimido ninguém? É justo deduzir que B e D são iguais, mesmo que D nunca tivesse sido oprimido? No extremo, supondo que C tivesse sido oprimido por E e que D tivesse oprimido F, não seria extremamente redutor (e errôneo) que A e C sejam chamados de opressores e que B e D, de oprimidos? E se A e C não existem mais, apenas seus descendentes A' e C'. Seria justo que A e A' sejam considerados igualmente opressores e C e C' igualmente oprimidos? Se de um lado temos uma característica que reúne acidentalmente (portanto de forma preconceituosa) verdadeiros opressores e pessoas de fora da história e de outro, verdadeiros oprimidos e pessoas do lado de fora da história, não estaríamos sendo injustos com C ou com A' e privilegiando injustamente D e B'? Não estaríamos sendo ou hipersimplificadores ou acreditando excessivamente na hereditariedade? Nessa situação toda, parece não haver espaço nem para a lógica nem para o perdão.

Mas é assim que o bicho-homem pensa. A lógica é o fruto do cansaço da fome e o perdão é o fruto do cansaço das guerras. E é basicamente o que somos: rebentos da fome e guerra. O Homem com H maiúsculo, o tal do ser humano, idealmente projetado, donde se deriva o sentido etéreo de Humano e de Humanidade, é, na verdade, alguém que cansou de passar necessidades e cansou de brigar. Mas há momentos em que não precisamos nos preocupar com a comida do dia seguinte e nem com as pessoas além de nossa tribo. É nesse momento de suposta tranquilidade que voltam a fome e a guerra, como que vindas do nada. E nossa história é esse pêndulo desastrado.

Mas diante da iminência desses males, é ruim que não alertemos que o pensamento lógico se prepara para transformar-se em breve num amontoado de hipergeneralizações e de simplificações formulaicas, mesmo que haja ainda muito para ser discutido. Há pouquíssimas pessoas dispostas a ouvir essa discussão, tão certos andamos.

Enquanto isso, formam-se clãs, que se ofendem mutuamente com nomes pouco inteligentes. E o ofensor se regozija com a sequência de sons que profere, enquanto o ofendido se escandaliza pelos formantes sonoros que trazem a mensagem agressiva. 



Se, num zoológico, alguém põe um nome chinês num urso-panda, não ofenderá ninguém porque não há nenhum costume histórico de ofender chineses, usando o termo "urso-panda". Outros pobres animais, em vez de se sentirem ofendidos por causa do nosso especismo, cedem contra a vontade seus nomes ao ofensor, o qual age com inevitável desconhecimento de causa. Se A ofende B com a palavra G, que designa um outro animal diferente do bicho humano só porque pensa que B tem supostas características de G ou porque pensa que todo G vem da mesma região de B ou porque pensa que G é desprezível, errará nas três vezes: as características de G normalmente são muitos distintas de B para um olhar atento, nem todo G vem, com certeza, da tal região e G tem qualidades que o arrogante A não tem nem nunca conseguirá ter ou enxergar.

Que é o inflacionado cérebro humano comparado com o olhar agudo da águia, com a audição dos lobos, com a eletrorrecepção dos ornitorrincos, com as ampolas de Lorenzini dos tubarões, com a criptobiose dos tardígrados?

A arrogância humana nasceu quando o primeiro hominídeo derrubou um animal muito mais poderoso que ele. Perdeu completamente o seu complexo de fracote e até esqueceu dos seus deuses nesse dia. O poder do homem não vem do seu cérebro, mas da primeira armadilha que criou. Desde então, o hominídeo reflete sobre as vantagens da traição. Desde então conseguiu perceber que do verdadeiro pode decorrer o verdadeiro e o falso, horror lógico que dizem ser inadmissível na implicação condicional: passou a ser verdadeiro que, sendo x verdadeiro, y poderá ser tanto verdadeiro quanto falso.

Depois disso, o homem nunca mais dispensou esse ingrediente básico para o sucesso de sua inflacionada auto-estima canhestra: a arrogância da onipotência, a ponto de fazer deuses à sua semelhança. E aplicou-a a tudo que se move, inclusive a outros homens. É hora de aplicá-la a si mesmo.

Ofendamo-nos diariamente. Quero dizer, não mutuamente, nem reciprocamente, mas reflexivamente. Cada um deveria ofender a si mesmo e não ao outro. Diga todo dia diante do espelho: você que me olha, você não vale nada, mas eu gosto de você. Quem sabe, essa síntese paradoxal entre a humildade e o amor próprio salve a humanidade da próxima hecatombe.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

ALGUÉM ENCONTROU MINHA IDENTIDADE?

É bastante estranho. O homem descreve os fenômenos que se passam dentro do núcleo atômico, tem respostas para o que são os quasares nos lindes do Universo, teoriza como foi que surgiram as penas das asas dos pássaros, expõe o percurso silogístico do cérebro de um esquizofrênico, interpreta um autor obscuro, cura o até então incurável, cria aquilo que antes era ficção, no entanto, tem dificuldade de responder à pergunta: "quem sou eu?"

Por trás de todas essas descobertas independentes da experiência individual, às vezes até mesmo contrárias a ela, um homem individual pode fazer toda a sua espécie progredir, mas, embora a verdade subjetiva ou a Verdade do cosmos aflore, embora tudo isso saia dos espasmos cerebrais de um ser feito da mesma matéria de tantas outras coisas, esse eu não consegue se enxergar. Não consegue ver com nitidez quem ele é para além da massa molecular e da eletricidade que o compõem.

Se não sou idêntico a ninguém, em que consiste a minha identidade?



Mas será que não sou mesmo idêntico a ninguém? Toda espécie tem o único objetivo não de procriar mas de vencer-se a si mesma. Ignorando as outras espécies, sozinha, a espécie vence os obstáculos de seu entorno na forma de indivíduos que se julgam distintos uns dos outros. Vida e sobrevivência são, apesar de tudo, palavras sinônimas. Espantosa conclusão! Os quero-quero se julgam dono do mundo, assim como os símios humanos, os percevejos pentatomídeos, as holotúrias ou os copépodes. Que diferença faz a sua eficácia em destruir o entorno adverso? Que importância têm o seu tamanho, a complexidade de suas estruturas corporais, os seus sentidos, a sua capacidade de raciocinar ou seu instinto? Todos fazem a mesma coisa, não como espécie, mas como indivíduo.

E ignorando que é uma espécie, o indivíduo, graças a uma sensação de si mesmo ou a um self nascido dos trovões internos que coruscam da química chamada vida, consegue vitoriosamente desperdiçar seu pequeno tempo de existência  potencialmente feliz graças a essa maravilha chamada autoengano da individualidade. A mosca que me lambe a testa arrisca-se como outras três a fazer a mesma coisa e sequer está atenta à mão do lambido incomodado, que se desfere imensos golpes na calva, em plena autolesão. Mosquilda sequer percebe que está fazendo o mesmo que Moscolina e Moscarda, mas corre os mesmos riscos do safanão. Está fazendo certo, pois disso auferirá prazer: punctum uolucris paruulae uoluisti morte ulcisci; quid facies tibi, iniuriae qui addideris contumeliam? Dane-se a moral da história: arriscar é sinônimo de viver.

É o delírio da unicidade que fez a vida progredir. O ímpeto da fome e da necessidade fez as plantas cansarem-se do autocanibalismo de seus brotos novos. Arrancando as suas raízes do solo, caminharam, não mais resignadas, transformadas em bicho, rumo ao que sonhavam haver ali atrás daquela pedra misteriosa, malgrado o conselho de milhões de gerações antes do indivíduo audaz. O que distingue o animal do vegetal é o autoengano. Não havendo nada a perder, deu um passo seguro e foi pisoteado em seguida. Outro fez o mesmo, impulsionado pela mesma química e por sorte foi mais além. Ato contínuo, mil outros repetiram a ação, nenhum deles importando-se com o histórico desanimador do fracasso alheio. "O que tenho eu a ver com os meus parentes da minha mesma espécie? Sou completamente diferente!", diz a química irresistível do alto de suas peculiaridades imprevisíveis. Foi assim que de invertebrado a bicho alado, um desses teimosos seres dominou o mundo. Não foi graças à sua inteligência, como diz o livro sagrado de nossas lendas mais caras, mas à sua capacidade de não reconhecer no seu irmão o mesmo magnetismo inexplicável que o arrastava a fazer o que precisava ser feito. Sem lógica alguma, mas com muita determinação. Bendito seja o autoengano.



José Henrique da Silva tem um tataravô ucraniano e, como pertence ao meio artístico, obviamente mudou o nome para Josef Kalynychenko. O exotismo dos Ks e Ys faz José pensar que fez um upgrade na sua autoestima. Maria das Dores Oliveira descobriu que tem um cigano na família e hoje se sente indubitavelmente cigana, por isso hoje entende com orgulho por que sempre foi diferente. Outro dia, Carlos Pereira Assunção leu que o judaísmo se transmite pelo viés materno e, iluminado, descobriu que ele mesmo era judeu porque sua bisavó, mãe da sua avó materna era uma judia. Marco José de Souza é mestiço de japoneses, por isso se sente mais japonês que português. Felipe de Andrade Marinho resolveu fazer uma viagem à Nigéria em busca de suas raízes. Cláudio Peixoto Cunha, que se diz húngaro apesar de conhecer apenas quatro ou cinco palavras nessa língua, defende a volta da porção do território de seus bisavós anexada pela Romênia durante a Primeira Guerra. 

Os cálculos oficiais dos censos não incluem a emigração mental. A identidade é algo dificílimo de mensurar. Por que alguém neto de espanhóis com italianos se sente mais italiano que espanhol? Na queda de braços dos genitores, certamente, um deles prevaleceu com seu discurso ou aliciou com seu carisma o cérebro infantil do convicto.

Alguém conheceria, por acaso, alguma empatia por aquele que o discurso paterno fez odiar? Não se parecendo em nada com a sua espécie, a despeito de ter olhos, coração, história e afetos tão parecidos em sua essência, essa vítima será poupada? Quem o evitará de puxar o gatilho contra um ser assim totalmente diferente?

Quem nesse mundo aceita assumir a sua universal viralatidade? Quem admitirá que seus valores são uma mixórdia promíscua de sistemas mal-ajambrados de pensamentos? Por que descobrir isso, para tantos, é tão doloroso? Ou melhor: por que tenho essa certeza quase absoluta de que sou algo que nunca fui no passado? Negar isso de coração pode ser o epicentro de uma súbita loucura para espíritos frágeis e melindrosos. Parece-me que o que se esconde nessa questão é o fato de não se assumir o aqui e o agora.

Nada do que é atual e presente foi interessante no decorrer do dia de hoje. Mas outrora foi sim, dizem. É estranho ver pessoas nascidas na década de 90 com saudade da década de 80. É estranho ver pessoas que nunca puseram o pé na Polônia declararem-se poloneses. Parece que aquela história de uma gotinha de sangue escocês herdado do meu trisavô me faz um escocês. Supostamente, para essas pessoas, os átomos que compõem seu DNA devem ter a cor de alguma bandeira ou o formato de algum território. Devem cantar hinos nacionais quando se juntam na fecundação. Ou é mais provável que isso seja puro delírio?



Um avô famoso dá-nos certo orgulho, mas avós perdidos em gavetas empoeiradas, desconhecidos, dos quais temos parcas informações, provindas oralmente de um familiar mais delirante ou de inferência tortuosa de meia dúzia de documentos rotos, cuja índole nunca saberemos se toleraríamos, transformam-se em nossos ídolos e nos nossos parâmetros: régua que usamos para nos diferenciar. No fundo, não queremos ser iguais a ninguém com quem tediosamente convivemos. Aprecia-se mais o avô alienígena do que aquele avô de cujo sucesso sabemos sobejamente: esse até nos envergonha em público porque não conseguimos superá-lo. O que era bom demais não nos atrai, pois normalmente não somos capazes de ter nosso próprio nome em uma praça pública.

O autoengano há de se infiltrar sempre de forma muito insinuante. Convenhamos, a náusea de reconhecermos que estamos sendo infantis acreditando em novos papais noéis é dolorosa demais. Queremos acreditar na fantasia que criamos. Isto é, num mundo feito à nossa imagem e semelhança. Essa certeza provém da nossa sensação, dos nossos sentidos, da nossa alma, dizem muitos.

Erigimos com ela nossa new flesh. Observamos atentos que os bíceps de Rodrigo Santoro são sim de fato daquele tamanho que aparecem no filme 300. A voz robotizada da Fergie dos Black Eyed Peas é de fato linda e os shows ao vivo é que estão errados. Os cabos que mesclam a carne humana a máquinas em ExistenZ de Cronenberg são realidades quotidianas e prova disso é que foram requentadas em Matrix e no James Cameron's Avatar. Furibundos, louvamos a originalidade e queremos enganar-nos que o velhíssimo é algo novo e espetacular. Precisamos acreditar que máquinas do tempo sejam conceitualmente bastante razoáveis. Vivemos num mundo de atores-desenhos e de cantores tecnológicos: Gorillaz foi só um dos primeiros passos. O cyborg de que tanto se falava no passado está agora aí. Não há mais heróis que vençam dragões sozinhos. Nossa arma agora são pixels. Hollywood venceu a Segunda Guerra com guerras diárias contra alienígenas em tantos fins-do-mundo quanto seriam prováveis. Escondemos de nós mesmo que a morte é algo feio e lento. Por trás do glamour do herói ambíguo de falas afetadas e quase metrificadas não vemos triunfantes nosso miserável serzinho, carente de algo que não sabe o que é. Pode faltar tudo, dizem, menos a esperança.



Bom, uma coisa é certa: tudo é quase a mesma coisa que não é. Se houvesse um ser racional de fato neste planeta, ele riria dessa palavra "esperança". Pouco difere, pensaria, do suicídio da pobre mariposa que não consegue fugir da lâmpada. Não é atraída por ela, como dizem alguns que não entendem nada de mariposas: apenas no seu equipamento biológico não estava previsto o nascimento de um Thomas Edison. Ela faz o que pode. Nós também. Rumamos tristemente para um fim amortecido por autoenganos. Ferramenta ótima para arrastar nossa carne ao longo de décadas. O que estraga tudo é a consciência.

Mas permitam-me um aparte: a consciência que os românticos atribuem àqueles que puxam o gatilho em direção à própria cabeça nada mais é que outro estrondoso e sofisticado autoengano. Consciência não é isso. Consciência é algo pior que o desespero existencial que aflige o suicida: é a náusea que nos obriga a continuar vivendo desiludidos. Mas penso que há ainda opção de essa desilusão não nos tornar seres de amarga personalidade de convívio difícil. Podemos a qualquer momento, por exemplo, pintar nosso rosto de cores berrantes, dar uma gargalhada gostosa e pôr um nariz de palhaço. Sorrir parece a melhor solução para quem se pergunta, como o agnóstico Russell, sobre o quão patético é nos infernizarmos com pequenas rusgas, se estamos todos num minúsculo e ridículo barco perdido no meio da imensidão da poeira cósmica. O cético Hume chegou bem perto de concluir tudo isso também e adorava o convívio com os amigos, até que se meteu com o louco do Rousseau.

Enfim, como você pode esperar, se chegou até aqui em sua leitura. No final, concluirei o óbvio: a minha identidade nada mais é que você mesmo, leitor.

terça-feira, 28 de abril de 2015

VIVA O INÚTIL!

Palavras têm peso. Às vezes têm mais peso que significado. Se você chamar alguém de patife, estará ofendendo-o. Mas se perguntar à mesma pessoa, antes de ofendê-la, o que é um patife, provavelmente não saberá dizer o que significa ou, ao menos, terá entendido algo diferente da pessoa que a proferiu. Se ponderamos sentido e valores, sem dúvida, a balança penderá para o segundo. Podemos sequer saber o que significa algo, mas a simples evocação de certas palavras devolve-nos a realidade animalesca e cruel do irracionalíssimo bicho-homem.

Dentro da esfera do pesado orbita o inútil. Chamar alguém de inútil é lançá-lo no desprezo ou convocá-lo à peleja. Dizer que algo é inútil revela nossa atitude despiciente para com algo que existe mas não faria falta se não existisse. Mas o inútil é de fato assim?

O bicho-homem, sem alma e sem galardões eternos, rasteja neste mundo de onde brotou atônito. Precisa comer e beber, senão morre, afinal há tempos seus antepassados já não fazem fotossíntese. Precisa dormir, senão enlouquece. Precisa defecar e precisa copular. Precisa ter aconchego de um bando, senão afunda na depressão. Além dessas coisas animalescas aprendeu outras necessidades que orgulhosamente o distingue do resto da bicharada. Precisa falar com alguém, senão falará sozinho perdido num mundo próprio de devaneios. Precisa de dinheiro, senão não consegue disfarçar-se de superbicho perante si e perante os outros. E por aí vai.

Assim sendo, é tachado de inútil tudo que não o ajude a aparelhar-se para mostrar para si mesmo como a cereja do cume do bolo da criação divina. Inútil é algo que não serve para ser ingerido. Inútil é aquilo que tira nossas noites de sono. Inútil é aquele que não sabe se comunicar. Inútil é quem não está devidamente enquadrado na sociedade, pagando seus impostos e cumprindo sua função fática diária. Inútil é aquilo que não gera dividendos.



Certo dia vi um entrevistado que mostrava que tinha reflorestado uma fazenda sua. A terra, desbastada e cheia de bovinos, só dava mato raso. Nada mais além da grama do pasto nascia lá. Os mananciais viraram enxurradas, as quais, por sua vez, remodelaram a terra sob a forma típica da erosão. A diversidade natural ficou monótona. 

Tergiversação necessária: cheguei à conclusão que o oposto da ecologia é a geometria. O homem faz de tudo para livrar-se do caos das matas, que tanto lhe dão insegurança. No lugar delas põe caixotes imobiliários quadrados de cimento e ruas planas de asfalto. Sim, muito melhor sem insetos, sem animais selvagens, sem cobras, sem mato anônimo. O homem não sossegará enquanto o mundo não for um deserto total. 

Mas esse entrevistado tinha pensado o contrário do que você pode imaginar. Tinha reflorestado deveras: a mata revicejou, os riachos reapareceram e, com eles, as aranhas, os tucanos e os tamanduás. Esse homem pensou diferente do bicho-homem mediano? Não, não pensou, gostou de frisar na entrevista, afinal de contas não queria mostrar alguma fraqueza subumana. Ao repórter redarguiu que era um empresário. Definia-se como tal. Assim sendo, fez isso tudo visando ao lucro e não à ipsa natureza. 

Lucro. Palavra estranha. Os projetos de extensão agroflorestal ensinam a conservar a mata nativa, mas visando ao lucro. Danem-se as florestas, se o lucro não pode ser invocado. Quem quer saber de uma mata inútil? Uma mata por si própria? Uma mata ela mesma? Nummus maximus deus est.

Diversidade sem utilidade vira piada no mundo atual. Até mesmo os ecologistas arregaram. Esse discurso não comove ninguém. Pra que preservar baleia se há tanto óleo e carne nelas? Só por simpatia? Um macaco louco não se identifica com baleia. E se identifica, faz isso porque a acha bonitinha. Preserva mico-leão porque é dourado e borboleta que é azul. Quem quer preservar bicho inútil, melequento, sem cor aberrante, peçonhento? Simpatizam-nos os vertebrados, mas e os quilópodes, os nudibrânquios, os insetinhos marrons sem graça que se suicidam nas nossas lâmpadas?




O ser inútil está fadado a morrer: sentença ditada pelo cruel macaco presunçoso que dominou a terra. Entenda-se: inútil para esse primata em questão. 

E a arte inútil? O pensamento inútil? Que dizer disso? Há uma grande distância entre a inutilidade de palavras ou signos inúteis e a de seres. As palavras inúteis são abundantes no nosso dia-a-dia. Mas já se pensou em exterminá-las. Um tal de Vaugelas é considerado o criador do normativismo radical. Mas é inútil acabar com as palavras inúteis, provaram os românticos após Vaugelas.

Um pensamento útil não me ajudaria a tirar vantagem em toda a situação? Aparentemente sim. Contudo, um pensamento que me faça enriquecer é útil quando estou vivo e saudável, mas inútil se estou à beira da morte. Assim sendo, a utilidade de algo abstrato depende do momento de sua aplicação. Um coco é útil para matar minha fome e minha sede, a menos que eu esteja num lugar sem pedras e sem aparelhos onde possa quebrá-lo.

Assim sendo, parece-me que, paradoxalmente, a utilidade de algo depende de coisas que são alheias àquilo que está sendo julgado como útil: a utilidade do dinheiro depende da vida e a utilidade do coco depende de pedras.

Mas avalia-se esse segundo elemento que se infiltra como novo fator antes de produzirmos a sentença acerca da utilidade das coisas? Obviamente não. Quem diz que o dinheiro é bom não está pensando na morte. Quem diz que coco é bom nem cogita em pedras.

Assim, pergunto eu: de onde vem a certeza do pensador comezinho que se interpõe entre mim e o meu deleite com sua abjeta e preconceituosa sentença: ISTO É INÚTIL? Eu diria que vem do mesmo lugar onde nascem todas as outras certezas: da mesma precipitação ilógica do bando que nos impulsiona a fazer asneiras.


O raciocínio do homem visa o útil, diria Bacon, mas o útil depende de fatores impensáveis, como mostramos acima. Assim sendo, o raciocínio visa a coisas que dependem de fatores impensáveis. Não consigo imaginar nada mais inútil do que algo que dependa de fatores impensáveis, portanto, o raciocínio, de fato, visa ao inútil.

Deleito-me em compreender isso. O útil sempre pareceu-me demasiadamente cristão, demasiadamente marxista, demasiadamente raso. A inutilidade é o objetivo daquele que raciocina. Quem se apodera do inútil para construir o útil não raciocina. Monta um espantalho, aliás, coisa útil para espantar corvos e proteger a lavoura de milho, ensinam-nos os inúteis desenhos animados.

A inútil leitura da inútil filosofia torna-nos perspicazes e críticos, algo que é útil somente se os outros que nos circundam são menos perspicazes e menos críticos. Dormirmos a tarde toda é inútil para a Receita Federal mas útil para recuperar nosso corpo e mente cansados. O inútil conhecimento faz diferença no útil concurso. Aquilo que é inútil em potência é útil em ato? O inútil, no fundo, tem alguma utilidade?

Mas o raciocínio visa ao inútil, como provamos acima. Então o raciocínio visa a algo que, no fundo , bem no fundo, tem alguma utilidade? Parece que raciocinar sobre o inútil pode ser a coisa mais útil que podemos fazer hoje em dia. E raciocinar sobre o útil? Tentemos.

Podemos pensar que o útil seja apenas um gozo momentâneo. Quando digo que o dinheiro foi útil para fazer algo, encerro no passado a sua função utilitária. O lucro, que é útil, me faz preservar um monte de mato, que é inútil. O lucro foi útil no passado e será útil no futuro, já o mato foi, é e será inútil sempre. Vejo que a diferença entre o útil e o inútil não se revela apenas na negação: sub-repticiamente algo se insinua. Nova descoberta: trata-se da mesma diferença entre o que é transitório e o que é perene.

O útil, portanto, revela-se um capricho, algo que depende do momento e de suas idiossincrasias. O útil é algo fútil.

O inútil, concluo, é eterno, tanto quanto os grandes valores que alicerçam as grandes coisas que construímos.

O inútil, provamos, é o que devemos almejar. Nada mais útil do que perseguir o inútil.

O inútil, quem diria, é o que forma a enorme base pintalgada de desprezíveis e vãs utilidades.

Viva o inútil!


   








terça-feira, 31 de março de 2015

ESSE CORPO MATERIAL AINDA ME MATA

Não é fácil viver. Isso já muitos declararam. Contudo, o problema não está na vida, mas na consciência de que a vida é a única coisa que temos e que somente a temos por algum tempo. A vida antecede o nosso eu. Antes não éramos, logo não seremos, mas, conosco ou sem nós, a Vida continua. Isso é óbvio e certeiro, a menos que o Malin Génie de Descartes esteja de fato divertindo-se. Pensando nisso, um egípcio ou um indiano, vendo a feia lagarta se transformar numa linda borboleta, consolou-se com seu cérebro humano generalizador e metaforizou a metamorfose: viu-nos como lagartas. Mas a metáfora é falsa: a vida da lagarta é longa, apesar de limitada, e a borboleta, apesar de voar, tem vida breve. Não há uma pós-borboleta. A metamorfose não tem a ver com a transformação de nosso corpo em luz transcendental. Só serve de metáfora para um anseio humano.

E é incrível ver a certeza com que Platão narra sobre o Mundo das Ideias, como Plotino descreve com precisão as suas hipóstases ou como qualquer monoteísta fala sobre a vida pós-morte. Reencarnações e transmutações teorizadas pelos pitagóricos, pelos kardecistas e pelos hinduístas, qual a diferença senão no detalhamento descritivo de seu desejo? No fundo são apenas metáforas para nossa vontade de continuar vivendo.







Batismos - essa invenção persa herdada pelos gregos - que encerram a vida de uma hereditária impureza edênica ou que dão um upgrade num plano intangível, são atos estranhos: servem de consolo para aqueles que vivem uma vida que não desejam, determinada por alguém ou por algo que nunca viu. Tantos ritos, indígenas ou não, ecoam no fundo de nossa alma: quanta ilusão nas cerimônias de iniciação e de transição! 

Um casamento muda o nome, mas não transforma ninguém, nem o crisma, nem um bar mitzvah, nada vai para além do simbólico, essa fruta inexistente, único alimento da qual nossa psique se nutre.
O símbolo, essa ambrosia dos mortais que nos dá força e ânimo, determinação e segurança, anestesiando a consciência de nossa monstruosa ignorância. É a pauta de nossos sentidos e de nossos pensamentos. É aquela coisa que chamamos de alma, cegos e um tanto estupidificados, no torvelinho dos nossos espantos diários. Resistindo ao fato de que apenas somos um sistema (extremamente) nervoso coberto de carne e ossos, como um churro, queremos ser feitos de outra matéria distinta de tudo que nos cerca. Esquecemos quase sempre que somos apenas esse sistema nervoso e que a carne, julgada bela ou feia, na qual se pautam todos nossos amores e ódios, é apenas sua vestimenta. Tanto esse sistema nervoso, que é o nosso eu abscôndito e ignoto, quanto a carne e ossos que o circundam, são fruto de uma coisa que, por falta de melhor nome, chamamos de evolução, mas que na verdade não sabemos para que existe, porque a finalidade, afinal de contas, não foi invenção dos acidentes evolutivos. Frutos de gambiarras e desacertos, essa coisa chamada de minha vida parece única e especial, apesar de haver tanta vida à minha volta. Por puro afeto vindo da convivência comigo mesmo, amo-a ou odeio-a. A maioria, aparentemente, faz como eu: ama-a, mas não são poucos os que dão cabo dela, certos ou não de uma nova vida, melhor ou não, justificando-se nas profundezas dos seus ímpetos e no fundamento enredado de suas razões. Odiar a própria vida pode ser um defeito de constituição do sistema nervoso ou algo adquirido ao longo das depressões, frustrações e faltas da já por nós enxovalhada esperança, quimeras que tantas vezes nos deram óculos para ver além de nós. E é com esses óculos que amamos ou odiamos o que está ao nosso redor, chegando ao ponto de, num amok ensandecido, fazer desaparecer conosco até mesmo vidas que queriam continuar vivendo. 




Mas o normal, para não falar de tristezas, é amar a vida e o nosso entorno. Amamos tanto que o destruímos, cegos com a certeza de que ficará tudo melhor se for como nós pensamos. O homem irrequieto não para com suas eternas mudanças. Nem todos contemplam essa vida amorável sob uma ótica zen. Não é fácil ver que não podemos voar, que as montanhas são intransponíveis, que as profundezas do mar são tão colossais, que a Lua não esteja ao alcance de nossa mão, que não conseguimos ver através das coisas, que não conseguimos ler os pensamentos alheios, que jamais veremos o átomo, que jamais estaremos no fim do universo, que sequer conseguimos enxergar ou ouvir o demasiado pequeno ou o demasiado grande, ou mesmo o que esteja a uma certa distância de nós, que nunca entenderemos algo que já passou: tudo isso nos mostra que somos tão restritos quanto qualquer outro ser vivo. Para isso a curiosidade humana, a sua irrequietude e alguma capacidade técnica inata deram à luz as ciências, que reduziram algumas de nossas limitações e nos tornaram mais seguros e, às vezes, arrogantes. Também a religião nos deu consolos, quando não aumentou nossas paranoias. Por fim, o próprio homem, eterno inimigo de si mesmo, nos constrange como aquilo que nos excede. Não é incomum que tenhamos medo de sair de dentro da nossa toca na sociedade ultramoderna, como quando, escondidos na savana, tínhamos medo de atiçar as feras com nossos movimentos de símio.

E perante o grande, o gigante e o infinito, lançamos as mãos para cima, disfarçando nossa impotência, e dizemos "dai-me um corpo, ó montes", como no poema de Lucian Blaga:


Daţi-mi un trup, voi munţilor


Numai pe tine te am, trecătorul meu trup,
şi totuşi
flori albe şi roşii eu nu-ţi pun pe frunte şi-n plete,
căci lutul tău slab
mi-e prea strâmt pentru straşnicul suflet
ce-l port.

Daţi-mi un trup,
voi munţilor,
mărilor,
daţi-mi alt trup să-mi descarc nebunia
în plin!
Pământule larg, fii trunchiul meu,
fii pieptul acestei năprasnice inimi,
prefă-te-n lăcaşul furtunilor cari mă strivesc,
fii amfora eului meu îndărătnic!
Prin cosmos
auzi-s-ar atuncea măreţii mei paşi
şi-aş apare năvalnic şi liber
cum sunt,
pământule sfânt.

Când as iubi,
mi-aş întinde spre cer toate mările
ca nişte vânjoase, sălbatice braţe fierbinţi,
spre cer,
să-l cuprind,
mijlocul să-i frâng,
să-i sărut sclipitoarele stele.

Când aş urî,
aş zdrobi sub picioarele mele de stâncă
bieţi sori
călători
şi poate-aş zâmbi.

Dar numai pe tine te am, trecătorul meu trup.

Sim, a verdade, depois da náusea (Sartre não poderia ter dado nome melhor a esse sentimento), depois de separar o que é real do que é pura ficção inventada pelos outros ou nós mesmos, em vez da depressão que nos faz jogar de edifícios ou lançar aviões em montanhas, apenas virá certeira (e frequentemente passageira). Com a consciência dessa verdade, talvez alguma alegria, que remete à maior de todas as obviedades: somente temos e amamos o nosso corpo passageiro e, no entanto, flores brancas e vermelhas não pomos na nossa testanem fazemos tranças nos nossos cabelos. 

Sim,  o eu lírico desse impactante poema, porta-voz e embaixador da nossa angústia, declara que o corpo é feito do barro mole do Éden, mas paradoxalmente é apertado demais para a alma violenta que carrega. 

O homem pensa mesmo que o seu corpo é como a montanha ou o oceano, algo tremendamente poderoso, mas, sozinho, tem consciência de que não é, refletindo em silêncio ou durante um mero incômodo e inofensivo resfriado.


Nosso eu recalcitrante quer roubar o corpo dessas coisas monumentais para descarregar  toda a sua loucura. Quer que seu tronco seja feito da vastidão da terra e que do solo se faça o novo peito para seu coração impetuoso, que abriga os furacões que nos esmagam. Se assim fosse, todo o cosmo ouviria nossos grandiosos passos e apareceríamos impetuosos e livres como pensamos que somos. 

Nosso amor se estenderia por todos os mares, sob a forma de braços vigorososselvagens e ardentes. Atingiriam o céu e, conforme nosso arbítrio, apanhariam as estrelas resplandecentes para beijá-las ou quebrá-las ao meio. Da mesma forma, nosso ódio seria tão imenso que esmagaria, com nossos pés de rocha, até mesmo os sóis. Nesse gozo de onipotência, poderíamos sorrir.

Mas nosso corpo passageiro não é assim. Nem nossa vontade tão poderosa. Nem nosso autodomínio. Nossa força e sentidos não são ilimitadas. Nossa coerência sofre para chegar a ser, no máximo, kantiana. Beiramos o ridículo quando pensamos diferente. Nossa vida depende dos outros. Depende se ingerimos algo ou não, ou se abrimos a porta e pomos os pés para fora de casa, ou não. Ficar sozinho em casa esperando a tragédia poderia ser a solução, se a tragédia não viesse sempre do lado mais imprevisível possível.


Vai-se nosso corpo, vai-se o nosso eu. É a vitória do Leviatã. Não há jardim das Delícias, mas tampouco há caldeirão infernal que nos cozinhe. Ninguém verá Osíris. No Duat, nosso corpo, indiferente ao vestibular post mortem e pesagem de nosso coração, vai rumo a Ammit, síntese do tríplice medo e impotência dos antigos. Mesmo que nosso coração seja mais pesado ou mais leve que a pena de Maat, iremos para o mesmo lugar. O medo do que há no pós-morte impediu alguém algum dia de fazer algum mal? A perda da fé no pós-morte realmente fez com que alguém fizesse maldades? Muitos dirão que sim, mas eu tenho minhas dúvidas. Com ou sem esses mundos fantásticos, sabemos julgar o que é errado e excessivo, porque está entranhado na nossa moral, que independe de sacis e iaras glorificados. O mau, quer tendo nascido com a sua maldade, quer a tendo adquirido com o passar do tempo, é indiferente a isso, exceto se foi doutrinado por lavagem cerebral, cuja técnica do endoctrinement nos explica tão bem Olivier Reboul. Mesmo assim, paradoxo dos paradoxos: o mau não se preocupa com nada disso e o bom vive uma vida inteira com medo de uma outra vida que nunca ninguém viu, esperando-a como prêmio da sua bondade. Esse comportamento não parece digno de uma espécie que se diz superior às outras em inteligência. Trata-se, quero crer, de um pensamento inevitável, difícil de desentranharmos da nossa cachola malconstruída pela evolução.


O bom é que, findo o eu e nada havendo (nem sofrimento nem regozijo) tudo volta a ser como quando não existíamos. Ninguém fica triste porque não existíamos antes de existirmos. Deveria haver paralelo para o período depois que existimos, mas se não há é porque gostamos de existir. Mesmo quem crê em vida no pós-morte chora porque uma pessoa querida se foi. Se cresse de verdade, estaria feliz por estar melhor que nós, afinal nossos amigos todos vão para o Céu e se fizermos um esforcinho, também iremos. Mas parece que só os fanáticos pensam assim. Mesmo quem crê em vida pós-morte luta para não morrer e em nada a convicção de que há segundo tempo diminuem a sua tristeza e sua vontade de continuar nesse mundo em que nosso corpo não é equiparável ao de uma montanha ou ao do solo em que pisamos ou ao do vasto oceano. Mesmo quem diz crer na outra vida dá graças a Deus por continuar estando aqui, por causa da sorte de não ter embarcado rumo à morte, mas se cresse mesmo, acharia pena não ter tido a chance de vê-Lo no melhor dos mundos. 


Deixemos de hipocrisia se não temos propensão para o enfadonho fanatismo. Estamos contentes com o certo, ainda que reclamando sempre. Estamos felizes com nossa limitação porque o ilimitado, mesmo na cabeça do crédulo, é algo que não se tem pressa de experimentar. Ainda que sofrendo de dores atrozes, queremos aferrar nosso corpo ao barro de que Adão foi gerado, em vez de hipostasiarmo-nos no plano da substância pura e eterna. É perfeitamente possível ao desconfiado bicho-homem - que aprendeu a não confiar nem em si mesmo - pensar sobre a sua mais firme certeza: "e se isso tudo só forem palavras?".