O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

sábado, 10 de janeiro de 2015

O BOM-SENSO DE CADA DIA DAI-NOS HOJE

É uma maravilha. Até o mais insano concordará comigo. Não há quem acredite não ter bom senso. O que ajuda e o que empurra, o que salva e o que mata, o que grita e o que ouve, o que julga e o que é julgado. O bom-senso é a menor unidade das relações interpessoais, tanto quanto o átomo é a menor unidade da matéria ou o DNA a menor unidade da vida. 

Se todo mundo está satisfeito com a sua quantidade de bom-senso, ninguém saberá defini-lo sem usar uma palavra chave, a saber, a palavra "eu". Rousseau achava razoabilíssimo que as pessoas abdicassem de suas mesquinharias em prol de um bem comum. O duro é saber quem terá bom-senso para fazer a partilha desses bens abdicados. Mas se todos apontassem, na época, para o próprio Rousseau, ele decerto teria aceito de bom grado, pois não tinha dúvida que deveria ter na sua coroa o título de homem mais sensato da Humanidade. Mas ninguém foi doido para tal, obviamente, o que não impediu a humanidade de ir atrás de líderes que prometiam o imprometível.



O curioso é que, mesmo que todo mundo levasse consigo seu quinhão de bom-senso, não há acordos entre as pessoas. Recentemente vi o estupendo filme Relatos salvajes, de Damián Szifron. Acho que essa película resume tudo o que já disse sobre a natureza demasiadamente animal do rei da evolução. Sim, rei por meio de golpe, não por causa do mérito. 

Pense no homem recém-formado, com seu cérebro gigante, inteligentíssimo como provou sê-lo, pelo menos até a invenção das armas. Sem elas, não teria domado bicho nenhum, pois os búfalos não são sensíveis à retórica. Sem as armas, seria eterna vítima dos lobos e outros carnívoros. Teria de correr diariamente atrás do pão nosso de cada dia e teria de saber poupá-lo. Mas a evolução do cérebro do homem parou, milênios atrás, quando inventou a primeira arma. Sim, a evolução do cérebro era apenas uma reação e necessitava da energia vinda de outras partes do corpos.  Com isso, tornou-se um bicho frágil, tão desprovido de força e de agilidade, que poderia causar dó. Com a primeira arma, contudo, transformou-se em monstro, maior que os tigres dente-de-sabre que o perseguiam. Com ela nasceu também o desperdício: uma preguiça gigante era abatida e a carne apodrecia porque ninguém conseguia comer tudo. Não tinha problema, no dia seguinte, abatia-se outra. Até as preguiças gigantes virarem poesia.

E quando as armas deixaram de ser de pau ou de pedra, piorou. Bastou que se inventasse o bronze e surgiram os impérios. A crueldade dos assírios se tornou proverbial. Era mesmo necessário arrastar pessoas em correntes pelo deserto, com os olhos vazados? Não. Mas a crueldade criava o status necessário para o temor e para que o animal bruto novamente se impusesse. Para que cérebro se temos armas? E as armas se sofisticaram: projéteis que atingem distâncias inimagináveis para o antigo troglodita; gases tóxicos e corrosivos, que implodem nossos pulmões; bombas incendiárias ou desintegradoras, que penetram o âmago da estrutura da matéria.



Diz o etólogo Frans de Waal que a empatia é um dom genético que aparece também em outros animais. Assim sendo, a evolução nos deu a capacidade de olhar para um ser que não é alguém de nosso círculo familiar e sentirmo-nos momentamente no lugar dele ou como se fosse ele. Virou até filosofia, travestida de religião, quando se prega o amor ao próximo. Mas acreditar que todos um dia terão na teoria e prática esses valores ditos cristãos é pura utopia: não tenho a menor dúvida que a admirável capacidade de empatia é muito variada entre as pessoas. Algumas sofrem ao ver alguém sofrendo; outras, ao contrário, regozijam-se ao fazer alguém sofrer e nem se abalam. Portanto, se não é a inteligência nem a empatia que nos distingue dos demais animais, o que é?

Talvez a arrogância. Uma fera tem dentes e garras, ruge, ameaça, ataca, mata cruelmente, mas parece que, quando não faz isso para se alimentar ou por diversão, costuma fazê-lo para garantir a sua preponderância num determinado território. O homem instintivamente faz o mesmo e se sai muito bem com suas armas ou com seus bandos e como o território humano não tem limites, sente um regozijo quando escala a mais alta montanha do mundo, quando vence desertos e geleiras. Por outro lado, fica muito triste porque percebe que nunca sairá da via láctea, nem jamais poderá ir ao centro da Terra. As suas limitações o irritam e a religião ocidental sempre o lembrou dos seus limites, por exemplo, na imagem da presunçosa Torre de Babel ou nos outros desafios que fez à divindade, como o de Arachne. A modéstia, advinda tardiamente, por meio da consciência, parece bem humana, tanto quanto a arrogância.

Então vejamos bem: a inteligência parou de crescer porque temos armas, a empatia não é algo que valha a pena desenvolver na lógica do egoísmo evolutivo, a modéstia é válida somente depois que caímos e dura bem pouco. Fora isso,  nosso corpo é franzino e nossa mente é volátil. Burro, antipático e arrogante, eis a imagem especular do homem racional, altruísta e admirável. Não é sua sombra. Trata-se apenas do outro homem, tão verdadeiro quanto o pintado de dourado pelos antropólatras do Renascimento.

A racionalidade humana requer coerência, mas amamos a incoerência, porque sem ela seríamos desumanos, como alardearam e oficializaram os chamados "românticos" já no fim do século XVIII, reação imediata, preguiçosa e previsível às conclusões do século XVII, com seus formalismo rigoroso e com suas exigências quase irrealizáveis para um pobre símio recém-saído da savana. Ou seja, o que o romantismo pregou com o sucesso de uma revolução obviamente francesa é que não queremos ser autômatos, que queremos a imprevisibilidade e ela requer a falta de lógica. 

Pirar é legal, convenhamos. Pensando assim, logo partimos das premissas para a conclusão e da teoria à prática: joguemos a nossa garrafa de cerveja na calçada no nosso momento de descontração. Este é o raciocínio que presencio mais frequentemente, vendo a sujeira pós-final de semana: somos moderninhos, conscientes, muito engajados, mas há quem faça a faxina para nós. Digam-me: quem realmente consciente tem coragem de arremessar um pedaço de papel no chão? Mas o tempo dos papéis de bala já eram. Agora são garrafas, tampinhas, maços de cigarro, absorventes, preservativos, um lixo nojento que se encontra após as baladas dos bares da rua Augusta que inexistiam até a década de 90. 



O vizinho, que mantém seu quintal muito bem cuidado, joga um bilhete de Zona Azul no meu jardim, apesar de ter abundantes lixeiras na sua casa. Sequer pode mentir, dizendo que não foi ele: o número da placa está no bilhete amassado. Uma vez, Dercy Gonçalves disse numa entrevista que jamais jogava lixo na rua se alguém estivesse vendo, mas bastava que não houvesse testemunhas e faria isso com muito orgulho. Bons tempos os da hipocrisia de Dercy! Hoje liberou geral e quem joga lixo na rua tem até alguma razão política, ética e mais demonstrável que a fórmula da lua do conde de Pontécoulant. 

Perante esses grandiosos feitos da espécie humana, lembro-me da cena do filme Cronicamente inviável (2000) em que meninos urinam na soleira de uma casa. São ofendidos por pessoas que passam, mas para o espanto do espectador, entram em seguida na mesma casa urinada, pois era lá que eles moravam. O absurdo é exatamente este: quem mijaria na porta da própria casa? Mas só conseguimos indagar isso quando possuídos pelo frio demônio da racionalidade. Falta pouco para concluirmos, contudo, que uma ação como essa é coerente, dado o nosso comportamento cada vez mais voltado ao irracional e retórico. O mesmo homem que berra pelos seus direitos na fila do supermercado porque o que está diante dele demora e o faz perder preciosos minutos não se importará se tirar o tempo dos que estão depois de si, demorando ainda mais tempo. Afinal, é possível provar por meio da sua semilógica que as pessoas na fila que estão atrás dele não são ele próprio, centro incontestável da indignação, maior representante da racionalidade e da coerência humanas.


Não, não, não. O homem racional não existe. Mas atos racionais sim. O que está por trás de um monumento de racionalidade humana ou é o acaso ou, na melhor das hipóteses, algum exagero casual de coerência de raciocínio que somente alguns poucos tiveram. E quem o teve, teve-o raramente. Mesmo assim, só uma parcela da racionalidade é conhecida, pois raramente pode levar à criação de algo que seja do gosto do bem comum e que sirva para enaltecer a espécie. Portanto, não foram os chineses que inventaram a porcelana: foi um único sujeito que vivia no território chinês, imitado por outros depois do seu heureka, por acaso, chineses. Se não tivesse havido um Faraday, um Maxwell, um Heimholtz, um Marconi, um Edison e tantos outros esquisitões não haveria nada daquilo de que o mundo moderno se orgulha hoje. Sem eletricidade não haveria Facebook. Estaríamos lendo sob luz de velas, como na comovente autodescrição de Maquiavel. A coerência de um gênio pode até ser imitada, mas não é dom geral, convenhamos, e por causa de uma noite mal dormida, o mais racional dos homens se torna tão ilógico quanto o mais incoerente de todos. Um ser coerente o tempo todo não é humano. Pena.

Se não há coerência, não há racionalidade. Nada mais a dizer sobre isso. Louvaremos, então, para compensar, a nossa irracionalidade? Não conseguimos sequer fazer isso, porque todo nosso pensamento é estruturado. Não conseguimos torná-lo amorfo nem mesmo enchendo a cabeça com droga pesada, como fazem as personagens do filme Fear and loathing in Las Vegas (1998). O máximo que podemos atingir, procurando a irracionalidade, é algum chavão hipergenérico com tinturas de profundidade mística. A fluidez do ser é algo que não nos é concebível. Não de todos os ângulos, por isso é tão difícil entender as raízes da matéria e os confins do universo. Conclusão: não dá para ser racional nem completamente irracional. Estamos presos no medíocre mundo estruturado das sociedades heteróclitas e das palavras ambíguas. Pena.

Palavras têm significado, mas têm sobretudo valores. Volta e meia uma palavra se torna tabu, porque reflete um pensamento sob vigilância, que, se deflagrado, provoca indignação social, processos, cadeia, morte. Palavras já não são meras sequências de sons impunemente pronunciados, nem feixes de significados com os quais podemos brincar, como Henfil e outros chargistas faziam. Recentemente, o fetichismo neo-irracional deu vida ao terceiro elemento do signo: a referência. Falar uma palavra má evoca o mal, macumba que tínhamos esquecido desde a revolução industrial. Ao falarmos merda há quem sinta o cheiro do material pós-digestão expelido pela cloaca ou pelo ânus (dependendo da sua origem) e essa imagem evoca o próprio contexto da defecação na mente sensível do ouvinte. 

Cripticamente, perguntaremos: os que sofrem de problemas naquela fase freudiana específica e inominável anterior à fálica, segundo as bizarras conclusões psicanalíticas, verão nessa minha frase confusa alguma mensagem subliminar provocativa? Sei lá, sim e não, só se fizer e se não fizer sentido o que eu disse. 

O policiamento de todos contra todos é uma realidade no mundo pós-pós-moderno, tanto quanto nas épocas mais fechadas e antiquadas. Foi esse policiamento, sob outro manto, que fez Descartes fugir para a Suécia e morrer de pneumonia à busca de um financiamento, que se mostrou excessivamente caprichoso. "Matei Descartes porque Descartes era meu", podia ter pensado a rainha Kristina, inconsciente de que o amedrontado Descartes era, na verdade, de toda a Humanidade. Do mesmo jeito pensa o boçal que deixa um garrafa no meio-fio.

A violência verbal e física, que cresce exponencialmente, parece ganhar prestígio no mundo neo-irracional atual, embora se fale tanto de "paz", de "amor", de "igualdade", de "justiça", de "coerência" e de "tolerância". Quem permitiu isso? Nós mesmos, nessa bizarria atual conhecida como redes sociais, mostrando-nos para todos. Aposentamos a hipocrisia para ficarmos com a histeria. E se tivesse ocorrido alguma evolução social, até teria sido uma boa troca, mas não houve nada. Os valores hoje em dia são pasteurizados. Não se permitem meios-termos. Ou você é X ou é não-X: estamos à beira do Grande Paradoxo. 


Concluímos acima que não somos racionais, mas aferramo-nos em poucas opções. Cobramos que alguém se decida entre o verde ou o lilás. O azul não é opção. Quem definiu foi o uso e a horda. O que está na boca de todos é o que existe. O que está nos livros, empoeirando-se e servindo de repasto de tisanuros, um dia voltará a ser lido?

Sim, o mundo é muito maior que essa lengalenga anacrônica atual. Tudo adquire uma tonalidade muito mórbida hoje em dia porque não se sabe mais o que é humor e o que é o mundo além-umbigo. Não é porque nos escandalizamos com o lixo jogado na rua que merecemos o título de reacionário, de direitista, de antirrepublicano, de elitista e outras baboseiras, marcas de Caim na nossa testa. De onde veio essa necessidade classificatória? Da insegurança infantil que assola os terráqueos atuais? Exigir é bom, mas realizar é melhor. E realizar não é vestirmos uma couraça e despedir-nos de esposa e filho para ir à luta. Há um Aquiles lá fora que arrastará nosso corpo, que nosso pai terá de reclamar. Se eu pudesse aconselhar algo para alguém, pediria que fosse menos valente, mais incisivo e menos choramingão. Faria votos que buscássemos a culpa em nós mesmos e que nos arrependêssemos mais das nossas inevitáveis idiotices de seres semirracionais. Afinal de conta, nunca saberemos se nosso líder é tão rosadinho como as pétalas que saem de sua boca: o seu trono está longe demais e só tenho notícias indiretas dele. Por que pôr a mão no fogo por algo ou alguém que não conheço nem nunca conhecerei?

Que em 2015 sejamos sim mais céticos e mais críticos, mas não massinha na mão de bebês voluntariosos que, sinceramente, nem sei quem são.