Palavras têm peso. Às vezes têm mais peso que significado. Se você chamar alguém de patife, estará ofendendo-o. Mas se perguntar à mesma pessoa, antes de ofendê-la, o que é um patife, provavelmente não saberá dizer o que significa ou, ao menos, terá entendido algo diferente da pessoa que a proferiu. Se ponderamos sentido e valores, sem dúvida, a balança penderá para o segundo. Podemos sequer saber o que significa algo, mas a simples evocação de certas palavras devolve-nos a realidade animalesca e cruel do irracionalíssimo bicho-homem.
Dentro da esfera do pesado orbita o inútil. Chamar alguém de inútil é lançá-lo no desprezo ou convocá-lo à peleja. Dizer que algo é inútil revela nossa atitude despiciente para com algo que existe mas não faria falta se não existisse. Mas o inútil é de fato assim?
O bicho-homem, sem alma e sem galardões eternos, rasteja neste mundo de onde brotou atônito. Precisa comer e beber, senão morre, afinal há tempos seus antepassados já não fazem fotossíntese. Precisa dormir, senão enlouquece. Precisa defecar e precisa copular. Precisa ter aconchego de um bando, senão afunda na depressão. Além dessas coisas animalescas aprendeu outras necessidades que orgulhosamente o distingue do resto da bicharada. Precisa falar com alguém, senão falará sozinho perdido num mundo próprio de devaneios. Precisa de dinheiro, senão não consegue disfarçar-se de superbicho perante si e perante os outros. E por aí vai.
Assim sendo, é tachado de inútil tudo que não o ajude a aparelhar-se para mostrar para si mesmo como a cereja do cume do bolo da criação divina. Inútil é algo que não serve para ser ingerido. Inútil é aquilo que tira nossas noites de sono. Inútil é aquele que não sabe se comunicar. Inútil é quem não está devidamente enquadrado na sociedade, pagando seus impostos e cumprindo sua função fática diária. Inútil é aquilo que não gera dividendos.
Certo dia vi um entrevistado que mostrava que tinha reflorestado uma fazenda sua. A terra, desbastada e cheia de bovinos, só dava mato raso. Nada mais além da grama do pasto nascia lá. Os mananciais viraram enxurradas, as quais, por sua vez, remodelaram a terra sob a forma típica da erosão. A diversidade natural ficou monótona.
Tergiversação necessária: cheguei à conclusão que o oposto da ecologia é a geometria. O homem faz de tudo para livrar-se do caos das matas, que tanto lhe dão insegurança. No lugar delas põe caixotes imobiliários quadrados de cimento e ruas planas de asfalto. Sim, muito melhor sem insetos, sem animais selvagens, sem cobras, sem mato anônimo. O homem não sossegará enquanto o mundo não for um deserto total.
Mas esse entrevistado tinha pensado o contrário do que você pode imaginar. Tinha reflorestado deveras: a mata revicejou, os riachos reapareceram e, com eles, as aranhas, os tucanos e os tamanduás. Esse homem pensou diferente do bicho-homem mediano? Não, não pensou, gostou de frisar na entrevista, afinal de contas não queria mostrar alguma fraqueza subumana. Ao repórter redarguiu que era um empresário. Definia-se como tal. Assim sendo, fez isso tudo visando ao lucro e não à ipsa natureza.
Lucro. Palavra estranha. Os projetos de extensão agroflorestal ensinam a conservar a mata nativa, mas visando ao lucro. Danem-se as florestas, se o lucro não pode ser invocado. Quem quer saber de uma mata inútil? Uma mata por si própria? Uma mata ela mesma? Nummus maximus deus est.
Diversidade sem utilidade vira piada no mundo atual. Até mesmo os ecologistas arregaram. Esse discurso não comove ninguém. Pra que preservar baleia se há tanto óleo e carne nelas? Só por simpatia? Um macaco louco não se identifica com baleia. E se identifica, faz isso porque a acha bonitinha. Preserva mico-leão porque é dourado e borboleta que é azul. Quem quer preservar bicho inútil, melequento, sem cor aberrante, peçonhento? Simpatizam-nos os vertebrados, mas e os quilópodes, os nudibrânquios, os insetinhos marrons sem graça que se suicidam nas nossas lâmpadas?
O ser inútil está fadado a morrer: sentença ditada pelo cruel macaco presunçoso que dominou a terra. Entenda-se: inútil para esse primata em questão.
E a arte inútil? O pensamento inútil? Que dizer disso? Há uma grande distância entre a inutilidade de palavras ou signos inúteis e a de seres. As palavras inúteis são abundantes no nosso dia-a-dia. Mas já se pensou em exterminá-las. Um tal de Vaugelas é considerado o criador do normativismo radical. Mas é inútil acabar com as palavras inúteis, provaram os românticos após Vaugelas.
Um pensamento útil não me ajudaria a tirar vantagem em toda a situação? Aparentemente sim. Contudo, um pensamento que me faça enriquecer é útil quando estou vivo e saudável, mas inútil se estou à beira da morte. Assim sendo, a utilidade de algo abstrato depende do momento de sua aplicação. Um coco é útil para matar minha fome e minha sede, a menos que eu esteja num lugar sem pedras e sem aparelhos onde possa quebrá-lo.
Assim sendo, parece-me que, paradoxalmente, a utilidade de algo depende de coisas que são alheias àquilo que está sendo julgado como útil: a utilidade do dinheiro depende da vida e a utilidade do coco depende de pedras.
Mas avalia-se esse segundo elemento que se infiltra como novo fator antes de produzirmos a sentença acerca da utilidade das coisas? Obviamente não. Quem diz que o dinheiro é bom não está pensando na morte. Quem diz que coco é bom nem cogita em pedras.
Assim, pergunto eu: de onde vem a certeza do pensador comezinho que se interpõe entre mim e o meu deleite com sua abjeta e preconceituosa sentença: ISTO É INÚTIL? Eu diria que vem do mesmo lugar onde nascem todas as outras certezas: da mesma precipitação ilógica do bando que nos impulsiona a fazer asneiras.
O raciocínio do homem visa o útil, diria Bacon, mas o útil depende de fatores impensáveis, como mostramos acima. Assim sendo, o raciocínio visa a coisas que dependem de fatores impensáveis. Não consigo imaginar nada mais inútil do que algo que dependa de fatores impensáveis, portanto, o raciocínio, de fato, visa ao inútil.
Deleito-me em compreender isso. O útil sempre pareceu-me demasiadamente cristão, demasiadamente marxista, demasiadamente raso. A inutilidade é o objetivo daquele que raciocina. Quem se apodera do inútil para construir o útil não raciocina. Monta um espantalho, aliás, coisa útil para espantar corvos e proteger a lavoura de milho, ensinam-nos os inúteis desenhos animados.
A inútil leitura da inútil filosofia torna-nos perspicazes e críticos, algo que é útil somente se os outros que nos circundam são menos perspicazes e menos críticos. Dormirmos a tarde toda é inútil para a Receita Federal mas útil para recuperar nosso corpo e mente cansados. O inútil conhecimento faz diferença no útil concurso. Aquilo que é inútil em potência é útil em ato? O inútil, no fundo, tem alguma utilidade?
Mas o raciocínio visa ao inútil, como provamos acima. Então o raciocínio visa a algo que, no fundo , bem no fundo, tem alguma utilidade? Parece que raciocinar sobre o inútil pode ser a coisa mais útil que podemos fazer hoje em dia. E raciocinar sobre o útil? Tentemos.
Podemos pensar que o útil seja apenas um gozo momentâneo. Quando digo que o dinheiro foi útil para fazer algo, encerro no passado a sua função utilitária. O lucro, que é útil, me faz preservar um monte de mato, que é inútil. O lucro foi útil no passado e será útil no futuro, já o mato foi, é e será inútil sempre. Vejo que a diferença entre o útil e o inútil não se revela apenas na negação: sub-repticiamente algo se insinua. Nova descoberta: trata-se da mesma diferença entre o que é transitório e o que é perene.
O útil, portanto, revela-se um capricho, algo que depende do momento e de suas idiossincrasias. O útil é algo fútil.
O inútil, concluo, é eterno, tanto quanto os grandes valores que alicerçam as grandes coisas que construímos.
O inútil, provamos, é o que devemos almejar. Nada mais útil do que perseguir o inútil.
O inútil, quem diria, é o que forma a enorme base pintalgada de desprezíveis e vãs utilidades.
Viva o inútil!