Palavras sempre são um amontoado de sons, que criam imagens sonoras e significados, em qualquer língua do mundo. Esses significados são elásticos e não unívocos. Uma vez pedi a um grupo de alunos que me escrevessem num papel o que era uma pessoa patife e que exemplificassem com algum tipo de situação. Esperava alguma heterogeneidade na resposta, mas não tanta. Praticamente não houve duas pessoas que entendessem a palavra do mesmo jeito. Para uma, patife era uma pessoa fraca à ingestão do álcool, para outra era um arrematado mau-caráter, para outra era uma pessoa boba e fácil de ser enganada, para uma quarta era uma pessoa que dizia coisas desagradáveis, para uma quinta era uma pessoa muito covarde, para uma sexta era ainda outra coisa. Todos estavam concordes com algo, porém: se fosse chamado de patife, partiria para cima do ofensor. Patife antes de significar qualquer coisa era uma palavra ofensiva e nada mais.
Foi aí que pensei que o que se chama "significado" em linguística, psicologia e em tantas outras áreas na verdade são duas coisas distintas. Um significado descritivo (que variava muito entre as respostas dos alunos) e um significado valorativo (que era o mesmo). Definitivamente, patife não era uma palavra que poderíamos usar para elogiar.
Ou era? Um namorado carinhosamente poderia chamar a amada de patife, com outra entoação e num outro contexto e ninguém sairia ofendido. Essa entoação, que dizem não ser tão importante no português quanto no chinês, significava alguma coisa extra. Nasce o vaguíssimo conceito de contexto.
Para mim, quem quer entender o significado das palavras no sentido científico usa de uma carta na manga quando evoca essa entidade do além chamada "contexto". Na verdade, se pensarmos bem, o contexto não é nada. Ou é tudo. Em que consiste o contexto quando o amado chama sua amada de patife e ela sorri em vez de ficar emburrada ou brava? O contexto são os dois envolvidos, seu histórico e a aparente contradição absurda entre a palavra, pronunciada de forma particularmente incomum, e a certeza da projeção do sentimento alheio. Em outra situação, chamaríamos de contexto qualquer outra coisa. Nada é mais vago e impreciso que o conceito de contexto e se alguém diz que é cientista evocando essa alma penada, engana-se. Não há definição suficiente para a variável "contexto".
Assim sendo, dependendo da situação, ofendemos ou não. E o que é a ofensa? Hoje essa pergunta não é ociosa, pois estamos numa época de fortes suscetibilidades. Pessoas se identificam com grupos, amam ser rotuladas e rotular os demais, exigem a leitura unânime e inequívoca das palavras. Não há, no mundo de hoje, dez mil sentidos para "patife". Há um só. E ele deve ser procurado nas redes sociais para que não sejamos politicamente incorretos. E ai de quem não o faz.
Ilusão. Há, sim, milhões de sentidos e sempre haverá, infelizmente nem sempre tão ricos quanto deveriam para honrar a afamada inteligência da espécie humana. A maioria desses sentidos ou é hipervaga ou hiperespecífica. Não saberíamos dizer quantos seriam realmente necessários.
Mas enfim, há o sentido corrente ou da moda. E se alguém é displicente com isso ofenderá necessariamente.
A medida de uma agressão, contudo, é mensurável de forma mais clara pelo agredido do que - obviamente - pelo agressor. Uma pessoa que machuca, magoa ou maltrata não poderia de modo algum ser o mesmo que legisla sobre o limite do que é e do que não é agressão. Isso é óbvio e vale para situações que são qualificadas como ofensas físicas, morais e mentais. Essa ideia é, em tese, perfeita e mais do que defensável.
Mas como dizíamos, estamos lidando sempre com situações e com palavras. Se as situações, com ou sem palavras, definem um quadro onde a justiça pode atuar, já o terreno das palavras é muito pantanoso. Pois, com palavras, não apenas interagimos para comunicar objetivamente uma ação, mas também subjetivamente. Às vezes funcionam ao avesso, como no caso dos namorados citados acima.
Além disso, com as palavras podemos fazer arte. E qual o limite entre a agressão deliberada em arte e a provocação, que tanto sucesso fazia em outras épocas? A provocação tende à crítica subjetiva mais do que à descrição objetiva. Será que o reino do subjetivo corre riscos?
Uma crítica artística a um cenário incômodo do que se passa ou se passou ou se passará na sociedade real ou fictícia é, quase sempre, uma provocação. Seria ela também uma agressão? Devia ser sempre um caso de justiça? Num pesadelo, sim, mas de olhos abertos, melhor não. O teatro, os romances, os poemas e as exposições sempre estiveram cheios de elementos provocativos, exceto talvez nas tiranias que delimitavam o que é arte e o que é entartete Kunst.
Se Tarantino me incomoda muito e me agride, censurá-lo seria uma opção? Ouvir um sim causa um aumento da democracina no nosso sangue, antecedido de arrepios e de aumento do nosso globo ocular. Como? Será que alguém um dia poderia cogitar esse absurdo? Às vezes acho que a resposta a isso é tão incerta quanto o que fará um inexperiente numa corda-bamba.
Na dicotomia agredido-agressor, mesmo que um autor seja eximido por liberdade poética (algo que sempre foi feito nas épocas esclarecidas do vaivém da humanidade), devemos pensar na situação da agressão de forma mais ampla, que nos faz pensar num teorema interessante: havendo grupo agredido, necessariamente o grupo não-agredido é, por definição, o agressor? Veja, não digo mais nada sobre indivíduos agredidos, mas sobre grupos e o número de conjuntos possíveis com a totalidade dos indivíduos tange o infinito!
Supondo que haja dois grupos A e B. Historicamente A oprimiu B, mas hoje B não é mais oprimido por A. O grupo A tem a característica X e o grupo B tem a característica Y. Por causa dessa característica X é que A justificou sua opressão histórica sobre B. Hoje, não importa se as pessoas são X ou Y. Ainda há alguns A que oprimem alguns B por causa da característica X, mas isso é um caso de polícia. Não é desses que quero falar. Quero falar de C, que também tem a característica X e de D, que tem a mesma característica Y. É justo deduzir que A e C são iguais, mesmo que C nunca tivesse oprimido ninguém? É justo deduzir que B e D são iguais, mesmo que D nunca tivesse sido oprimido? No extremo, supondo que C tivesse sido oprimido por E e que D tivesse oprimido F, não seria extremamente redutor (e errôneo) que A e C sejam chamados de opressores e que B e D, de oprimidos? E se A e C não existem mais, apenas seus descendentes A' e C'. Seria justo que A e A' sejam considerados igualmente opressores e C e C' igualmente oprimidos? Se de um lado temos uma característica que reúne acidentalmente (portanto de forma preconceituosa) verdadeiros opressores e pessoas de fora da história e de outro, verdadeiros oprimidos e pessoas do lado de fora da história, não estaríamos sendo injustos com C ou com A' e privilegiando injustamente D e B'? Não estaríamos sendo ou hipersimplificadores ou acreditando excessivamente na hereditariedade? Nessa situação toda, parece não haver espaço nem para a lógica nem para o perdão.
Mas é assim que o bicho-homem pensa. A lógica é o fruto do cansaço da fome e o perdão é o fruto do cansaço das guerras. E é basicamente o que somos: rebentos da fome e guerra. O Homem com H maiúsculo, o tal do ser humano, idealmente projetado, donde se deriva o sentido etéreo de Humano e de Humanidade, é, na verdade, alguém que cansou de passar necessidades e cansou de brigar. Mas há momentos em que não precisamos nos preocupar com a comida do dia seguinte e nem com as pessoas além de nossa tribo. É nesse momento de suposta tranquilidade que voltam a fome e a guerra, como que vindas do nada. E nossa história é esse pêndulo desastrado.
Mas diante da iminência desses males, é ruim que não alertemos que o pensamento lógico se prepara para transformar-se em breve num amontoado de hipergeneralizações e de simplificações formulaicas, mesmo que haja ainda muito para ser discutido. Há pouquíssimas pessoas dispostas a ouvir essa discussão, tão certos andamos.
Enquanto isso, formam-se clãs, que se ofendem mutuamente com nomes pouco inteligentes. E o ofensor se regozija com a sequência de sons que profere, enquanto o ofendido se escandaliza pelos formantes sonoros que trazem a mensagem agressiva.
Se, num zoológico, alguém põe um nome chinês num urso-panda, não ofenderá ninguém porque não há nenhum costume histórico de ofender chineses, usando o termo "urso-panda". Outros pobres animais, em vez de se sentirem ofendidos por causa do nosso especismo, cedem contra a vontade seus nomes ao ofensor, o qual age com inevitável desconhecimento de causa. Se A ofende B com a palavra G, que designa um outro animal diferente do bicho humano só porque pensa que B tem supostas características de G ou porque pensa que todo G vem da mesma região de B ou porque pensa que G é desprezível, errará nas três vezes: as características de G normalmente são muitos distintas de B para um olhar atento, nem todo G vem, com certeza, da tal região e G tem qualidades que o arrogante A não tem nem nunca conseguirá ter ou enxergar.
Que é o inflacionado cérebro humano comparado com o olhar agudo da águia, com a audição dos lobos, com a eletrorrecepção dos ornitorrincos, com as ampolas de Lorenzini dos tubarões, com a criptobiose dos tardígrados?
A arrogância humana nasceu quando o primeiro hominídeo derrubou um animal muito mais poderoso que ele. Perdeu completamente o seu complexo de fracote e até esqueceu dos seus deuses nesse dia. O poder do homem não vem do seu cérebro, mas da primeira armadilha que criou. Desde então, o hominídeo reflete sobre as vantagens da traição. Desde então conseguiu perceber que do verdadeiro pode decorrer o verdadeiro e o falso, horror lógico que dizem ser inadmissível na implicação condicional: passou a ser verdadeiro que, sendo x verdadeiro, y poderá ser tanto verdadeiro quanto falso.
Depois disso, o homem nunca mais dispensou esse ingrediente básico para o sucesso de sua inflacionada auto-estima canhestra: a arrogância da onipotência, a ponto de fazer deuses à sua semelhança. E aplicou-a a tudo que se move, inclusive a outros homens. É hora de aplicá-la a si mesmo.
Ofendamo-nos diariamente. Quero dizer, não mutuamente, nem reciprocamente, mas reflexivamente. Cada um deveria ofender a si mesmo e não ao outro. Diga todo dia diante do espelho: você que me olha, você não vale nada, mas eu gosto de você. Quem sabe, essa síntese paradoxal entre a humildade e o amor próprio salve a humanidade da próxima hecatombe.