Ninguém negará que todo ser é algo. Um dia, paulatina ou bruscamente, todo ser deixa de ser o que é e passa a ser outra coisa. Em resumo, o ser é e um dia deixa de ser.
Isso pode ser motivo de orgulho: o ser deixou de ser o que era. Ou motivo de vergonha: o ser não é mais o ser que era. A maioria absoluta dos seres deixam de ser sem qualquer avaliação, mas nós não somos assim: a essência do homem é julgar.
O ser deixa de ser o que era. Evoluirá, melhorará, pois ainda não era o que queria ser. Sendo agora outra coisa distinta do que já foi, olha para trás e diz altivo e satisfeito: "fui, já não sou, sejam como eu". Ou então o ser deixa de ser o que era. Decairá, piorará, pois já foi aquilo que não é mais. Sendo agora outra coisa distinta do que já foi, olha para trás e diz saudoso e triste: "fui, já não sou, não sejam como eu".
Os seres que evoluem ou os que decaem orgulham-se de dispor de uma consciência que lhes mostra quanto tem melhorado ou quanto tem piorado. Sobem a um púlpito e relatam sua ascensão ou queda. Tornam-se exemplos a ser seguidos ou a ser evitados.
Mas o ser que se orgulha ou se envergonha daquilo que já foi é completamente distinto do ser que não sabe que mudou. O ser inconsciente não percebe a sua própria mudança. Ele pensa sempre ser. Não acredita na possibilidade de um dia deixar de ser o que é, muito menos de já ter deixado de ser há tempos. Não acredita que melhorou, pois sempre foi bom. Tampouco acredita que piorou pela mesma razão: sempre foi bom. Que ser inconsciente não acreditaria na bondade de sua essência imutável? Entendendo isso, entende-se Platão. O ser e o bem se confundem quando a mudança não existe. Se o ser era bom e se torna mau, acredita sempre ter sido bom. Se era mau e se torna bom, acredita nunca ter sido mau.
O primeiro não aceita a sua mudança. O segundo nega para si seu passado mau. É isso a má-fé.
Que ser acreditaria sempre ter sido mau se um dia foi bom? Quem se creria eternamente mau ao tornar-se bom? Parece paradoxal a experiência de que nada permanece deteriorado eternamente num ser realmente inconsciente das mudanças. E qualquer nesga de consciência, nesses casos, subitamente emergida de um ser inconsciente, parece ser uma dolorosa e nauseante verdade, equivalente à primeira mordida do fruto do Paraíso. Verdade que beira o insuportável, por isso evitada, de natureza quase diabólica.
Se o ser inconsciente não acredita que piorou, tampouco acreditará que melhorou. E sendo bom ou mau, às vezes não consegue avaliar se melhora ou piora a cada atitude, pois lhe falta a dolorosa consciência, a qual permitiria que julgasse as coisas como são. Entra aí o olhar do outro que julga a sua inconsciência de fora e redige, depois disso, o seu veredito.
Esse julgador é um ser como qualquer outro, consciente ou inconsciente da mudança. Se consciente, sabe que há mudança no ser julgado e sabe também que ele, enquanto julgador, também é um ser mutável. Se inconsciente, o ser julgador não sabe que o ser julgado muda, tampouco que ele mesmo, julgador, pode um dia mudar ou ter mudado.
Mas há situações muito comuns que geram consequências para além da coerência lógica que vinculam a mudança à consciência.
Há seres conscientes que se sabem mutantes, mas não aceitam a mudança alheia.
Há outros seres conscientes que se sabem mutantes, tanto quanto os seres julgados, mas fingem a imutabilidade de si, do outro ou de ambos.
Há seres que não se imaginam mudando, mas admiram-se com a mudança alheia.
Há seres que não se imaginam em mutação e, portanto, não aceitam a mudança de nada, por mais evidências que tenham das mudanças alheias a si.
Tanto a consciência quanto a ausência dela, portanto, geram situações para além da sua visão de ser, projetada ao outro como idêntica a si. Esse julgamento advém de conflitos, maravilhamentos, intolerâncias e má-fé.
Nada disso ocorre se no julgamento proferido do julgador for declarado que o julgado é idêntico ao que julga. Mas que seria julgado por mim acerca daquilo que eu sou?
Dessa forma, o julgador, sabendo que o julgado não é ele, julgador, volta-se para o julgado como melhor ou pior que ele, julgador. E daí nascem o conflito, o maravilhamento, a intolerância e a má-fé.
No conflito, a suposta mera diferença de essência entre o julgador e o ser julgado é suficiente para o veredito, tão logo seja detectada.
No maravilhamento, posterior à detecção da distinção, conclui-se que a diferença do julgado em relação ao julgador é boa, inofensiva, útil e bela.
Ao contrário, na intolerância, a diferença emergente aponta para o lado oposto: é má, deletéria, inútil e feia.
A má-fé, longe de ser excepcional, contudo, é o último passo a ser dado. A diferença não é vista apenas como óbvia, boa ou má. Independente do julgamento consciente, perverte-se para o oposto: se é óbvia, torna-se oculta; se é boa, procura alguma maldade; se é má, evidenciam-se qualidades boas. Se essa perversão é inconsciente temos o auto-engano. Se é consciente, temos a hipocrisia.
Assim sendo, no conflito, no maravilhamento, na intolerância e na má-fé, nada que é oculto se torna óbvio, nada que é bom se torna mau, nada que é mau se torna bom. Enfim, o julgamento sequer se efetua e, se se efetuou, foi pervertido.
Se a perversão faz parte do raciocínio de quem julga acerca daquilo que se julga, quem deve julgar esse raciocínio? Um outro julgador? Algo que está além do ser? Mas esse ser para além do ser pode ser, como qualquer outro ser, mutável ou imutável, ou pior, consciente ou inconsciente da sua mutabilidade ou imutabilidade. Aparentemente, o julgador do julgamento não é muito distinto do julgador do julgado, a menos que nele não haja conflitos, maravilhamentos, intolerâncias ou má-fé.
Mas isso é impossível, pois tal ser seria inconsciente e, por isso, não poderia ser julgador e, portanto, nada para ele seria bom ou mau. Nada mudaria, de fato, no seu julgamento supremo, pois o ser jamais deixaria de ser: tanto o seu próprio ser quanto o do outro.
Na impossibilidade de haver um ser que julgue o julgamento, os únicos julgadores que há, como sempre e para sempre, julgarão os julgados. Ao julgarmos os julgadores, julgaremos que seu julgamento reflete algo de conflituoso, de maravilhoso, de intolerante ou de pervertido. A justiça do julgamento é solicitada, mas não havendo julgadores de julgamento, o que resta é observar que o que julgamos imaginar como nosso julgamento é, na verdade, uma opinião, ou seja: não julgamos de fato o julgamento, pois o julgamento agora é, na verdade, o que está sendo julgado e nós nada mais somos que novos julgadores.
Acima de nós, portanto, haverá outros que julgarão os nossos julgamentos e, nesse momento, nosso julgamento será julgado e o julgador, vindo de fora, assim como fizemos há pouco, nos anulará, como anulamos o primeiro julgador.
Em suma, o julgador não importa: basta o julgamento. A ele sempre estará vinculado um julgador qualquer, alheio e num nível acima do que se pautou o julgamento e a ele exclusivamente caberá a justiça que declara o conflito, que cala maravilhado, que reage intolerantemente ou que perverte com má-fé.
O círculo se rompe apenas artificialmente mediante acordo ou violência, mas esses são apenas expedientes corriqueiros e práticos do julgar humano, nascidos da insatisfação e da impaciência que causa o ciclo infinito entre o resultado conhecido como julgamento e o elemento alheio de um segundo julgador que não participara do julgamento inicial. A consciência da inutilidade do círculo infinito ou a má-fé que propõe uma saída alternativa para o dilema são as únicas razões levantadas. de fato, mas é possível detectar facilmente que se tratam de elementos externos e alheios às verdades da mudança do ser, da existência de uma consciência, da inevitabilidade de um julgamento.
Assim, os artifícios, conquanto úteis, são impostos. A violência, ainda que eficiente, não deriva logicamente da justiça e o acordo, ainda que legítimo, é apenas uma demonstração de cansaço da consciência do ciclo infinito, causado pelo julgador alheio ao julgamento previamente estabelecido.