Um dia um rapaz jogou uma pedra e ela, voando, caiu numa vidraça. O rapaz quebrou a vidraça? Sim, o rapaz quebrou a vidraça. Mas o rapaz quis quebrar a vidraça? Não, não queria quebrá-la: jogou a pedra para cima naqueles ímpetos simiescos que temos de lançar coisas para cima, sem pensar numa consequência tal como quebrar vidraças, o que houve de fato. Poderia, porém, igualmente ter caído na cabeça de um transeunte ou sobre a sua própria cabeça. Quebrando a vidraça, afirmo que o rapaz causou um dano material? Talvez, mas tanto quanto quis causar um dano físico no segundo caso a outrem ou fez uma tentativa de suicídio no terceiro. Então, o signo paroxítono de seis fonemas e três sílabas, transposto graficamente como verdade, na nossa língua e na nossa época atual depende não só do fato, mas também da intenção por trás do ato (se o fato for um ato). Em outras línguas e em outras épocas talvez significasse algo parecido? Não temos certeza. A verdade, ao que tudo indica, não é algo simples: além da intenção, no caso acima, requer uma sociedade e uma língua que a traduza. Ora línguas são seres complexos de que os seres humanos se servem, enlaçadas em certas épocas e lugares.
Mas parece que ignoramos isso. Usamos a palavra verdade como elemento principal da ciência, da religião, do direito e da nossa vida. Reconhecemos a verdade e a mentira, na prática. E se a reconhecemos, não devíamos falar nada que não fosse verdadeiro, no entanto, a mentira existe. Não há quem possa negar. E se negássemos, criaríamos a estranha circunstância, talvez exclusiva das crianças, de nunca nos termos deparado com a mentira virando uma esquina da nossa vida. O que é muito improvável.
A verdade, portanto, é um totem para o conhecimento, para a fé, para a justiça e para o nosso equilíbrio mental. Todas essas coisas são importantes.
Não podemos dizer de maneira simples que o rapaz está mentindo, ao dizer que não jogou a pedra ou ao dizer que a janela não foi quebrada por ele ou, pior, que a janela não foi quebrada não obstante haja evidências. Provavelmente, se sabe que mente, foi o medo que o fez agir assim: algo como o medo de ser descoberto, medo de ser culpado por outros. O medo também poderá ser tanto, que é possível até que não saiba que mente. No primeiro caso, estará sendo hipócrita; no segundo, autoengana-se. E o auto-engano é mais normal do que se imagina.
Mas na falta da verdade, possível de ser ocultada por não ser testemunhada, como a célebre árvore que cai solitária sem que ninguém a veja, o que cabe é o verossímil. O rapaz estava só e disso não teremos a menor dúvida daqui em diante. Isso é um fato. A eles se somam outros dois: a vidraça, que foi quebrada naquele instante, e a pedra que ali estava. Esse é um acordo de compreensão entre mim e você, leitor.
Mas se não foi ele quem quebrou a janela, a pedra que a quebrou seria um meteoro? Seria a materialização ex nihilo de uma pedra? Ou terá sido enviada miraculosamente por um deus ou outro ser sobrenatural? Fato é que, se não somos céticos como Hume, o rapaz estava ali sozinho e a vidraça se quebrou por meio de uma pedra, que (segundo nossa experiência) não se materializam nem se lançam sozinhas contra vidraças. Resumidamente, qual a chance de esta pedra singular agir de forma tão distinta das outras pedras, com o comportamento tão distinto de toda a matéria até hoje catalogada, para concluirmos ser o caso algo sobrenatural? Não bastasse isso para dizer que a defesa do rapaz é surpreendente, encontraram-se digitais na pedra. Qual a chance de um meteoro ter criado ranhuras tão sutis que se assemelhassem perfeitamente às digitais do rapaz? Dirá qualquer pessoa de bom senso: será mínima, cada vez menor, à medida que aparecem evidências contrárias ao senso comum. E, de fato, coisas de probabilidade mínimas podem ocorrer, mas sua justificativa não tem verossimilhança. O verossímil é o mais próximo que temos da verdade.
O filósofo brasileiro Leônidas Hegenberg já nos alertou há tempos sobre o tríplice significado da palavra "verdade". O que une fatos à exclusão do inverossímil, para a ciência, é o que os gregos chamavam de alétheia. A verdade de uma reconstrução de um ato é o que os juristas latinos chamam de veritas. A verdade que envolve nossa confiança moral em Deus é o que em hebraico se chama de emunah. No primeiro caso, fala-se de evidências, no segundo de probabilidade e no terceiro de fé. O que chamamos "verdade" pode ser metaforizado como um doce que não podemos parar de mexer, para não desandar. Os três ingredientes desse doce são esses três conceitos cunhados em épocas e sociedades distintas. O verossímil é um doce que improvisamos, na falta de um desses ingredientes ou na quantidade não ideal para se fazer o doce perfeito. E é no verossímil que se deve basear a justiça, pois a verdade pura é inalcançável, por ser algo múltiplo e abstrato, como o que quer crer o ceticismo de Hume.
Nesse ponto, Hume, aliás, é tão perturbador - talvez mais do que a sua fonte de inspiração, o crente Berkeley - que foi preciso nascer Kant para salvar a filosofia do conhecimento de um colapso total, colapso maior do que o já havido entre os sofistas na época de Platão ou nas desilusões decadentistas durante o período alexandrino, romano e medieval. A partir do raciocínio de Hume não se pode falar sobre a justiça, pois ele fechou as portas da filosofia. Kant tentou reabri-las e teria conseguido com seu gênio, se não fosse uma horda de loucos atropelá-lo no vestíbulo da mansão filosófica. O resultado é que ainda hoje estamos nas suas trevas, algo difícil de aceitar pelo homem ultramoderno. As respostas da filosofia acabaram no século XVIII. E o que se segue não é a mesma coisa, pois se centrou na ética e na existência, questões que infelizmente nunca serão respondidas.
Isso não quer dizer que a verdade seja vã. De modo algum. A verdade, com sua capacidade adaptativa proteica ou quase viral, hoje é o centro das discussões filosóficas sobre ética e existência. Mas de que verdade se fala? Os três elementos do doce, no seu eterno remexer na panela, pendem cada hora para um lado e, nessa polissemia, adquirem tons mais fortes, seja na revelação que os fatos nos apresentam, seja na verossimilhança do relato, seja na confiança moral que depositamos em quem relata. Em suma, é difícil avaliar se algo é verdadeiro somente pelos fatos, pela reconstrução da ação ou pelo valor daquilo que está perante nós, pois cada um desses três elementos mudam incessantemente nosso ânimo de forma pouco racional. Que fazer se, ao apelarmos para o racional, envolvemos um ato extremamente irracional de um ser que vê o mundo sob o exclusivo ângulo de sua espécie?
Então o rapaz jogou a pedra e quebrou a janela, só ele sabe disso. Mas teme as consequências e diz que não foi assim. Mente. Sabemos disso ele e eu, que escrevi este texto e inventei essa situação. Você que lê também sabe, porque eu contei. Mas observe, que curioso: fingimos cumplicemente que eu não existo e que você não sabe, senão meu raciocínio não será acompanhado por você. Somente esse acordo entre mim e você, leitor, permite que imaginemos o rapaz jogando a pedra, quebrando a janela e mentindo. O "suponhamos que" da lógica, o "dado que" da matemática, a cumplicidade de um romance são formas variadas desse fingimento ou dessa ficção, chame como quiser. Mas nos pressupostos de um diálogo e no dia-a-dia, não temos acordo algum. Ou seja, só podemos saber que existe uma mentira na fala do rapaz por meio dessa espécie de má-fé semiconsciente acordada entre nós, na qual podemos abstrair e ver os fatos tais como são. Ora os fatos não dizem nada por si e, se continuarmos nesse raciocínio, chegaremos a Hume. Como o relato sempre tem chance de ser mentira, sempre teremos dúvida. A dúvida é a essência da verdade empelotada na panela como alétheia.
Ok, nunca saberemos se o rapaz jogou ou não a pedra ou se, jogando, quebrou ou não a janela, pois ele tem a opção ou o impulso auto-enganoso de mentir. Assim sendo, nossa busca da verdade deve mexer ainda mais a panela e agora a coloração do doce aponta para outro ingrediente: a veritas. Procuram-se indícios outros além da pedra, da janela e do relato. As digitais, por exemplo, poderão dizer que está mentindo, como vimos acima. Na falta delas, outros dirão que esse rapaz tem mania de lançar pedras para o ar, que já o viram fazer isso, que faz isso com frequência. Ou, pelo contrário, que nunca teria feito algo tão gratuito e impensado quanto jogar a pedra numa janela. Outros ainda, poderão obviamente mentir sem provas que já foram vítimas de seus apedrejamentos. Enfim, os novos fatos se somarão e reconstruiremos o estado de espírito do rapaz e sua relação com pedras e janelas. Os diversos relatos se sobrepõem e, alguns serão verossímeis, outros não: tanto sobre o fato de ele ter jogado ou não a pedra quanto se, tendo jogado, fez isso intencionalmente ou não. Essa verdade é mais difícil, porém, mais útil. E para a reconstrução Hume talvez não seja o mais indicado. Essa conclusão serve de alento à filosofia, que se sente ainda viva. É esta a verdade filosófica que hoje se procura. A primeira é caso encerrado, pois será sempre a mesma solução: o niilismo. Entende-se o porquê do divórcio da ciência e da filosofia. A primeira, sempre procurou, desde os gregos, a alétheia e gerou a guerra infinita entre a dedução e a indução. A segunda procura a verdade sob a forma de justiça, a verdade como veritas.
Mas isso é pouco.
O rapaz diz: "joguei a pedra, confesso, mas foi sem intenção". A verdade se estabelece. Os fatos se encaixam. Parece haver solidez entre o que alétheia levanta e o que veritas julga, a tal ponto de falarmos impropriamente que há aí uma única verdade. Mas falta algo. Algo imprevisto e fruto talvez de um elemento obscuro persa que se travestiu de neoplatonismo cristão. Uma verdade ainda mais curiosa. E, espanto, não houve até hoje um Hume que a separasse da veritas. Os ateus exsurgentes não conseguiriam. O rapaz não fez de propósito. Todos sabemos. O outro lado da verdade é que ele não queria. Terá talvez de pagar a janela, mas, ninguém diria que não é um bom rapaz, exceto seus inimigos. Mas, fato é, que mesmo tendo feito sem querer, fez. Enfim, a confiança é algo que pode ser restaurada ou não e o perdão não restaura a confiança da mentira, por mais que, com pena do rapaz, nos coloquemos como medrosos no lugar do quebrador de janelas. Fato é que, distraído, poderá quebrar outras janelas, lançando outras pedras para cima. Fato é que poderá sempre falar mentiras. Essa verdade de que não é um quebrador de janelas, verdade enquanto emunah, que se pauta não nos fatos, nem nas reconstruções, mas na confiança, não se restaura depois de uma mentira, a menos que não tivéssemos a memória. Mas temos. Tudo indica que sabemos que, nesse caso, não teve a intenção de quebrar as janelas, mas o mesmo caso aponta que provavelmente será distraído: a sua inocência não o fará quebrar outras janelas, pois seu impulso de jogar pedras para o alto está além do seu raciocínio e pregado na espontaneidade de como trata o mundo de forma tátil, pegando pedras nas mãos e jogando inconsequentemente para o alto.
Só a prova torturante de que a confiança foi perdida faria alguém autoconsciente não voltar a fazer o que costumava fazer ou que fez. Enquanto esse trauma não se instala e se mostra real nas ações, não haverá o lado emunah da verdade. Esse é o nível mais difícil de ser atingido e a razão pela qual o perdão cristão não é algo que seja universalmente aceito, pois útil ele é, convenhamos. Todos sabemos que há oportunistas que se beneficiam do perdão. Existe a reincidência. Existe a hipocrisia. Esse é o ponto mais complexo que a filosofia poderia discutir hoje em dia. No entanto, a filosofia se separou da ciência no século XVII mas não se separou da religião até hoje. Pensa conseguir dialogar com a ciência, muitíssimo dela já apartada, mas só consegue dialogar com questões comuns da religião, a saber, ética e existência. Nesse ponto, hoje estamos tal como na Idade Média e o máximo que se conseguiu depois de duas guerras mundiais foi um relativismo inútil e solipsista, que se demole aos poucos e perde rapidamente terreno, no Ocidente, mediante a violência dos dogmáticos, que representam nada mais que a regra da nossa espécie autointitulada racional ao longo das longas eras da humanidade.
A verdade, portanto, é um totem para o conhecimento, para a fé, para a justiça e para o nosso equilíbrio mental. Todas essas coisas são importantes.
Não podemos dizer de maneira simples que o rapaz está mentindo, ao dizer que não jogou a pedra ou ao dizer que a janela não foi quebrada por ele ou, pior, que a janela não foi quebrada não obstante haja evidências. Provavelmente, se sabe que mente, foi o medo que o fez agir assim: algo como o medo de ser descoberto, medo de ser culpado por outros. O medo também poderá ser tanto, que é possível até que não saiba que mente. No primeiro caso, estará sendo hipócrita; no segundo, autoengana-se. E o auto-engano é mais normal do que se imagina.
Mas na falta da verdade, possível de ser ocultada por não ser testemunhada, como a célebre árvore que cai solitária sem que ninguém a veja, o que cabe é o verossímil. O rapaz estava só e disso não teremos a menor dúvida daqui em diante. Isso é um fato. A eles se somam outros dois: a vidraça, que foi quebrada naquele instante, e a pedra que ali estava. Esse é um acordo de compreensão entre mim e você, leitor.
Mas se não foi ele quem quebrou a janela, a pedra que a quebrou seria um meteoro? Seria a materialização ex nihilo de uma pedra? Ou terá sido enviada miraculosamente por um deus ou outro ser sobrenatural? Fato é que, se não somos céticos como Hume, o rapaz estava ali sozinho e a vidraça se quebrou por meio de uma pedra, que (segundo nossa experiência) não se materializam nem se lançam sozinhas contra vidraças. Resumidamente, qual a chance de esta pedra singular agir de forma tão distinta das outras pedras, com o comportamento tão distinto de toda a matéria até hoje catalogada, para concluirmos ser o caso algo sobrenatural? Não bastasse isso para dizer que a defesa do rapaz é surpreendente, encontraram-se digitais na pedra. Qual a chance de um meteoro ter criado ranhuras tão sutis que se assemelhassem perfeitamente às digitais do rapaz? Dirá qualquer pessoa de bom senso: será mínima, cada vez menor, à medida que aparecem evidências contrárias ao senso comum. E, de fato, coisas de probabilidade mínimas podem ocorrer, mas sua justificativa não tem verossimilhança. O verossímil é o mais próximo que temos da verdade.
O filósofo brasileiro Leônidas Hegenberg já nos alertou há tempos sobre o tríplice significado da palavra "verdade". O que une fatos à exclusão do inverossímil, para a ciência, é o que os gregos chamavam de alétheia. A verdade de uma reconstrução de um ato é o que os juristas latinos chamam de veritas. A verdade que envolve nossa confiança moral em Deus é o que em hebraico se chama de emunah. No primeiro caso, fala-se de evidências, no segundo de probabilidade e no terceiro de fé. O que chamamos "verdade" pode ser metaforizado como um doce que não podemos parar de mexer, para não desandar. Os três ingredientes desse doce são esses três conceitos cunhados em épocas e sociedades distintas. O verossímil é um doce que improvisamos, na falta de um desses ingredientes ou na quantidade não ideal para se fazer o doce perfeito. E é no verossímil que se deve basear a justiça, pois a verdade pura é inalcançável, por ser algo múltiplo e abstrato, como o que quer crer o ceticismo de Hume.
Nesse ponto, Hume, aliás, é tão perturbador - talvez mais do que a sua fonte de inspiração, o crente Berkeley - que foi preciso nascer Kant para salvar a filosofia do conhecimento de um colapso total, colapso maior do que o já havido entre os sofistas na época de Platão ou nas desilusões decadentistas durante o período alexandrino, romano e medieval. A partir do raciocínio de Hume não se pode falar sobre a justiça, pois ele fechou as portas da filosofia. Kant tentou reabri-las e teria conseguido com seu gênio, se não fosse uma horda de loucos atropelá-lo no vestíbulo da mansão filosófica. O resultado é que ainda hoje estamos nas suas trevas, algo difícil de aceitar pelo homem ultramoderno. As respostas da filosofia acabaram no século XVIII. E o que se segue não é a mesma coisa, pois se centrou na ética e na existência, questões que infelizmente nunca serão respondidas.
Isso não quer dizer que a verdade seja vã. De modo algum. A verdade, com sua capacidade adaptativa proteica ou quase viral, hoje é o centro das discussões filosóficas sobre ética e existência. Mas de que verdade se fala? Os três elementos do doce, no seu eterno remexer na panela, pendem cada hora para um lado e, nessa polissemia, adquirem tons mais fortes, seja na revelação que os fatos nos apresentam, seja na verossimilhança do relato, seja na confiança moral que depositamos em quem relata. Em suma, é difícil avaliar se algo é verdadeiro somente pelos fatos, pela reconstrução da ação ou pelo valor daquilo que está perante nós, pois cada um desses três elementos mudam incessantemente nosso ânimo de forma pouco racional. Que fazer se, ao apelarmos para o racional, envolvemos um ato extremamente irracional de um ser que vê o mundo sob o exclusivo ângulo de sua espécie?
Então o rapaz jogou a pedra e quebrou a janela, só ele sabe disso. Mas teme as consequências e diz que não foi assim. Mente. Sabemos disso ele e eu, que escrevi este texto e inventei essa situação. Você que lê também sabe, porque eu contei. Mas observe, que curioso: fingimos cumplicemente que eu não existo e que você não sabe, senão meu raciocínio não será acompanhado por você. Somente esse acordo entre mim e você, leitor, permite que imaginemos o rapaz jogando a pedra, quebrando a janela e mentindo. O "suponhamos que" da lógica, o "dado que" da matemática, a cumplicidade de um romance são formas variadas desse fingimento ou dessa ficção, chame como quiser. Mas nos pressupostos de um diálogo e no dia-a-dia, não temos acordo algum. Ou seja, só podemos saber que existe uma mentira na fala do rapaz por meio dessa espécie de má-fé semiconsciente acordada entre nós, na qual podemos abstrair e ver os fatos tais como são. Ora os fatos não dizem nada por si e, se continuarmos nesse raciocínio, chegaremos a Hume. Como o relato sempre tem chance de ser mentira, sempre teremos dúvida. A dúvida é a essência da verdade empelotada na panela como alétheia.
Ok, nunca saberemos se o rapaz jogou ou não a pedra ou se, jogando, quebrou ou não a janela, pois ele tem a opção ou o impulso auto-enganoso de mentir. Assim sendo, nossa busca da verdade deve mexer ainda mais a panela e agora a coloração do doce aponta para outro ingrediente: a veritas. Procuram-se indícios outros além da pedra, da janela e do relato. As digitais, por exemplo, poderão dizer que está mentindo, como vimos acima. Na falta delas, outros dirão que esse rapaz tem mania de lançar pedras para o ar, que já o viram fazer isso, que faz isso com frequência. Ou, pelo contrário, que nunca teria feito algo tão gratuito e impensado quanto jogar a pedra numa janela. Outros ainda, poderão obviamente mentir sem provas que já foram vítimas de seus apedrejamentos. Enfim, os novos fatos se somarão e reconstruiremos o estado de espírito do rapaz e sua relação com pedras e janelas. Os diversos relatos se sobrepõem e, alguns serão verossímeis, outros não: tanto sobre o fato de ele ter jogado ou não a pedra quanto se, tendo jogado, fez isso intencionalmente ou não. Essa verdade é mais difícil, porém, mais útil. E para a reconstrução Hume talvez não seja o mais indicado. Essa conclusão serve de alento à filosofia, que se sente ainda viva. É esta a verdade filosófica que hoje se procura. A primeira é caso encerrado, pois será sempre a mesma solução: o niilismo. Entende-se o porquê do divórcio da ciência e da filosofia. A primeira, sempre procurou, desde os gregos, a alétheia e gerou a guerra infinita entre a dedução e a indução. A segunda procura a verdade sob a forma de justiça, a verdade como veritas.
Mas isso é pouco.
O rapaz diz: "joguei a pedra, confesso, mas foi sem intenção". A verdade se estabelece. Os fatos se encaixam. Parece haver solidez entre o que alétheia levanta e o que veritas julga, a tal ponto de falarmos impropriamente que há aí uma única verdade. Mas falta algo. Algo imprevisto e fruto talvez de um elemento obscuro persa que se travestiu de neoplatonismo cristão. Uma verdade ainda mais curiosa. E, espanto, não houve até hoje um Hume que a separasse da veritas. Os ateus exsurgentes não conseguiriam. O rapaz não fez de propósito. Todos sabemos. O outro lado da verdade é que ele não queria. Terá talvez de pagar a janela, mas, ninguém diria que não é um bom rapaz, exceto seus inimigos. Mas, fato é, que mesmo tendo feito sem querer, fez. Enfim, a confiança é algo que pode ser restaurada ou não e o perdão não restaura a confiança da mentira, por mais que, com pena do rapaz, nos coloquemos como medrosos no lugar do quebrador de janelas. Fato é que, distraído, poderá quebrar outras janelas, lançando outras pedras para cima. Fato é que poderá sempre falar mentiras. Essa verdade de que não é um quebrador de janelas, verdade enquanto emunah, que se pauta não nos fatos, nem nas reconstruções, mas na confiança, não se restaura depois de uma mentira, a menos que não tivéssemos a memória. Mas temos. Tudo indica que sabemos que, nesse caso, não teve a intenção de quebrar as janelas, mas o mesmo caso aponta que provavelmente será distraído: a sua inocência não o fará quebrar outras janelas, pois seu impulso de jogar pedras para o alto está além do seu raciocínio e pregado na espontaneidade de como trata o mundo de forma tátil, pegando pedras nas mãos e jogando inconsequentemente para o alto.
Só a prova torturante de que a confiança foi perdida faria alguém autoconsciente não voltar a fazer o que costumava fazer ou que fez. Enquanto esse trauma não se instala e se mostra real nas ações, não haverá o lado emunah da verdade. Esse é o nível mais difícil de ser atingido e a razão pela qual o perdão cristão não é algo que seja universalmente aceito, pois útil ele é, convenhamos. Todos sabemos que há oportunistas que se beneficiam do perdão. Existe a reincidência. Existe a hipocrisia. Esse é o ponto mais complexo que a filosofia poderia discutir hoje em dia. No entanto, a filosofia se separou da ciência no século XVII mas não se separou da religião até hoje. Pensa conseguir dialogar com a ciência, muitíssimo dela já apartada, mas só consegue dialogar com questões comuns da religião, a saber, ética e existência. Nesse ponto, hoje estamos tal como na Idade Média e o máximo que se conseguiu depois de duas guerras mundiais foi um relativismo inútil e solipsista, que se demole aos poucos e perde rapidamente terreno, no Ocidente, mediante a violência dos dogmáticos, que representam nada mais que a regra da nossa espécie autointitulada racional ao longo das longas eras da humanidade.